Há 100 anos, ela colapsou sistemas de saúde, matou 50 milhões de pessoas e deu origem à caipirinha. Também deixou ensinamentos sobre como lidar com vírus desconhecidos. Lembrá-los agora é uma questão de vida ou morte.
Texto: Alexandre Carvalho | Design: Lucas Jatobá
O pedreiro João Bezzana precisou interromper o serviço – uma obra na Rua Brigadeiro Luiz Antônio – quando começou a chover em São Paulo. Já era o meio da tarde, ele estava molhado e decidiu que o melhor era ir logo para casa. Ou para o bar. Parou num boteco da Rua Augusta e bebeu até cair. Literalmente.
De volta à rua, trôpego, foi acometido por um ataque epilético e se esparramou na calçada, entre contrações musculares, até ficar desacordado. Foi quando passou por ali um veículo cada vez mais comum naqueles dias, novembro de 1918: um coletor de cadáveres.
Quando viram Bezzana inconsciente no chão, o motorista e seu ajudante imaginaram que fosse mais um entre os tantos mortos que as famílias levavam para a via pública, com medo de que contaminassem, em casa, os que ainda sobreviviam à pandemia. O pedreiro foi recolhido apressadamente e jogado na caçamba, no alto de uma pilha de corpos, para ser levado ao Cemitério do Araçá.
Horas depois, já refeito da convulsão e da bebedeira, João Bezzana abriu os olhos. Mas então supôs que estivesse ainda sob efeito do álcool: viu-se deitado num caixão, ao lado do que seria sua sepultura de indigente. Apavorado, saiu correndo e pulou o muro do cemitério que dava para a atual Avenida Dr. Arnaldo – assombrando os coveiros que aguardavam uma trégua da chuva para enterrá-lo.
O episódio aconteceu exatamente no ápice da gripe espanhola – que durou dois anos, mas concentrou suas mortes em 1918, último ano da Primeira Guerra Mundial. Essa gripe, transmitida pelo vírus influenza A do subtipo H1N1 – o mesmo que assustou o planeta em 2009 –, infectou um terço da população global e tirou a vida de 50 milhões de pessoas. Há quem fale no dobro.
Para você ter uma ideia da fúria desse agente infeccioso, ele matou em 24 semanas mais gente do que a aids levou em 24 anos. Na história das pragas, só a varíola (300 milhões ao longo do século 20) e a Peste Negra (200 milhões no séc. 14) provocaram mais mortes. Mas ambas precisaram de anos e anos para matar tanto. A gripe espanhola foi mais fulminante: fez basicamente todo o seu estrago em um único semestre. As estimativas são de que 3% dos infectados morriam. É a mesma taxa que a OMS considera para a Covid-19.
Antes da morte ou da cura vinham dor de cabeça aguda, febre alta, calafrios, tosse seca, dores no corpo, diarreia e um cansaço invencível. Sim, parecido com os sintomas do novo coronavírus. Quem conseguia parar nesses incômodos podia se considerar um sujeito de sorte. Nos demais, as complicações envolviam pneumonia, insuficiência respiratória severa e cianose, quando o rosto fica azulado e os pés escurecem por falta de oxigenação. Enfermeiros da época, sobrecarregados, nem cuidavam de quem aparecesse com os pés escuros: sabiam que era uma sentença de morte. Ninguém nesse estágio da doença escapava.
Não que os médicos soubessem curar os casos mais brandos. Remédio, não havia. Até porque, na época, nem se sabia direito o que era um vírus – os microscópios não tinham tecnologia para detectá-los. Mesmo o causador da gripe comum só seria isolado em laboratório em 1933. Restava aos hospitais aliviar os sintomas, quando dava.
Outro mistério que desafiava a medicina era a taxa de mortalidade em relação à faixa etária. Ela era especialmente letal na casa dos 20 aos 30 anos – que pela lógica deveria ser mais resistente. A explicação é que a cepa de 1918 desencadeava uma resposta exageradamente intensa do sistema imunológico, provocando rápida liberação de células imunes.
Quando essa reação é exacerbada, tende a haver sobrecarga do organismo, levando a inflamações graves e acúmulo de líquido nos pulmões. Na época, então, quem tinha sistemas imunológicos fortes – justamente os mais jovens e saudáveis – acabava sufocado pelas próprias defesas do organismo. E tombava mais rápido.
No Brasil, os primeiros casos da gripe espanhola foram registrados em agosto, quando o vírus desembarcou do navio Demerara, que vinha de Portugal e fez diversas paradas ao longo da nossa costa. Até dezembro, quando a gripe desapareceu do País, 35 mil brasileiros sucumbiram à doença, no mínimo – imagine como deveria ser a subnotificação um século atrás.
Em São Paulo, a média de mortes na cidade subiu de 33 óbitos por dia em 1917, antes da pandemia, para 250 em 1918. No total, foram mais de 5.300 mortes por gripe espanhola na capital paulista. E a conta foi pior para os cariocas – que vivem no litoral, em contato próximo aos navios que chegavam do exterior: 12 mil vítimas do influenza.
No caos absoluto, o quase-sepultamento do pedreiro João Bezzana não era um episódio extraordinário. Estima-se que muita gente tenha sido enterrada viva no País, porque a gravidade dos casos frequentemente confundia os médicos, que tinham dificuldade de distinguir o vivo do morto – estamos falando de profissionais extenuados, e muitas vezes doentes.
