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As próximas mutações

Em laboratório, o coronavírus já demonstrou o chamado escape imunológico: resistência às vacinas. Mas as mutações também podem deixá-lo mais vulnerável. Veja como a genética começa a desenhar o futuro da pandemia – e o que pode acontecer daqui para a frente.

Texto Bruno Garattoni e Eduardo Szklarz
Escultura e fotografia Carlo Giovani
Design Carlos Eduardo Hara

Texto originalmente publicado pela Super em fevereiro de 2021

Em 23 de abril de 1984, o mundo parou para ver uma entrevista na TV. A então secretária de Saúde dos Estados Unidos, Margaret Heckler, anunciava a descoberta do HIV, o vírus causador da aids. “Esperamos ter uma vacina pronta para testes em dois anos”, declarou. 37 anos depois, ainda não chegamos lá. Quase US$ 20 bilhões foram investidos, mais de 30 vacinas chegaram à fase de testes, mas nenhuma funcionou (em 2006, Heckler reconheceu que sua previsão inicial foi um tremendo erro). O HIV acabou sendo controlado por outros meios, com remédios antivirais. Mas agora, com a corrida por vacinas contra o Sars-CoV-2, e o aparecimento de mutações no vírus, essa questão volta ao centro das atenções. Será que o novo coronavírus pode acabar se tornando imune às vacinas? Boa parte dos cientistas acredita que isso pode acontecer; a dúvida é quando. E uma das alterações genéticas detectadas no vírus, a E484K, já deu um sinal especialmente preocupante (mais sobre ela daqui a pouco). Mas, ao mesmo tempo, isso não é tão catastrófico quanto parece.

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É difícil desenvolver uma vacina contra a aids por causa de algumas particularidades do HIV. Primeiro, porque ele ataca o sistema imunológico – que é justamente onde as vacinas agem. Segundo, porque é feito de RNA, e os vírus desse tipo costumam apresentar muitos erros de cópia: as mutações. Existem vacinas eficazes contra outros vírus de RNA (o da hepatite A, por exemplo). Mas a enzima que o HIV usa para copiar seu genoma, a transcriptase reversa, é especialmente imprecisa. Por isso ele sofre mutações constantes, mais frequentes que as de qualquer outro vírus conhecido. Isso o torna um alvo móvel, difícil de acertar.

O Sars-CoV-2 não é assim. Embora também seja um vírus de RNA, seu ritmo de mudanças é muito mais lento. “Ele apresenta cerca de duas mutações por mês, contra cerca de 20 do HIV”, diz o microbiólogo Ravindra Gupta, da Universidade de Cambridge. Para se copiar, o coronavírus usa uma enzima chamada “RNA polimerase dependente de RNA”, que também é propensa a erros. Mas ela tem a ajuda da proteína nsp14, que funciona como um corretor ortográfico, eliminando muitos dos erros. Esse mecanismo, aperfeiçoado ao longo da evolução, foi essencial para o desenvolvimento dos coronavírus, formados por cerca de 30 mil “letras” genéticas (mais que o triplo do HIV, por exemplo). Eles são grandes e estáveis.

Só que o Sars-CoV-2 está infectando muita gente, se replicando em escala astronômica (cada 1 ml de saliva chega a conter 10 milhões de unidades do vírus), e isso acaba fazendo com que ele acumule alterações genéticas mais depressa. As mutações passaram a frequentar as manchetes da imprensa nos últimos meses de 2020. Mas o fenômeno não surgiu ali. Começou bem antes.

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A alteração D614G

Em abril de 2020, cientistas do Los Alamos National Laboratory (onde, nos anos 1940, foi desenvolvida a bomba atômica) publicaram um estudo (1) alertando para o “surgimento de uma forma mais transmissível” do Sars-CoV-2. Ele tinha 14 mutações na  proteína spike: a “coroa”, ou espícula, que o vírus usa para penetrar nas células. A mais importante estava no 614o aminoácido, trocado de aspartato (D) por glicina (G). Por isso, a mutação foi batizada de D614G – e a nova cepa do vírus também passou a ser chamada por esse nome.

