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Câncer, do início ao diagnóstico

Ele está adormecido em nossos genes, mas pode acordar a qualquer momento. O câncer não é um inimigo estranho.

Texto: Bruna Reis | Edição de Arte: Caju Design
Design: Andy Faria | Imagens: Otávio Silveira

E

ra uma vez um óvulo e um espermatozoide. Numa quente tarde de verão ou numa noite fria de inverno, não importa. Eles se encontraram, se fundiram e se dividiram rapidamente até virarem um bebê rechonchudo e a cara da mamãe: você. São trilhões de células vivas, que crescem e se dividem para criar novas células e morrer de forma ordenada. Essa divisão celular completinha acontece de forma acelerada até virarmos adultos. Depois, a maioria delas só se divide para substituir desgastes ou reparar lesões. É aqui que mora o perigo.

O caso é que essas microlesões ou inflamações acontecem o tempo todo. No intestino, por exemplo. E a cada divisão, crescem as chances de algo dar errado – uma mutação no DNA, por exemplo. Essas mutações não são sempre vilãs. Elas foram responsáveis por transformar as amebas que povoavam o planeta em imensos dinossauros – e em nós. O tempo todo elas acontecem e, o tempo todo, são descartadas pelo nosso organismo. Até que algo dá errado.

O normal seria acontecer a apoptase – o suicídio da célula doente. Se isso não funciona, ela deveria ser abatida por uma natural killer, nossas células de defesa. Mas a célula modificada geneticamente engana nossas defesas e se multiplica, em novas células que têm todas o mesmo DNA danificado como a primeira célula anormal. É o despertar dos proto-oncogenes, genes que todos temos dormindo em nosso código genético.

Mas que, se ativados, podem disparar o processo do câncer. Que é exatamente isso: um processo. Nosso sistema imunológico bem que tenta e desencadeia um processo inflamatório para conter o corpo estranho. Mas às vezes leva a pior. Essa célula se multiplica e, se ninguém a destruir, vira um tumor maligno. Aí, é câncer.

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Azarão

Um estudo publicado na revista Science no começo deste ano por cientistas da norte-americana Johns Hopkins University indica que dois terços dos casos de câncer acontecem por puro azar: a mutação se dá porque sim, sem relação com fatores externos, como cigarro e radiação solar, por exemplo. E, com mais frequência, nos tecidos que sofrem mais divisões celulares ao longo do tempo.

Ora, se vivermos mais, essas divisões vão acontecer mais e mais vezes, certo? E aqui explicamos porque os cientistas dizem que vivemos uma epidemia global de câncer: nunca vivemos tanto – e estamos aos poucos vencendo doenças que nos matavam antes de um tumor maligno se instalar, como as cardíacas, que, essas sim, dependem quase que integralmente do estilo de vida saudável. Há casos de cânceres, como o de próstata, que atingem perto de 100% dos homens com mais de 90 anos – e demora tanto a crescer que às vezes nem é tratado.

Nunca vivemos tanto – e estamos aos poucos vencendo doenças que nos matavam antes de dar tempo de o tumor maligno surgir dentro de nós.

No mundo, serão 22 milhões até 2030, uma Austrália inteira de novos pacientes. O último relatório da Agência Internacional para a Pesquisa do Câncer indica que o câncer de pulmão foi o campeão no número de casos, com 1,8 milhão de registros (13% do total) no mundo – fortemente evitável se não houver o consumo de cigarro. Logo depois, veio o câncer de mama, com 1,7 milhão de casos (11,9%) – com grandes chances de cura se o diagnóstico for precoce – e o tumor de intestino grosso, que atingiu 1,4 milhão de pessoas (9,7%).

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O câncer de pulmão também é o responsável pelo maior número de mortes. Em 2012, a doença matou 1,6 milhão de pacientes ao redor do mundo. Em seguida, aparecem os tumores de fígado e de estômago, com 800 mil e 700 mil mortes. Os cientistas são unânimes (ou quase) em afirmar que dificilmente teremos uma fórmula mágica para destruí-lo – afinal, são 100 tipos de cânceres conhecidos. A boa notícia é que aprendemos a olhar para dentro para tentar descobrir a melhor maneira de lidar com ele. E sobre isso vamos ver mais nas próximos posts.

