A hipnose nasceu do trabalho de médicos que buscavam formas de entender a mente e curar pacientes.
Texto: Agência Fronteira | Edição de Arte: Jorge Oliveira | Design: Andy Faria | Imagens: Getty Images
O
médico alemão Franz Mesmer pavimentou o caminho da hipnose ao submeter seus pacientes a sessões experimentais exaustivas. O “magnetismo”, sua teoria sobre um suposto fluido universal capaz de influenciar a saúde, fez médicos europeus do século 19 olharem com atenção para os transes curativos.
Era de maneira um tanto teatral que o padre Johann Joseph Gassner conduzia as sessões que o haviam tornado um dos exorcistas mais famosos da Europa nos anos 1760. O austríaco atendia aqueles que não tinham achado na medicina a solução para seus tormentos. Dizia que febres, convulsões, dores e outras moléstias eram causadas por espíritos maus. E achava que a cura era possível se os demônios fossem expulsos do corpo. De frente para o paciente, empregava uma sequência de artimanhas: orava, gesticulava, gritava ordens, apontava crucifixos de metal. O doente ficava mais agitado, em crise. Depois, se acalmava, supostamente curado do seu mal. Testemunhas espalhavam o que tinham presenciado. Muitas delas eram clérigos, nobres, médicos e cientistas. A fama do padre exorcista crescia.
Mas a notoriedade de Gassner vinha acompanhada de acusações de charlatanismo. A Europa vivia o ápice do pensamento iluminista, que tentava interpretar fenômenos de qualquer natureza de maneira racional, avessa a crenças religiosas. Comissões foram formadas para tentar desmascarar o padre.
O médico Franz Anton Mesmer, radicado em Viena, conduziu uma delas, no início da década de 1770. Após presenciar uma série de atendimentos, Mesmer não duvidou do poder de cura do padre, mas deu uma nova explicação: em vez de expulsar demônios, as técnicas de Gassner, sobretudo o uso do crucifixo, alteravam o “magnetismo animal” dos doentes. Há anos, o médico tentava comprovar a existência de um fluido cósmico universal, algo invisível, mas capaz de conectar forças do espaço, da Terra e dos homens. Para ele, eram desequilíbrios dessas supostas forças que causavam as doenças. Uma vez restabelecida a “harmonia magnética”, de acordo com a fantasia de Mesmer, as enfermidades sumiriam. Aos olhos de Mesmer, padre Gassner não era um exorcista. Era um “magnetizador”.

De volta a Viena, Mesmer adaptou técnicas do clérigo e criou algumas outras para tratar seus pacientes. Ele usou os novos métodos no caso de Francisca Osterlin, em 1773. A mulher de 29 anos sofria convulsões e tinha espasmos, vômitos, inflamações intestinais, alucinações, cegueira temporária, sensação de sufocamento, paralisias, dor nos dentes e nos ouvidos. Mesmer acreditava que ela tinha uma “febre histérica causada por desequilíbrio magnético” e iniciou um tratamento inusitado: fez a paciente engolir uma solução de água com ferro para, em seguida, amarrar ímãs junto ao corpo da mulher. Francisca relatou sentir as suas entranhas atravessadas por um tipo de corrente. Os sintomas atenuaram. Em semanas, depois de Mesmer repetir o processo diversas vezes, ela foi considerada curada.
O episódio correu as ruas de Viena. Centenas de pessoas procuraram Mesmer em busca de tratamento. O médico estava cada vez mais convicto da existência do tal fluido universal, só não tinha meios de comprovar cientificamente a hipótese. Mas nem todos estavam convencidos. Mais do que a falta de comprovação científica, foram os métodos esdrúxulos usados por Mesmer que o colocaram na mira das autoridades. Para evitar complicações, ele abandonou os ímãs no tratamento. Agora, ele acreditava que podia curar os doentes usando somente as mãos, de onde intuía que se desprendia o tal fluido. O médico estava convencido de que tinha uma espécie de poder para curar. Além dos pacientes, “magnetizava” pratos, copos de água, camas e outros objetos usados pelos enfermos.
