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Campos de concentração na China

Cerca de 1 milhão de chineses muçulmanos já foram mandados para um dos 380 “campos de reeducação” construídos nos últimos anos. Há relatos de tortura, trabalhos forçados, lavagem cerebral e até experiências médicas.

Texto: Tiago Cordeiro e Bruno Garattoni | Ilustração: Davi Augusto | Design: Carlos Eduardo Hara

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ihrigul Tursun nasceu em 1989 na Região Autônoma de Xinjiang, no noroeste da China, onde vivem 22 milhões de pessoas. Doze milhões, ela inclusive, são da etnia uigur: um povo muçulmano cujo território foi ocupado pelos chineses no século 17 (“xinjiang” significa “nova fronteira” em chinês). Quando Mihrigul tinha 12 anos, se mudou para Guangzhou, no sul da China, onde cursou o ensino médio. Acabou ficando por lá, onde fez faculdade de economia e arrumou emprego numa empresa que faz negócios com o Oriente Médio. Quando tinha 21 anos, ela viajou para o Egito, onde conheceu seu marido. Eles se casaram, Mihrigul teve trigêmeos e ficou por lá até 2015, quando resolveu voltar para a China, levando os filhos.

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Foi presa assim que chegou ao país, sem saber o motivo. As crianças foram levadas pelas autoridades. Quando Mihrigul foi solta, três meses depois, descobriu que uma delas havia morrido, e as outras duas tinham sinais de maus- tratos. Ela foi impedida de deixar a China e ficou morando em Xinjiang, onde foi novamente presa em 2017: mais três meses, divididos entre uma cadeia e um hospital psiquiátrico. Em 2018, veio a última – e pior – detenção. Mihrigul foi levada para um “centro de reeducação” construído pelo governo chinês, onde ficou numa cela com mais 40 mulheres.

Elas eram obrigadas a tomar comprimidos que as faziam desmaiar e um líquido branco que causava efeitos estranhos – hemorragias em algumas mulheres, e a interrupção da menstruação em outras. Mihrigul diz que nove colegas de cela morreram durante o tempo em que ficou presa. Ela chegou a ser levada para uma sala de tortura, onde foi eletrocutada. Sob pressão do consulado egípcio, as autoridades chinesas acabaram soltando Mihrigul após três meses. Mas havia uma última armadilha. “Duas horas antes de me informarem que eu seria solta, me deram uma injeção”, disse ela em depoimento ao Congresso dos EUA (país onde obteve asilo e vive atualmente). Exames médicos revelaram que Mihrigul havia sido esterilizada.

A economista Mihrigul Tursun, de 31 anos, foi presa três vezes pelo governo chinês. Na última delas, foi mandada para um dos campos, onde ficou 90 dias.
A economista Mihrigul Tursun, de 31 anos, foi presa três vezes pelo governo chinês. Na última delas, foi mandada para um dos campos, onde ficou 90 dias. (Davi Augusto/Superinteressante)

A China confirma que ela foi presa, suspeita de ligações com terrorismo, mas nega os maus-tratos e torturas, e diz que seus campos de reeducação não são cadeias. “Os centros de educação e treinamento em Xinjiang são escolas, não ‘campos de concentração’. Todos os centros possuem departamentos médicos, que oferecem serviços gratuitamente aos trainees”, declarou um porta-voz do governo ao jornal estatal Global Times. Segundo as autoridades, lá as pessoas aprendem mandarim e têm acesso a cursos de requalificação profissional. Mas essa versão não tem colado. Em outubro de 2020, um grupo de 39 países liderado pela Alemanha fez um protesto na ONU, conclamando a China a “respeitar os direitos humanos, particularmente os direitos de pessoas pertencentes a minorias religiosas e étnicas, especialmente em Xinjiang e no Tibete”. Imagens de satélite analisadas pela ONG Australian Strategic Policy Institute (1) revelam que há 380 campos do tipo, e outros 14 sendo construídos.

Estima-se que mais de 1 milhão de uigures já tenham passado pelos campos, cuja construção foi acelerada em 2014, quando dois atentados terroristas, em maio e junho, deixaram 134 mortos e centenas de feridos em Xinjiang. Além de espalhar pânico entre a população da região, as ações foram uma afronta ao governo chinês – o presidente da China, Xi Jinping, havia visitado a região em março, quando prometera enxotar os terroristas “como ratos”.