Os pesquisadores analisaram amostras coletadas em vários países europeus e constataram que a variante D614G circulava pelo continente desde fevereiro. Quando chegava a uma área, rapidamente suplantava a cepa original, de Wuhan, e se tornava dominante. Não se sabe ao certo onde ela nasceu, mas já existia na China em janeiro de 2020 e foi introduzida na Alemanha por um visitante de Xangai. Faz tempo, portanto, que o coronavírus não é mais o original. “Em maio de 2020, a gente só via a mutação D614G em 20% das sequências [amostras analisadas] no Brasil. Hoje, quase 100% das sequências no Brasil e no mundo têm essa mutação”, diz o virologista Renato Santana, da UFMG. “Já houve mais de 4 mil mutações desde o início da pandemia, só que nem todas se fixaram [no genoma do vírus]. Uma mutação só se fixa quando proporciona uma vantagem”, explica.

A mutação D614G faz isso: ela aumenta a quantidade de espículas na superfície do vírus (2), facilitando a infecção das células humanas. E essa cepa tem outra característica intrigante. No pulmão, se comporta como o vírus original. Mas testes feitos em hamsters revelaram que ela se multiplica mais no nariz e na traqueia (3), o que também pode ajudar na transmissibilidade. O aumento na quantidade de espículas não deixou o vírus mais letal nem alterou a eficácia das vacinas. Pelo contrário: tornou o Sars-CoV-2 mais vulnerável ao sistema imunológico humano (4). Isso exemplifica outro ponto-chave das mutações. Elas também podem deixar o vírus menos agressivo.

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(Carlo Giovani/Superinteressante)

A longo prazo, um vírus menos letal tem mais chance de se espalhar e encontrar novos hospedeiros, porque as vítimas conseguem continuar circulando e contaminando outras pessoas. Nem sempre é assim, claro. O HIV, por exemplo, leva à morte em quase 100% dos casos não tratados, e continua assim mesmo com todas as mutações. Mas ele é uma exceção, pois seu tempo de incubação é longuíssimo – os sintomas podem levar dez anos para se manifestar, dando tempo de sobra para o vírus realizar seu objetivo: a transmissão.

Seja como for, o fato de um vírus ser menos letal não significa, necessariamente, que ele vá matar menos gente. Pode acontecer exatamente o contrário.

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As rodadas seguintes

Em 14 de dezembro, autoridades inglesas reportaram à OMS a descoberta de uma nova variante do coronavírus: a B.1.1.7. Ela continha 23 mutações, das quais a mais importante é a N501Y (em que o aminoácido asparagina, N, foi substituído por tirosina, Y, na posição 501 da proteína spike). Essa mutação faz com que o vírus se encaixe mais facilmente às células humanas – e, portanto, seja mais contagioso. Uma equipe liderada pelo cientista britânico Nicholas G. Davies, da London School of Hygiene and Tropical Medicine, estimou que a B.1.1.7 seja 56% mais transmissível (5) que outras variantes.

Esse dado é uma projeção matemática, baseada em amostras coletadas pelo país. Mas é preocupante. Segundo o governo inglês, análises estatísticas sugerem que a nova cepa é mais mortal em pessoas acima de 60 anos (entre as quais a taxa de letalidade supostamente cresce de 1% para 1,3%), mas não há um consenso a respeito. Seja como for, só de se espalhar mais facilmente, a B.1.1.7 tende a contaminar muito mais gente – e isso já pode resultar em um número de mortes muito maior (veja quadro abaixo).

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(Carlo Giovani/Superinteressante)

A equipe do biólogo Ravindra Gupta, da Universidade de Cambridge, testou a ação da vacina da Pfizer contra a nova cepa (6). Os cientistas coletaram anticorpos de 23 pessoas que tomaram essa vacina, e testaram várias concentrações deles contra a variante B.1.1.7. Resultado: foi necessário usar uma concentração maior de anticorpos para neutralizá-la (se comparada à D614G). Mas a maioria dos participantes do estudo tinha mais de 70 anos, idade em que o sistema imunológico já está mais fraco – e mesmo assim, em todos os casos, os anticorpos eliminaram o vírus. Em janeiro a Pfizer divulgou um segundo estudo (7), feito em parceria com a Universidade do Texas, demonstrando que seu produto é eficaz contra a B.1.1.7. A Moderna Therapeutics (cuja vacina, assim como a da Pfizer, é feita com fragmentos da proteína spike) fez o mesmo.