Em 1777, a pianista Maria Teresa von Paradies, de 18 anos, procurou Mesmer. Cega desde a infância, ela teve os olhos avaliados por dezenas de médicos na Europa, que nada encontraram de errado. A cegueira era um mistério. Mesmer decidiu usar esse caso para convencer seus colegas médicos de que não era um enganador. Empregando suas mãos, recuperou a visão da paciente após algumas sessões. Mas a cegueira voltou. O desfecho turbulento foi um prato cheio para os críticos. Eles acusaram Mesmer de prática de magia. Sem apoio das autoridades, Mesmer deixou a Áustria disposto a levar seus conhecimentos para lugares mais abertos a novas ideias.
Franz Mesmer nasceu em 1734 na Suábia, hoje sul da Alemanha. De família católica, parecia um jovem destinado ao sacerdócio, mas deixou os estudos de teologia para obter doutorado em filosofia e medicina. Em 1759, mudou-se para Viena. A dissertação que apresentou à academia de medicina falava da influência dos planetas sobre o corpo humano e já especulava sobre a possível existência de fluidos invisíveis capazes de conectar tudo o que existe no Universo.
Não era uma ideia nova. O trabalho de Mesmer era influenciado pelos escritos do médico, químico e astrólogo renascentista Paracelso, que viveu de 1493 até 1541 e que acreditava na interferência de forças planetárias no homem. Até criou talismãs astrológicos para curar doenças, o que lhe rendeu a má fama de mago e ocultista.

Quando deixou Viena, Mesmer foi viver em Paris. Foi um período de prosperidade. Ele atendia muitos pacientes, incluindo Luís 16 e membros da corte. Os primeiros anos na França também serviram para desenvolver novas técnicas e dispositivos. O mais curioso era uma tina de carvalho cheia de água, limalha de ferro e vidro, de onde saíam hastes metálicas que os pacientes deveriam segurar. Era possível tratar até 30 pessoas ao mesmo tempo com tal engenhoca. O roteiro da cura era bem parecido com o que ocorria nas sessões de exorcismo do padre Gassner. Os pacientes entravam em crise, tinham convulsões, se debatiam. Passados alguns minutos, entravam em um tipo de transe e sentiam os sintomas incômodos sumirem. Ficavam mesmerizados.
Livros de história da medicina e textos biográficos apontam que Mesmer não era mal-intencionado. Ele tinha convicção dos seus poderes. Fama e dinheiro, por exemplo, não impediram Mesmer de solicitar a sociedades médicas parisienses validação científica para o seu trabalho. Mas dois fatores repeliam médicos e cientistas: o caráter místico do tratamento e os dispositivos estapafúrdios da clínica.
O desdém acadêmico, entretanto, não conteve a divulgação do mesmerismo com enorme eficiência por panfletos e livretos distribuídos na rua. O texto Memória sobre a Descoberta do Magnetismo Animal, escrito por Mesmer em 1779, trouxe 27 proposições sobre a nova ciência. É o mais perto que ele chegou de uma explicação sistematizada de suas ideias. Em 1781, também publicou Resumo Histórico dos Fatos Relativos ao Magnetismo Animal, com novas informações para rebater críticas. Em busca de legitimidade, Mesmer e alguns entusiastas também criaram a Sociedade da Harmonia Universal, que oferecia cursos e palestras sobre o “magnetismo animal”. Meses depois da fundação, a entidade já havia educado cerca de 300 discípulos. O mesmerismo era uma doutrina em ascensão quando, em 1785, um aluno quebrou as regras e publicou lições aprendidas em aula e que deveriam ser mantidas em segredo. As anotações outra vez alarmaram as autoridades.