Depois dos atentados, o país também foi implantando um sistema de hipervigilância na região, onde aplica suas tecnologias mais modernas. Em dezembro de 2020, o jornal americano Washington Post teve acesso a um documento, assinado por funcionários da empresa de telecomunicações Huawei, que apresentava às autoridades chinesas um novo tipo de inteligência artificial: capaz de analisar imagens de câmeras em tempo real e reconhecer rostos uigures, para então alertar a polícia sobre a presença de pessoas dessa etnia.

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Em 2016 e 2017, a China convocou toda a população de Xinjiang para exames de rotina em postos de saúde da região. Mas eles eram meio estranhos. Segundo o uigur Tahir Amin, que fez os exames e os descreveu ao jornal New York Times, os médicos nem se preocuparam em usar um estetoscópio para checar seu coração. Mas, além de tirar uma amostra de sangue, colheram as impressões digitais, escanearam o rosto e gravaram a voz dele. Esse conjunto de informações físicas, genéticas e eletrônicas pode estar sendo usado para alimentar um monstruoso banco de dados, sem igual no mundo. A China quer controlar os uigures. Mas não é fácil fazer isso com milhões de pessoas sem incorrer em uma boa dose de violência – física e psicológica.

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Culpados por existir

“No início de 2016, a polícia começou a prender as pessoas de noite, secretamente”, declarou a muçulmana Sayragul Sauytbay ao jornal israelense Haaretz. Ela nasceu e cresceu em Xinjiang, onde se tornou professora, mas sua família é do Cazaquistão. “Em 2017, eles começaram a pegar pessoas que tinham parentes fora da China. Vieram até minha casa, colocaram um saco na minha cabeça e me levaram até o que parecia uma cadeia.” Sauytbay foi interrogada e liberada, mas por poucos meses. “Em novembro, me disseram para ir até um determinado endereço e esperar a polícia por lá.”

Quatro homens apareceram, cobriram a cabeça dela com um saco e a colocaram num carro, que rodou durante uma hora. Ela havia sido levada para um dos campos de reeducação, onde deveria ensinar chinês aos detentos. Sauytbay teve de assinar um documento aceitando as regras do campo, que proibiam rir, chorar ou conversar com os internos. “[O documento] dizia que se eu não cumprisse minha tarefa, ou não obedecesse, receberia a pena de morte.” Além de lecionar mandarim, Sauytbay tinha de ensinar músicas e slogans políticos aos alunos. Em março de 2018, ela foi liberada e fugiu para o Cazaquistão.

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Clique na imagem para ampliar. (Carlos Eduardo Hara/Superinteressante)

Seu caso não é o único. Qelbinur Sidik era uma professora de mandarim com 28 anos de experiência quando foi convocada para dar aulas do idioma dentro de um dos campos, em 2018. Ficou apavorada. Fazia anos que ela ouvia relatos de que vizinhos seus, uigures como ela, eram detidos sem motivo aparente, e desapareciam sem deixar rastros. “Uma colega viu o próprio pai, a mãe e três irmãos serem presos pela polícia. Eles ouviam que, para quem lê o Alcorão, a pena de prisão é de oito anos”, disse ela em entrevista ao jornal francês Libération.

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Na primeira aula, Sidik notou que os alunos chegaram com correntes nos pés. Ela começou com o cumprimento tradicional muçulmano: salaam aleikum (“que a paz esteja sobre você”). Ninguém respondeu. Ela constatou que não era permitido expressar nenhum sinal de fé. “Encontrei senhores de mais de 70 anos, que choravam sem parar”, lembrou. Um de seus alunos era um dos homens mais ricos da região onde vivia. Ao fim de uma aula, pediu a ela alguns segundos para olhar pela janela, para ver a luz do sol à qual não tinha acesso da cela. Desapareceu de um dia para o outro. Ela descobriu depois que o homem morreu de hemorragia cerebral. Sidik também soube das cirurgias de esterilização realizadas em mulheres de idades variadas, de adolescentes a idosas. A professora acabou sendo deslocada para outro campo de detenção. E aí, mesmo já tendo 50 anos de idade, também foi submetida a uma cirurgia de esterilização. “Sangrei muito, passei um mês no hospital.” Em 2019, ela acabou conseguindo autorização para ir embora da China, e hoje vive na Holanda.