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As vacinas de vírus inativado, como a Coronavac, em tese são menos vulneráveis a mutações – porque elas apresentam o vírus inteiro ao sistema imunológico, que pode desenvolver anticorpos contra vários pedaços dele (não só contra a proteína spike, que tem concentrado a maioria das mutações). A imprensa estatal chinesa noticiou que a vacina BBIBP-CorV, que foi desenvolvida pela empresa Sinopharm e é feita de vírus inativado, se provou eficaz contra a variante B.1.1.7.

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(Carlo Giovani/Superinteressante)

Mas a evolução continua – e, depois da cepa inglesa, veio a africana. Em dezembro, autoridades da África do Sul anunciaram a descoberta da variante 501Y.V2, detectada na região turística de Nelson Mandela Bay. A descoberta foi feita pela equipe do brasileiro Tulio de Oliveira, na Escola de Medicina Nelson Mandela, em Durban (8). Assim como a variante inglesa, a africana carrega a mutação N501Y, que aumenta a transmissibilidade do vírus. Não para aí. Ela também possui a modificação E484K, em que o 484o. aminoácido da proteína spike mudou de glutamato (E) por lisina (K). E é aí que a coisa complica.

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Um grupo de cientistas da África do Sul testou a cepa de lá (9) com anticorpos coletados de 44 pessoas que pegaram uma versão antiga do vírus (a D614G). Em quase metade dos casos, 21, “não houve atividade neutralizadora”. O vírus demonstrou o chamado escape imunológico: a capacidade de driblar anticorpos por meio de mutações. “Os dados sugerem que a maioria dos indivíduos infectados por linhagens anteriores do Sars-CoV-2 terão atividade neutralizadora mínima, ou indetectável, contra o 501Y.V2″. Traduzindo: quem já teve Covid pode ser reinfectado pela cepa africana. Não é garantido (afinal, em 23 dos 44 casos testados, os anticorpos foram eficazes contra a nova variante). Mas é uma possibilidade real.

Outros trabalhos chegaram a resultados parecidos. Cientistas do Fred Hutchinson Cancer Research Center, nos EUA, testaram os anticorpos de 17 pessoas que tiveram Covid-19 para medir seu efeito contra novas variantes do vírus (10). Concluíram que “o ponto mais importante é o E484, no qual a neutralização por alguns soros [anticorpos] é reduzida em mais de dez vezes”.

E a mutação E484K já está presente em pelo menos mais uma cepa: a de Manaus. Em 12 de janeiro, cientistas de dez instituições do Brasil e da Inglaterra publicaram um estudo (11) descrevendo essa nova variante, batizada de P.1. Os pesquisadores examinaram amostras coletadas em 31 pacientes, que haviam testado positivo para o vírus entre 15 e 23 de dezembro. 42% das infecções eram por essa nova variante. A cepa de Manaus também já foi detectada no Japão (em quatro pessoas que visitaram o Amazonas), nos EUA, na França e na Itália.

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Assim como a cepa africana, ela pode reinfectar pessoas que já tiveram Covid-19. A primeira reinfecção comprovada no Brasil foi relatada em um artigo (12) escrito por cientistas da UFMG, do Instituto D’Or de Pesquisa (IDOR) e da Fiocruz, publicado no começo de janeiro. A paciente é uma profissional de saúde de 45 anos, sem comorbidades, moradora de Salvador. Em 20 de maio do ano passado, foi diagnosticada com um caso leve de Covid-19 e se curou. Em 26 de outubro, voltou a ter a doença, agora um pouco menos leve (teve tosse, dor de garganta e cabeça e um pouco de falta de ar).

Os cientistas constataram que os dois episódios da doença foram provocados por duas cepas diferentes – e a segunda continha a mutação E484K. Em dezembro, pesquisadores identificaram outra variante, a P.2, no Rio de Janeiro. Ela é menos agressiva que a P.1; mas também tem a mutação E484K.

Essa alteração parece ser muito importante para a evolução do vírus. Numa experiência realizada por pesquisadores da Itália e dos EUA (13), amostras do Sars-CoV-2 foram cultivadas em laboratório e testadas com anticorpos extraídos de 20 pessoas. No começo, eles eram totalmente eficazes. Mas, antes que os anticorpos terminassem o serviço e matassem tudo, os cientistas coletavam um pouquinho do vírus, davam tempo para que ele se multiplicasse, e então refaziam o teste. A ideia era simular a evolução natural do Sars-CoV-2. Depois de várias rodadas, e 45 dias, surgiu a primeira mutação relevante, que tornava o vírus um pouco mais resistente aos anticorpos. Aí, no 73o dia, adivinhe só quem apareceu: a mutação E484K.