Também faltavam coveiros experientes: muitos morreram pelo contato com os cadáveres – a ponto de as prefeituras convocarem presidiários para fazer os enterros. E, finalmente, faltava cemitério para todo mundo – nesses locais, o quadro era de corpos insepultos nos corredores.
Os pobres, como hoje, eram os que mais sofriam, mas o vírus era democrático. No Brasil, morreram de gripe espanhola o poeta Olavo Bilac e até o presidente Rodrigues Alves. No exterior, o vírus levou o sociólogo Max Weber, o pintor simbolista Gustav Klimt, uma das filhas de Sigmund Freud e até o avô de Donald Trump.
Ancestral da crise do coronavírus, a pandemia de 1918 deixou um manual do que fazer e não fazer diante de um vírus homicida e desconhecido. E alguns legados também. Aqui, por causa da gripe, foi estruturado um Departamento Nacional de Saúde Pública, que seria semente do futuro Ministério da Saúde.
Outra herança está nos bares. A população brasileira em peso recorreu a uma mistura de pinga (“álcool mata os germes”), mel e limão. Segundo o Instituto Brasileiro da Cachaça, foi essa combinação supostamente terapêutica, no período da gripe espanhola, que deu origem à caipirinha.
Gripe americana
A Espanha não merecia a publicidade negativa. A gripe foi chamada de “espanhola” porque, quando ela começou a matar soldados dos dois lados da Primeira Guerra Mundial, nenhum país divulgava o avanço dos contágios. Podia ser um golpe na motivação dos soldados – além de uma informação estratégica capaz de animar o inimigo. No meio desse duelo de desinformação estava a Espanha, que, neutra no conflito, não tinha motivo para censurar os relatórios das autoridades de saúde.
Como os jornais só traziam notícias de espanhóis gripados, deu a entender que a doença surgiu por lá. Mas não. Embora haja teorias diversas sobre seu berço, a mais aceita é de que a praga tenha começado neste lado do Atlântico: nos Estados Unidos. E entre os militares.
O vírus surgiu nos EUA e matou mais americanos que as duas Guerras Mundiais, a Guerra da Coreia e a do Vietnã juntas.
Os primeiros casos nos EUA aconteceram em quartéis que treinavam recrutas americanos para a guerra, ainda no início de 1918. O vírus logo ultrapassou as fronteiras dos acampamentos e passou a abater civis de norte a sul do país. Então pegou carona nos navios de combate e foi parar nas trincheiras da Grande Guerra. A pandemia entrava em curso.
Houve surtos no mundo todo, em questão de semanas. Na Rússia soviética, a doença tinha outro apelido: febre siberiana. Na Sibéria, era a febre chinesa. Na Espanha – que queria se livrar da “autoria” da enfermidade –, ficou como febre russa. No Alasca, as populações inuit acreditavam estar sendo atingidas por um “espírito branco”.
Na sociedade civil, houve incríveis semelhanças de comportamentos e (más) decisões políticas com o que está acontecendo hoje. Governos que demoraram a reconhecer a agressividade do vírus – por falta de informação ou para preservar a indústria e o comércio – tiveram mais mortes em comparação a lugares que logo tomaram uma atitude firme, mas impopular.
Vale a pena observar o que aconteceu em duas cidades americanas, opostas no modo de lidar com a crise: Filadélfia e Saint Louis.
O vírus começou a se espalhar pela Filadélfia a partir de 19 de setembro, quando, em poucos dias, 600 marinheiros se apresentaram aos hospitais, infectados. Numa decisão que custou milhares de vidas, a prefeitura decidiu tratar aquela influenza como “uma gripezinha”.
Manteve, por exemplo, um grandioso desfile a céu aberto que tinha objetivo de promover os títulos do governo para patrocinar a participação na guerra. Cerca de 200 mil pessoas se aglomeraram para acompanhar o evento, que assim se tornou um epicentro de disseminação do vírus.
Conforme os casos se multiplicaram, evoluindo para colapso do sistema de saúde e mortes em massa, a prefeitura se arrependeu e passou a adotar medidas de contenção. Mas era tarde. Enquanto a Filadélfia levou duas semanas para começar a agir contra o vírus, Saint Louis demorou só dois dias entre o surgimento dos primeiros casos e o confinamento da população.
A cidade imediatamente fechou escolas, bibliotecas, restaurantes, teatros, casas de shows… e igrejas também. Resultado: enquanto a Filadélfia se transformou em uma das cidades americanas mais atingidas pela gripe espanhola, com 16 mil mortos, Saint Louis não passou de 700 mortes.
Entre os acertos, esteve o estímulo ao uso de máscaras. A proteção das vias aéreas foi adotada abrangentemente – ainda que, por uma questão de desconhecimento, alguns modelos de máscara protegessem só o nariz, deixando a boca como porta para o H1N1.
O período mais terrível da gripe espanhola terminou em dezembro de 1918, tão rápido quanto começou – embora ainda houvesse casos esparsos até 1920. Acabou como toda pandemia assim acaba: grande parte da população já tinha sido contaminada. Tornou-se imune, e o vírus pereceu por falta de novos corpos abertos para uma invasão.
Não foi o caso de um italiano que nasceu durante aquela pandemia. Seu nome, agora, só um hospital de Rimini sabe – além de seus familiares e amigos. Aos 101 anos, “Senhor P.”, como os médicos o chamaram, enfrentou agora o coronavírus. É um caso raro de superidoso, centenário, que se curou plenamente da Covid-19. Um highlander que venceu duas pandemias – e que nos enche de esperança