A professora Sayragul Sayutbay diz ter sido levada para um dos campos, onde lecionou mandarim e músicas de teor político aos alunos – que usavam correntes nos pés.
A professora Sayragul Sayutbay diz ter sido levada para um dos campos, onde lecionou mandarim e músicas de teor político aos alunos – que usavam correntes nos pés. (Davi Augusto/Superinteressante)

Há dezenas de depoimentos como esses, coerentes entre si – os relatos contêm detalhes semelhantes, mesmo nos casos de sobreviventes que não se conhecem e foram levados a campos diferentes. A China alega que está combatendo o terrorismo e tentando integrar os uigures. Mas tem uma história antiga de rivalidade com esse povo. Os uigures são uma etnia que habita a Ásia Central há mais de 6 mil anos. Atualmente, vivem no Paquistão, no Cazaquistão, no Quirguistão, no Uzbequistão e na Mongólia – mas principalmente na China. Desde o século 10, são majoritariamente islâmicos.

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Ao longo de sua trajetória, essa etnia trombou com os chineses em diferentes ocasiões. Por duas vezes, no século 20, os uigures chegaram a ser independentes. A primeira delas foi entre novembro de 1933 e abril de 1934. Quando, com apoio do ditador socialista Josef Stalin, os uigures fundaram a República do Turquestão Oriental, numa extensa e montanhosa faixa de terra localizada no extremo noroeste da China. A independência foi retomada em 1944, mais uma vez com suporte da União Soviética, interessada em manter uma república sob seu controle bem na fronteira com os chineses. Mas em 1949, quando Mao Tsé-
Tung chegou ao poder e a China se tornou aliada dos soviéticos, o apoio russo desapareceu e os uigures voltaram a habitar um território controlado por Pequim. Oficialmente, Xinjiang é uma região autônoma. Status idêntico ao do Tibete, onde as lideranças locais não têm liberdade política nem administrativa. Em Xinjiang, na prática, também não existe autonomia.

Desde a década de 1950, a China privilegia os cidadãos da etnia han, que hoje representam 92% do 1,39 bilhão de habitantes do país. Os han costumam receber melhores empregos e são escolhidos para cargos de liderança. Os uigures são tratados como cidadãos de segunda classe, e também por isso desejam a independência. Essa intenção ficou mais forte a partir de 2009, quando eles realizaram uma semana de protestos, violentamente reprimidos pelas autoridades chinesas, em Ürümqi, a capital de Xinjiang. Após os atentados terroristas de 2014, o país proibiu o ensino do idioma uigur nas escolas e o uso de transporte coletivo por homens com barbas e mulheres com turbantes, numa clara restrição da liberdade religiosa.

Em 2017, o Consórcio Nacional de Jornalistas Investigativos (ICIJ) obteve cinco documentos (2), supostamente elaborados pelo governo chinês, que tratam dos campos de Xinjiang. Eles trazem instruções sobre como “evitar fugas”, “eliminar violações comportamentais” e “promover o arrependimento e a confissão dos estudantes”, deixando claro qual é o real propósito desses locais. Mas os uigures também são duramente perseguidos fora deles. “A política de esterilização não acontece apenas nos campos de prisão, mas também nas áreas rurais”, diz Ablet Bakir, presidente da Dutch Uyghur Human Rights Foundation, uma ONG holandesa que ajuda uigures. “É uma ação de Estado, com metas, que vêm sendo atingidas”, afirma.

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Em junho de 2020, o antropólogo alemão Adrian Zenz divulgou um relatório sobre o tema (3), estimando que a taxa de natalidade nas duas maiores cidades de Xinjiang tenha caído 84% entre 2015 e 2018. Segundo ele, essa queda é resultado de uma ação estatal coordenada, que envolve a colocação de DIU (dispositivo contraceptivo), abortos forçados e cirurgias de esterilização. O relatório produzido pela Australian Strategic Policy Institute indica que boa parte das mesquitas da região foram destruídas ou depredadas nos últimos anos. Imagens de satélite permitiram identificar que 16 mil mesquitas, ou 65% do total, sofreram algum tipo de ataque.