Dessa vez o golpe foi duro. Um grupo de investigação da Academia Francesa de Ciências foi criado a pedido do rei Luís 16. Entre os investigadores estavam o político e cientista Benjamin Franklin, o químico Antoine Laurent Lavoisier, o astrônomo Jean-Sylvain Bailly e o médico Joseph-Ignace Guillotin. E eles foram impiedosos. O relatório dizia que, longe de ser capaz de curar doenças, o fluido nem mesmo existia. As curas não passavam de fantasia dos pacientes. Por fim, a academia ameaçou tirar a licença dos médicos que praticassem o magnetismo animal. Um segundo relatório, da Real Sociedade de Medicina, apresentava conclusões semelhantes. Ainda em 1785, Mesmer foi forçado a deixar Paris. O médico visitaria Inglaterra, Áustria, Itália e Alemanha antes de fixar residência na Suíça, onde passou boa parte de seus últimos 30 anos de vida praticamente recluso.
Apesar das críticas da academia a figuras como Mesmer, a Europa fervilhava com novas teorias, do plano político ao espiritual, no final do século 18. Tempos em que vidência, mediunidade e outras crenças ocultas eram assuntos melhor aceitos em alguns círculos intelectuais. Época em que figuras controversas como o médium sueco Emanuel Swedenborg povoavam o imaginário e lançavam hipóteses sobre a existência de espíritos e coisas parecidas.

Os preceitos de Mesmer serviram como base para outras doutrinas em ascensão, em especial para o espiritualismo cultuado em sociedades maçônicas. Nomes importantes do nascente espiritualismo europeu, como o francês Louis Claude de Saint-Martin, foram alunos de Mesmer. Eles, no entanto, não acreditavam na importância do fluido universal e achavam que poderiam agir diretamente sobre o paciente apenas com força de vontade e oração. Muitos achavam que magnetizadores contavam com a ajuda de anjos e espíritos para curar os doentes. Se Mesmer buscava comprovação científica, os espiritualistas arriscavam métodos pouco ortodoxos, como usar mulheres sonâmbulas ou videntes nas sessões. Anos mais tarde, o codificador da doutrina espírita, Allan Kardec, disse que as ideias de Mesmer prepararam o caminho para o espiritismo e que as duas correntes tinham uma ligação íntima.
Mesmer abriu um campo de investigação científica ocupado por centenas de médicos nas décadas seguintes. E não podia ser diferente, uma vez que o magnetismo era praticado como terapia em dezenas de países mesmo com a proibição na França. Até sua morte, em 1815, ele recebeu em seu refúgio médicos e cientistas interessados em aprender mais sobre suas teses. Com o tempo, a comunidade científica foi se interessando mais pelos efeitos do transe nos pacientes. Em 1842, o médico escocês James Braid cunhou o termo hipnotismo. Ele achava que o transe era uma espécie de indução ao sono e, por isso, pegou emprestada a palavra hipno (sono) do grego para descrever o fenômeno. A expressão ficou consagrada. Na segunda metade do século 19, Jean-Martin Charcot disse que hipnose era um método eficiente para tratar perturbações psíquicas, influenciando um médico austríaco chamado Sigmund Freud.
Transe ancestral
Mesmer é considerado o precursor da hipnose moderna por ter montado uma teoria – ainda que pseudocientífica – para explicar o comportamento estranho de quem mergulhava em um estado de consciência alterada. Mas, na verdade, o transe é algo tão antigo quanto a própria humanidade. São incontáveis as civilizações em que este tipo de experiência esteve presente, normalmente associada a rituais religiosos ou de curas. Mesopotâmios, persas, babilônios, assírios, egípcios, chineses, indianos, gregos, romanos. Todos buscavam o transe em rituais espirituais ou medicinais.
Textos com mais de 4.500 anos mostram como sacerdotes da Mesopotâmia deixavam doentes em transe para fazer diagnósticos e propor curas. Vasos de cerâmica encontrados no Egito apresentam desenhos de cirurgias sendo feitas por um médico de cujos olhos saem sinais mágicos ou raios, o que faz os especialistas acreditarem que o transe hipnótico fazia parte dos procedimentos — talvez com função anestésica. Para essas sociedades, o transe era uma habilidade reservada a sacerdotes, xamãs e místicos. Quando o cristianismo se consolidou na Europa, a partir do século 10, os transes hipnóticos foram praticamente varridos do continente. A Igreja condenava a prática. Na Idade Média, desenvolver esse tipo de conhecimento era coisa de bruxos ou satanistas.