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Ciência

Brasil abaixo de zero: o que fazem os cientistas brasileiros na Antártida

A ciência produzida pelo programa antártico nacional vai além da recém-inaugurada Estação Comandante Ferraz. Entenda as perguntas que cientistas brasileiros tentam responder – e a importância de se fazer pesquisa na Antártida.

por Guilherme Eler Atualizado em 17 ago 2020, 19h00 - Publicado em
26 fev 2020
16h45

A ciência produzida pelo programa antártico nacional vai além da recém-inaugurada Estação Comandante Ferraz. Entenda as perguntas que cientistas brasileiros tentam responder – e a importância de se fazer pesquisa na Antártida.

Texto: Guilherme Eler | Design: Lucas Jatobá | Edição: Alexandre Versignassi | Foto: Estúdio 41 Arquitetura


O continente gelado nunca esteve tão quente. Pode parecer algo estranho de se dizer sobre a Antártida, já que, por lá, os termômetros ficam no negativo a maior parte do tempo. Mas dados recentes confirmam: em fevereiro de 2020 a temperatura na Ilha Seymour, na Península Antártica, superou os 20 ºC – atingindo 20,75 ºC – pela primeira vez na história.

A descoberta tem assinatura brasileira: o grupo que registrou a alta inédita foi o Terrantar, projeto nacional que mantém 26 pontos de pesquisa climática espalhados pela Antártida. Na estação da Ilha Seymour, os equipamentos de medição são movidos a energia solar e trabalham de forma 100% autônoma. Isso permite transmitir os dados via satélite (e em tempo real) para pesquisadores que estão no Brasil.

Parte importante da ciência glacial brasileira – principalmente os estudos sobre o clima e os efeitos do aquecimento global – é feita dessa maneira. Cientistas que participam desses projetos só visitam a Antártida para fazer manutenção e calibrar instrumentos, que funcionam sem pausas captando informações sobre o ambiente. A maior parcela dos trabalhos de campo, porém, ainda exige que os pesquisadores passem dias a fio no gelo para recolher novas amostras por conta própria.

Hoje, a Operação Antártica nacional envolve 23 projetos de campo e 250 pesquisadores. Dezenas deles viajam para a Antártida todos os anos. Em termos de temperatura, o cenário menos gelado para uma visita fica na Ilha Rei George, também localizada na Península Antártica. É lá que está a Estação Comandante Ferraz – base científica que se encontra 850 km a sul do Cabo Horn, o ponto mais austral da África do Sul.

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18 milhões: é o investimento federal nas pesquisas antárticas para o período entre 2019 e 2022.

Entre os meses de novembro e março, no chamado verão antártico, a temperatura da região oscila entre os 5 graus positivos e os 5 graus negativos. É nessa janela do ano que as viagens precisam acontecer. Tudo porque as temperaturas da Ilha Rei George despencam a – 20 ºC no inverno e um cinturão de gelo de 1.000 km de extensão se forma na costa, dificultando a navegação.

Além de uma estrutura mais robusta para enfrentar temperaturas de gelar a espinha, quem pesquisa ali tem a comodidade de fazer ciência em instalações novas em folha. A estação brasileira na Antártida foi reinaugurada em janeiro de 2020, após três anos de construção. Feita por uma empresa chinesa, ela ocupa uma área de 4,5 mil metros quadrados, tem 17 laboratórios – com espaço para abrigar até 65 pessoas. Sua estrutura foi projetada para suportar ventos de até 200 km/h e não sofrer com o acúmulo de neve. O custo? US$ 99,6 milhões, bancados pelo governo brasileiro.

A nova Comandante Ferraz chega para substituir a versão anterior, que funcionava no local desde 1984, mas que em 2012 teve 70% das instalações consumidas por um incêndio. O fogo, que matou dois militares de plantão, foi fruto de um vazamento acidental de combustível.

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Pesquisadores recolhem microrganismos no permafrost.
Pesquisadores recolhem microrganismos no permafrost. (Luiz Rosa / Proantar/Reprodução)

Além de abrigar os cientistas, a estação é o local onde a análise do material coletado nas visitas a campo começa. As pesquisas nos laboratórios da base se concentram na área de ciências biológicas. Aproveitando a estrutura recém-instalada, a Fiocruz (Fundação Oswaldo Cruz) inaugurou em 2020 um laboratório ali, dedicado ao estudo de bactérias e vírus que só existem na Antártida. A ideia é, a partir deles, desenvolver medicamentos e mapear o surgimento de novas doenças.

A pesquisa com musgos antárticos também vem ganhando destaque. Essas plantas, de acordo com os cientistas, podem esconder substâncias com potencial para tratar câncer e doenças causadas por micróbios, por exemplo. Outro foco atual é entender o quão viável é usar musgos para a produção da L-Asparaginase, molécula usada no tratamento de um tipo de leucemia.

Até 50 dias: é o tempo que cientistas costumam passar na Antártida.