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Na semana seguinte vieram duas outras mutações, na região N-terminal (NTD) da proteína spike, também encontradas nas cepas inglesa e africana. Essas três alterações geraram uma linhagem “completamente resistente” aos anticorpos originais. “O recente surgimento no Reino Unido e na África do Sul de variantes naturais, com mudanças similares, sugere que o Sars-CoV-2 tem o potencial de escapar da resposta imune, e que vacinas e anticorpos capazes de controlar variantes emergentes devem ser desenvolvidos”, dizem os autores. A mutação E484K também reduz a eficácia dos anticorpos monoclonais (artificiais) usados contra a Covid-19 (Donald Trump, ex-presidente dos EUA, foi tratado com um deles).

Em um teste feito na África do Sul com 2 mil pessoas jovens, a vacina de Oxford não reduziu a quantidade de casos leves e moderados de Covid-19 (como os participantes tinham em média 31 anos, faixa etária em que a Covid severa é menos comum, não foi possível determinar se a vacina perdeu eficácia contra casos graves). A Pfizer e a Moderna anunciaram que suas vacinas se mantiveram eficazes contra a variante africana, mas que ela é um pouco mais resistente.

A Moderna fala, também, num risco de perda prematura da imunidade às novas cepas [a 501Y.V2 africana e suas derivadas]“. Ou seja, o efeito da vacina passaria mais rápido. A empresa já está desenvolvendo uma versão atualizada – que poderá ser aplicada, caso necessário, após as duas doses da vacina atual. Esse alerta poderá valer, também, para a cepa inglesa. No começo de fevereiro, o governo inglês anunciou que 11 amostras da variante  B.1.1.7 apresentavam uma alteração nova: elas haviam incorporado, também, a mutação E484K.

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As cepas contendo as mutações N501Y e E484K deverão eliminar as antecessoras, já que se espalham melhor – e serão a base a partir da qual surgirão as próximas mutações do coronavírus. E a possibilidade de reinfecção por essas variantes traz outro elemento: a coinfecção, ou seja, a mesma pessoa carregar duas cepas ao mesmo tempo no organismo. Isso foi detectado em duas pessoas no Rio Grande do Sul, e também há alguns casos em outros países. Aparentemente, a coinfecção não causa uma Covid-19 mais agressiva (os contaminados do RS, por exemplo, tiveram sintomas leves). Mas, quando duas cepas do vírus entram em contato dentro do organismo, podem trocar elementos genéticos entre si – levando a novas mutações.

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(Carlo Giovani/Superinteressante)

Você deve estar pensando: o Sars-CoV-2 não era um vírus estável, que evolui devagar? Como ele pode, em relativamente pouco tempo, se tornar capaz de driblar anticorpos? A possível explicação está numa das características mais intrigantes do vírus: sua capacidade de causar infecção prolongada.

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A aceleração das mutações

Em maio de 2020, um paciente com Covid-19 e linfoma (câncer do sistema linfático) deu entrada num hospital da Inglaterra. Ele recebeu rituximab, um medicamento que ajuda a controlar o câncer, mas enfraquece o sistema imunológico. O paciente também foi medicado com o antiviral remdesivir e recebeu três transfusões de plasma convalescente, ou seja, de pessoas que tiveram a Covid-19 e se curaram – a ideia é que os anticorpos delas combatam o Sars-CoV-2. O paciente acabou morrendo, de coronavírus, após 101 dias. Durante todo esse tempo, o vírus foi mudando dentro do corpo dele. E adquiriu três mutações: a delta H69/V70 (perda de dois aminoácidos) e a D796H (substituição do aminoácido D pelo H), ambas na proteína spike. Elas tornaram o vírus resistente aos anticorpos do plasma.

A descoberta foi divulgada em dezembro pelo biólogo Ravindra Gupta, da Universidade de Cambridge, que acompanhou o paciente e sequenciou o genoma do vírus 23 vezes ao longo dos 101 dias (14). Ele foi o primeiro cientista a detectar o escape imunológico do Sars-CoV-2. “Nós mostramos, em tempo real, que o vírus pode mudar a proteína spike para tornar os anticorpos menos capazes de reconhecê-la”, diz Gupta. Num caso similar relatado por cientistas americanos, um homem de 45 anos ficou 154 dias carregando o vírus – que apresentou 66 mutações ao longo desse período (15).