ENTREVISTA

Procurar além da cura

Se o câncer é parte de nós, talvez devamos aceitar e aprender a conviver com ele

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(Jarle Breivik/ Arquivo pessoal/Montagem sobre reprodução)
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O oncologista Jarle Breivik, pesquisador da Universidade de Oslo, na Noruega, defende que temos que mudar o foco em relação às pesquisas sobre o câncer. Para ele, talvez tenhamos que aceitar que a doença venha a nunca ter cura e que a corrida deve ser no sentido de promover uma qualidade de vida maior – e não ficarmos vivos a qualquer preço. A chave para conviver com o câncer será conseguir evitar seus estragos pelo maior tempo possível, em vez de buscar uma solução definitiva.

• Como você sugere que encaremos o câncer nas nossas vidas?
A partir do momento em que aceitarmos a doença como uma consequência da evolução, estaremos preparados para aceitar o câncer e o envelhecimento como dois lados de uma mesma moeda. O risco de desenvolvermos a doença aumenta rapidamente a partir dos 50 anos de idade e, com a expectativa de vida cada vez maior, mais pessoas se aproximam dos 100 anos, idade em que praticamente todos os indivíduos possuem células cancerosas no seu corpo.

A tendência é clara: à medida que envelhecemos, as nossas células tornam-se cada vez mais incontroláveis e o câncer nada mais é do que um resultado natural da nossa evolução. Por isso, por mais que os tratamentos estejam cada vez mas avançados, provavelmente nunca haverá uma cura para a epidemia.

• Isso significa que todas as pessoas, em algum momento, terão câncer?
Quanto maior a expectativa de vida, maior a probabilidade de o indivíduo desenvolver a doença. Se uma pessoa morre de problemas cardíacos com 60 ou 70 anos, sem ter desenvolvido nenhum tipo de câncer durante a sua vida, é muito possível que, se ela tivesse chegado aos 80, 90 ou 100 anos, teria desenvolvido evidências da doença.

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• Você diz que o nosso corpo está sempre mudando. É possível que o câncer se torne cada vez mais forte?
Com certeza. O corpo humano tem evoluído ao longo de milhões de anos com base em um objetivo maior: a reprodução, a continuidade da espécie. Dessa forma, somos geneticamente selecionados para fazer exatamente esse trabalho, e não para viver o maior tempo possível.

Pelo contrário, há evidências claras de que estamos programados para morrer quando o trabalho na natureza é feito. Nossas células são pré-programadas para cometer suicídio quando ficam velhas e instáveis e as células cancerosas podem ser entendidas como mutantes que perderam essa capacidade de autocontrole.

• A cura, então, pode jamais existir para nenhum tipo de câncer?
Não posso afirmar hoje que podemos jamais encontrar a cura para o câncer, mas posso afirmar, sim, que devemos contar com essa possibilidade. E assim encaminharmos as pesquisas científicas também para outras direções, como a tentativa de conviver com ele da melhor maneira possível.

• Você fala sobre tratar a doença de dentro para fora, e não de fora para dentro. O que isso significa?
Devemos pensar em novas possibilidades sempre, sem nos conformarmos em pesquisar apenas cura da doença, por mais que já tenhamos grandes feitos e ainda que a expectativa de vida de um paciente com câncer esteja cada vez maior. Claro que nada disso teria acontecido se não fossem os intermináveis testes que se tornaram bênçãos para muitos doentes.

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Mas se entendermos que o câncer faz parte da evolução do ser humano, poderemos buscar não apenas novos tratamentos depois que o indivíduo já desenvolveu a doença. Poderemos estudar, também, se há a possibilidade de embarreirar o desenvolvimento dela, a mutação maligna da célula, tratando então de dentro para fora, e não de fora pra dentro, como acontece hoje com as químios e demais tratamentos após a descoberta do câncer.

• Já existem pesquisas sendo realizadas nessa direção?
Não. Tais aventuras filosóficas não são muito relevantes quando nós, como cientistas e profissionais da saúde, estamos lidando com pacientes com câncer que estão lutando pela vida. As forças que estão impulsionando essa busca pela cura estão enraizadas no mais nobre motivo: a vontade que temos de viver para salvar os outros.

• Como você pensa que estaremos falando sobre o câncer em 50 anos?
Acredito que estaremos pensando se queremos mesmo viver cada vez mais ou se preferimos viver cada vez melhor. É mais importante acrescentar anos à vida ou devemos focar mais em acrescentar vida aos anos? A nossa relação com o câncer se trata basicamente sobre a forma que encaramos a morte.

A verdade imutável é que todos nós vamos morrer, se não morrermos de outra coisa em primeiro lugar, mais cedo ou mais tarde, morreremos de câncer. A guerra contra o câncer é a guerra contra a morte. A grande questão é: será que nós realmente queremos ganhar?

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