Mas, mesmo fazendo tudo isso, o governo chinês não tem como prender ou controlar 12 milhões de uigures. Entra em cena outra ferramenta: a comunicação. Os documentos obtidos pelo ICIJ revelam que as autoridades temem a reação dos estudantes universitários uigures que vivem em outros locais do país, voltam para casa nas férias e descobrem que suas famílias simplesmente sumiram. Eles poderiam se mobilizar e dar início a uma onda de manifestações. Para evitar que isso ocorra, a orientação é dizer: “Seus pais foram enviados para campos de reeducação. Eles não são criminosos, mas não podem sair de lá. É para o bem deles, e de vocês também”. Os oficiais devem convencer os jovens com as seguintes afirmações: “Se seus familiares não passarem por estudo e treinamento, nunca vão entender os riscos da religiosidade extremista. Valorizem essa oportunidade de receber educação gratuita que o partido e o governo proporcionam, para que essas pessoas erradiquem pensamentos errados, e também aprendam chinês e uma nova profissão”.

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Clique na imagem para ampliar. (Carlos Eduardo Hara/Superinteressante)

De fato, em suas comunicações públicas, o governo chinês alega que cada um dos presos era um terrorista em potencial, que precisa passar por um centro de educação e correção caracterizado por práticas moderadas – procurada pela Super, a embaixada da China no Brasil não se manifestou sobre o tema. Mas foi só recentemente que Pequim passou a usar essa argumentação. Antes, simplesmente negava que os campos existissem.

Em junho de 2019, depois que um grupo de 22 países, incluindo Canadá, França, Alemanha, Reino Unido e Austrália, se manifestou pela primeira vez sobre os campos de detenção, Pequim reagiu divulgando uma carta de defesa, assinada por embaixadores de 37 nações, incluindo Rússia, Arábia Saudita, Nigéria e Coreia do Norte. Em fevereiro de 2020, a Organização das Nações Unidas solicitou acesso à região, a fim de averiguar as acusações. Não obteve nenhuma resposta. Os Estados Unidos impuseram sanções ao secretário do Partido Comunista de Xinjiang, Chen Quanguo, um membro do poderoso Politburo chinês, e a mais três autoridades. A medida impede quaisquer empresas ou cidadãos norte-americanos de fazer negócios com as autoridades citadas, e também as proíbe de pisar nos EUA.

É difícil acreditar na versão de Pequim, porque parece absurdo que haja 1 milhão de supostos terroristas numa mesma região. “Não existe nenhuma prova a respeito das afirmações do governo chinês”, diz Ablet Baki. “Os documentos vazados indicam que os detentos podem ser liberados, depois de um ou dois anos, desde que sua ‘transformação ideológica’ tenha sido completada”. Para conseguir a liberdade, precisam passar por testes que confirmem isso. “O objetivo é eliminar os uigures do território chinês, seja evitando que nasçam novas pessoas da etnia, seja acabando com os hábitos dos locais.
O que está acontecendo é genocídio”, afirma.

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Mas não só. Os uigures têm sido obrigados a fazer trabalhos forçados, inclusive em outras regiões. Segundo a ONG Australian Strategic Policy Institute, centenas de empresas chinesas estariam se beneficiando dessa mão de obra – gente como Gulzira Auelkhan e Yerzhan Kurman, dois uigures que teriam sido levados para um centro industrial na cidade de Ghulja, em Xinjiang, onde foram obrigados a trabalhar em uma fábrica de luvas, recebendo apenas 20% do salário mínimo vigente na região.

O gerente da fábrica, Wang Xinghua, concedeu uma entrevista à TV estatal chinesa, a que os pesquisadores do Australian Strategic Policy Institute tiveram acesso. Na gravação, ele diz: “Graças ao apoio do governo, já recrutamos mais de 600 pessoas, e pretendemos chegar a mil trabalhadores até o fim do ano. Com isso, geramos mais de US$ 6 milhões em vendas”. Enquanto não consegue se livrar dos uigures, a China trata de lucrar com eles.

16 mil mesquitas, ou 65% do total existente na região de Xinjiang, foram depredadas ou destruídas nos últimos anos.
16 mil mesquitas, ou 65% do total existente na região de Xinjiang, foram depredadas ou destruídas nos últimos anos. (Davi Augusto/Superinteressante)

***

Fontes 1. xjdp.aspi.org.au. 2. https://www.icij.org/investigations/china-cables/read-the-china-cables-documents. 3. Sterilizations, IUDs, and Mandatory Birth Control: The CCP’s Campaign to Suppress Uyghur Birthrates in Xinjiang, Adrian Zenz, The Jamestown Foundation, 2020.

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