Na maioria das pessoas que pegam o Sars-CoV-2, essa evolução não acontece. Elas contraem o vírus e podem ter ou não sintomas, mas geralmente a doença se resolve rápido. Em pacientes imunocomprometidos, no entanto, o corpo pode lutar contra o vírus por meses a fio. “Essas longas infecções são as que mais nos preocupam, pois é nelas que a evolução acontece”, diz Gupta. Quem fica muito tempo com o vírus no organismo pode acabar servindo como uma fonte de novas cepas – que então são transmitidas a profissionais de saúde e se espalham pela sociedade.

Gupta também constatou que o uso do plasma convalescente acabou acelerando as mutações. Nos primeiros dois meses, houve poucas mudanças na população viral dentro no paciente, mesmo após duas rodadas de tratamento com remdesivir. Mas depois que ele recebeu as primeiras transfusões de plasma, nos dias 63 e 65, a população viral mudou drasticamente – e houve o surgimento de uma nova cepa dominante contendo as mutações delta H69/V70 e D796H. A frequência dessas mutações diminuiu nos dias posteriores, mas voltou a aumentar após a terceira infusão de plasma, no dia 95. “A mutação delta H69/V70 está presente na variante inglesa”, diz Gupta. Essa cepa, que hoje se espalha pelo mundo, pode ter surgido em algum paciente que ficou muito tempo com o vírus no organismo e foi tratado com plasma.

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Gupta se diz preocupado com a possibilidade de que mutações como a delta H69/V70 driblem as vacinas. Por enquanto, é só receio. “Ainda não há provas de que qualquer das mutações já detectadas afetará significativamente a eficácia das vacinas”, diz o biólogo Sanjay Mishra, da Universidade Vanderbilt, nos EUA. “A probabilidade é remota, e ainda precisa ser validada.”

Programas de vacinação mal geridos também podem interferir com a trajetória das mutações. Como não há vacina suficiente para todo mundo, a Inglaterra decidiu mudar sua estratégia: lá, a segunda dose será aplicada três ou quatro meses após a primeira (e não 21 a 28 dias depois, como nos testes clínicos). Essa tática, que está sendo cogitada por São Paulo e pelo Ministério da Saúde, permite vacinar mais pessoas de imediato e salvar mais vidas. Fato. Mas, para alguns cientistas, o adiamento da segunda dose pode deixar muita gente com anticorpos insuficientes para eliminar o vírus. Nesse cenário hipotético, o sistema imunológico mataria parte do Sars-CoV-2 presente no organismo, mas não tudo. E exerceria pressão seletiva, dando maior oportunidade para que vírions (unidades do vírus) contendo mutações se tornassem dominantes – gerando novas cepas.

“Se eu quisesse tornar as vacinas ineficazes, tentaria algumas coisas”, escreveu de forma irônica o virologista Paul Bieniasz, da Universidade Rockefeller, em artigo (16)  postado no Twitter. Ele discute seis possibilidades, inclusive a de “tratar dezenas de milhares de pessoas com plasma de potência baixa ou incerta”, e conclui com o adiamento da segunda dose das vacinas, que considera crítico. “Podemos não conseguir isso [mutações que driblam a vacina] logo após a primeira dose, mas, se deixarmos a imunidade decair por algum tempo, digamos de 4 a 12 semanas, poderemos atingir o ponto ideal”, provocou.

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Alguns pesquisadores manifestaram a mesma preocupação. “Nós não queremos estimular [mutações] fazendo uma imunização subótima da população”, declarou o virologista Ramon Lorenzo-Redondo, da Northwestern University, à revista Science. “É uma preocupação real, mas é bem pequena”, rebateu o médico Chris Whitty, principal consultor do governo inglês para coronavírus. Segundo ele, o risco de acelerar as mutações é meramente teórico.