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Apesar da variedade, só 25% das pesquisas nacionais acontecem na estação recém-inaugurada. O restante do trabalho é feito a bordo do Navio Polar Almirante Maximiano, nos módulos automatizados ou, ainda, em acampamentos no meio do gelo. E é nesses locais que o frio – e o clima antártico – costumam castigar de verdade.

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(Marinha do Brasil / UFRGS/Reprodução)
Onde as pesquisas acontecem

Cientistas costumam viajar para a Antártida no verão – entre novembro e março. Quando não ficam acampados, eles têm três destinos principais.

1 – Estação Comandante Ferraz
Serve como local de triagem e preparação do material coletado em campo. Depois dessa análise preliminar, amostras são levadas para as universidades e centros de pesquisa no Brasil. É neles que os projetos são desenvolvidos ao longo do ano.

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2 – Módulos Automatizados
É o caso do Criosfera 1, que você vê na foto ao lado. Ele conta com equipamentos capazes de perfurar o solo congelado e acessar informações sobre como era a atmosfera da Terra há milhares de anos. Autossustentável, a estação funciona a partir de energia solar e envia informações via satélite, e em tempo real, para o Inpe (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais).

3 – Navio Almirante Maximiano
Foi comprado em 2009 por R$ 71 milhões. Conta com cinco laboratórios e pode transportar até 113 pessoas. Além de fazer o traslado de cientistas, possui ultrafreezers que conservam amostras biológicas a -80 ºC.

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Isolado, frio e extremo

“É difícil para um brasileiro entender isso, mas a Ilha Rei George é muito, muito quente”, diz Jefferson Simões, professor da UFRGS (Universidade Federal do Rio Grande do Sul) e líder científico do programa antártico brasileiro (Proantar). A Antártida, afinal, é um continente. “É que nem esperar que Porto Alegre e Manaus tivessem o mesmo tipo de clima. Estamos falando de uma região que possui 1,6 vez o tamanho do Brasil. Então, temos condições totalmente diferentes.”

14 milhões de quilômetros quadrados: é o tamanho do continente antártico. A Antártida possui 90% do gelo e 70% da água doce do mundo. Seu degelo poderia subir o nível dos mares em até 63 metros.

Pesquisador na área de ciência antártica desde a década de 1980, Simões coordena as atividades do módulo Criosfera 1, onde a temperatura média bate os 33 graus negativos. A estação funciona desde 2012 e está a 2.490 quilômetros da Estação Comandante Ferraz. Trata-se da base científica latino-americana mais ao sul do planeta, distante só 667 quilômetros do polo sul geográfico – contra 3.115 da Estação Comandante Ferraz. Em um ponto tão afastado da costa, a neve nunca derrete. E o gelo acumulado ali torna a Antártida uma verdadeira enciclopédia sobre o clima e o meio ambiente.

2490 km: é a distância entre a Estação Comandante Ferraz e o Criosfera 1, o primeiro centro de pesquisas brasileiro a ocupar o interior do continente.
2490 km: é a distância entre a Estação Comandante Ferraz e o Criosfera 1, o primeiro centro de pesquisas brasileiro a ocupar o interior do continente. (Lucas Jatobá / Getty Images/Montagem sobre reprodução)

Geleiras são formadas pelo acúmulo de cristais de neve. Quando condensam na atmosfera, esses cristais adquirem características da química atmosférica que o planeta tinha na época. Essas partículas, então, caem na superfície da Antártida e vão acumulando sob a camada de gelo. Assim, quanto mais profunda, mais antiga é a amostra. E mais primitivas são as informações atmosféricas que ele pode revelar.

A estrutura disponível no Criosfera 1 permite retirar blocos de gelo a uma profundidade de até 200 metros, graças à ajuda de brocas potentes. É aquilo que os pesquisadores chamam de “testemunhos de gelo”.

Pelo fato de o gelo nunca derreter, só acumular, acessar camadas mais profundas do solo antártico significa embarcar numa viagem no tempo. Analisando aspectos como fragmentos de rocha e poeira presos nas amostras, pesquisadores conseguem dizer como era a atmosfera de 2 mil anos atrás. A partir desse relatório, é possível saber se, há dois milênios, a Terra era mais quente ou mais fria, se os ventos eram mais fortes ou mais fracos, e com qual frequência aconteciam erupções vulcânicas, por exemplo. “Olhando para um passado mais moderno, é possível contar a história da poluição causada pelo homem”, completa Simões.

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Hoje já existe tecnologia para ir ainda mais fundo. Pesquisadores russos e franceses, por exemplo, conseguem escavar até 3,7 quilômetros, recuperando amostras com até 800 mil anos.  Segundo Simões, é possível chegar a camadas de até 1,5 milhão de anos. “Provavelmente deve ser o gelo mais antigo que nós vamos conseguir acessar com essa técnica”, diz.

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(Luiz Rosa / Proantar/Reprodução)

O trabalho coordenado por Luiz Rosa, pesquisador da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais) que viaja à Antártida desde 2006, também investiga o solo antártico. Seu foco, porém, está em revirar o permafrost – solo congelado – de diferentes ilhas da Península Antártica, à procura de fungos escondidos nas camadas mais superficiais de gelo.