Os cientistas ouvidos pela Super são contra o adiamento, mas por outro motivo. “O maior risco é que possa haver uma resposta mais fraca na segunda dose se o intervalo for maior que o ideal”, diz Sanjay Mishra. “A única maneira de saber se está tudo ok é por meio de ensaios controlados, o que poderia ser feito alterando o protocolo do estudo atual, em vez de mudar arbitrariamente a programação”, afirma. “A eficácia medida só é possível no modelo que foi feito, com as duas doses. Se você começa a dar uma dose única, é quase um novo estudo”, diz Renato Santana, da UFMG. “Os protocolos devem ser seguidos. Não adianta gastar dinheiro disponibilizando a primeira dose para todo mundo, se depois não teremos a segunda dose e não geraremos uma resposta adequada”, afirma. A vacina de Oxford foi testada num intervalo mais longo em parte dos voluntários (17), com a segunda dose aplicada 9 a 12 semanas após a primeira, e isso não comprometeu sua eficácia. Mas as demais vacinas não foram testadas dessa forma. OMS e Pfizer já se manifestaram contra o adiamento.

Boa parte dos cientistas acredita que, a médio ou longo prazo, as vacinas contra o Sars-CoV-2 terão de ser refeitas e reaplicadas para cobrir novas cepas. Mutações, tanto as atuais quanto as que virão, são inevitáveis. Mas podemos lidar com elas. O desenvolvimento e a fabricação de vacinas contra cepas mutantes serão mais rápidos – já dominamos as tecnologias envolvidas, e não será necessário fazer testes tão longos (pois as vacinas-base já demonstraram sua segurança).

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É o que acontece, todo ano, na criação de novas vacinas contra a gripe comum. Mas o melhor exemplo talvez seja a campanha contra o vírus H1N1, da gripe suína. Ele é uma mutação letal do Influenza A, que causa a gripe comum, e começou a se espalhar em abril de 2009. A OMS declarou pandemia e os testes da vacina começaram em julho. A produção foi iniciada em novembro, rapidamente cobriu grande parte da população (o Brasil vacinou mais de 100 milhões de pessoas, sendo 80 milhões em apenas três meses) e hoje o H1N1 não é mais um problema. Que seja assim, também, com o Sars-CoV-2.

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(Carlo Giovani/Superinteressante)

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Fontes 

1. Spike mutation pipeline reveals the emergence of a more transmissible form of SARS-CoV-2. B Korber e outros, 2020. 2. SARS-CoV-2 spike-protein D614G mutation increases virion spike density and infectivity. L Zhang e outros, 2020. 3. Spike mutation D614G alters SARS-CoV-2 fitness. J Plante e outros, 2020. 4. D614G Spike Mutation Increases SARS CoV-2 Susceptibility to Neutralization. D Weissman e outros, 2020.

5. Estimated transmissibility and severity of novel SARS-CoV-2 Variant of Concern 202012/01 in England. N Davies e outros, 2020. 6. Impact of SARS-CoV-2 B.1.1.7 Spike variant on neutralisation potency of sera from individuals vaccinated with Pfizer vaccine BNT162b2. R Gupta e outros, 2021. 7. Neutralization of N501Y mutant SARS-CoV-2 by BNT162b2 vaccine-elicited sera. X Xiu e outros, 2021.

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8. Emergence and rapid spread of a new severe acute respiratory syndrome-related coronavirus 2 (SARS-CoV-2) lineage with multiple spike mutations in South Africa. T Oliveira e outros, 2020. 9. SARS-CoV-2 501Y.V2 escapes neutralization by South African COVID-19 donor plasma. C Wibmer e outros, 2021.

10. Comprehensive mapping of mutations to the SARS-CoV-2 receptor-binding domain that affect recognition by polyclonal human serum antibodies. A Greaney e outros, 2021.11. Genomic characterisation of an emergent SARS-CoV-2 lineage in Manaus: preliminary findings. N Faria e outros, 2021. 12. Genomic Evidence of a Sars-Cov-2 Reinfection Case With E484K Spike Mutation in Brazil. C Vasques e outros, 2021. 13.  SARS-CoV-2 escape in vitro from a highly neutralizing COVID-19 convalescent plasma. E Andreano e outros, 2020.

14. Neutralising antibodies drive Spike mediated SARS-CoV-2 evasion. RK Gupta e outros, 2020. 15. Persistence and Evolution of SARS-CoV-2 in an Immunocompromised Host. B Choi e outros, 2020. 16. https://twitter.com/PaulBieniasz/status/1345195420033691648 17. Covid-19 vaccination: What’s the evidence for extending the dosing interval? British Medical Journal, 2021.

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