“A maioria desses fungos está presente no permafrost na forma de esporos, mas quando colocados em condições favoráveis são capazes de germinar e crescer. Em outras palavras, eles estão vivos”, explica. Como os fungos nativos da Antártida estão isolados há milhares de anos, eles podem sintetizar substâncias únicas. Segundo testes preliminares, tais substâncias podem ter um amplo espectro de aplicações. Elas se estendem desde a um tipo de corante alimentar azul, para servir à indústria alimentícia, até anticongelantes úteis à aeronáutica. As pesquisas contam com recursos do MCTIC (Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Telecomunicações), além de bolsas de fomento de órgãos como CNPq e Capes.

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O Laboratório de Microbiologia Polar, que centraliza os estudos com fungos, é uma das estruturas que ficam a bordo do Navio Polar Almirante Maximiano. A embarcação oferece uma vida bem diferente daquela enfrentada por pesquisadores acampados, por exemplo. E o principal fator por trás disso não são nem as temperaturas ou a umidade, mas a incidência de luz.

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(Acervo Mediantar/Reprodução)

E isso também é alvo das pesquisas de outro grupo da UFMG, o Mediantar (Medicina, Fisiologia e Antropologia Antártica), coordenado pela profa. Dra. Rosa Arantes. A ideia do projeto é estudar as particularidades de se viver nos diferentes ambientes ICE (do inglês “isolados, frios e extremos”) a que pesquisadores estão expostos na Antártida.

No verão antártico, o Sol brilha por pelo menos 20 horas ao dia. Em acampamentos onde os cientistas vivem durante coletas de campo, o excesso de luz mostrou ter relação direta com alterações na concentração de alguns hormônios. Quando a lona das barracas é o único escudo capaz de parar os raios solares, costuma haver aumento nas taxas de cortisol – hormônio relacionado ao estresse. No navio, que é um ambiente mais fechado, e, naturalmente, mais escuro, os níveis de cortisol diminuem.

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Dados coletados no último verão antártico permitirão aos cientistas estudar o impacto desse regime de luz no ritmo circadiano. “A falta de escuridão gera uma alienação quanto aos horários. Me vi várias vezes trabalhando de manhã até de madrugada. Olhava para a janela e ainda estava de dia”, conta Thiago Mendes, que voltou de uma temporada na Estação Comandante Ferraz em fevereiro de 2020. Em 2021, Mendes pretende acompanhar um grupo de militares da Marinha durante um ano – e analisar como seu corpo responde também ao escuro inverno antártico.

O que brasileiros pesquisam na Antártida

Clima
Escavar camadas profundas de gelo pode revelar como era a atmosfera há milhares de anos – mapeando a evolução das mudanças climáticas.

Vírus e doenças
Uso de vírus e outros microrganismos exclusivos da Antártida para a produção de novos remédios para tratar doenças tropicais.

Efeitos do frio
As consequências que baixas temperaturas, excesso de luminosidade e isolamento podem ter na saúde física e mental de pesquisadores.

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Paleontologia
Descoberta de novos registros de fósseis antárticos ajuda a recriar a época do Gondwana, quando a Antártida era verde e unida aos outros continentes.

Fungos antárticos
Microrganismos que vivem no frio extremo e podem servir para a criação de herbicidas e pesticidas naturais, menos tóxicos para a agricultura.

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Boa vizinhança

Mais do que para expandir o que a humanidade conhece sobre ambientes gelados, fazer pesquisa na Antártida também é importante do ponto de vista diplomático. Isso porque a região é a única do mundo que não está sob o controle de um país. Foi o que estabeleceu o Tratado Antártico, que vale desde 1961: segundo o documento, assinado por 54 nações, o continente deve ser usado exclusivamente para fins pacíficos – leia-se produção científica. Países estão impedidos, assim, de bancar quaisquer pretensões militares ou econômicas ali.

O Brasil é signatário do Tratado Antártico desde 1975, e desde 1982 envia cientistas à região. Em 1983, o País ganhou status de membro consultivo. Esse grupo reúne os 29 países que têm poder de voz e veto sobre as decisões. Em resumo, são aqueles que podem apitar sobre o que será feito do continente antártico.

O simbolismo da Antártida como patrimônio intocado da humanidade permanece pelo menos até 2048. É a partir desse ano que membros consultivos poderão propor outros usos para a região. Trata-se de um dos únicos momentos na história recente da diplomacia em que o Brasil poderá opinar em pé de igualdade com outras potências mundiais. Tudo graças à relevância de seu programa antártico.

A escolha mais racional, claro, seria manter o acordo que deixa a pesquisa científica reinar sozinha. Mas, com interesses financeiros globais em jogo – e especulações sobre supostas reservas ainda não mapeadas de gás, minérios e petróleo na Antártida –, isso não deverá ser tão fácil.

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