Texto: Bruno Vaiano | Ilustração: Gustavo Magalhães | Design: Natalia Sayuri Lara
A coisa mais limpa do mundo não está no mundo neste momento. Não neste mundo. Estamos falando de 43 cilindros ocos de alumínio e titânio carregados pelo jipinho não tripulado Perseverance – a missão da Nasa que pousou em 18 de fevereiro na cratera de Jezero, em Marte, para buscar indícios de vida extraterrestre.
“A cada passo da montagem, os tubos eram limpos com jatos de ar filtrados, enxaguados em água deionizada [sem nenhum sal mineral] e mergulhados em acetona, álcool isopropílico e outros agentes de limpeza exóticos agitados por ondas ultrassônicas”, explica o engenheiro Ian Clark no site da Nasa. A tolerância máxima de compostos orgânicos por tubo foi de 0,00015 mg. Sheldon Cooper ficaria emocionado.
O motivo de tanto esmero é que esses tubos estão sendo usados pelo rover (neste exato momento) para abrigar fragmentos de rocha e solo que podem conter indícios de vida marciana passada ou presente. A Perseverance não podia decolar para o Planeta Vermelho com nenhum traço de contaminação – qualquer micróbio terráqueo que fosse de carona no tubo faria soar um alarme falso na hora de analisar a amostra.
Conforme a sonda de seis rodas percorre a superfície do planeta, seu arsenal de ferramentas coleta as amostras e as insere nesses cilindros, que têm o tamanho de microfones. Depois, o robô lacra os invólucros e os abandona no deserto marciano. Uma sequência de outras missões, programadas para ocorrer até o final da década, trará os tubos de material alienígena para análise aqui na Terra. Você pode entender a operação de retorno inédita no infográfico abaixo: é a primeira vez que algo fabricado por nós fará a viagem de volta.
Passagem só de volta
Até 2031 a Nasa e a ESA trarão amostras de rochas marcianas para a Terra, algo que jamais aconteceu. Entenda o passo a passo da operação bilionária.
1. O primeiro elo da cadeia é o fetch rover (“veículo de busca”) – um pequeno jipe que coleta os tubos lacrados com amostras deixados para trás pela Perseverance.
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2. O rover vai retornar para o lander (“aterrissador”) – a nave maior, que centraliza a operação. O lander recolhe as amostras e as insere num pequeno foguete.
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3. O foguete decola para a órbita de Marte. Tanto o rover quanto o lander ficam para trás. A operação, que começa em 2026, custará, ao todo, US$ 7 bilhões.
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4. Em órbita, o foguete libera as amostras para um satélite da Agência Espacial Europeia (ESA), que agarra o pacote e o traz de volta para a Terra (chegada prevista: 2031).
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A viagem de ida, considerando as dificuldades envolvidas, já se tornou corriqueira: desde 1960, 49 missões já foram enviadas para passar de raspão em Marte, orbitá-lo ou arriscar um pouso. 36 delas falharam em alguma etapa. Nenhuma coletou qualquer evidência de que haja (ou de que tenha havido) vida por lá. Se nosso vizinho já abrigou seres orgânicos – provavelmente há uns 4 bilhões de anos, quando havia água líquida no planeta –, é quase certo que eles sejam microscópicos e unicelulares, como as bactérias terráqueas. E bactérias têm o infortúnio de não deixar fósseis.
Ou pelo menos era o que se pensava até 1956, data da publicação de um artigo científico seminal sobre a formação geológica de Gunflint, às margens do Lago Superior, no sul do Canadá. Essas rochas de 1,88 bilhão de anos – três vezes mais antigas que as primeiras formas de vida animais – forneceram as primeiras evidências inequívocas de que a Terra já era um antro pululante de micróbios muito antes da evolução de formas de vida mais complexas.
O problema é decifrar essas evidências. Os rastros deixados por bactérias não têm nada a ver com os ossos de dinossauro mineralizados que vemos em museus. Primeiro porque sua morfologia é bem simples – tubinhos, esferas, filamentos e outras formas que poderiam facilmente ter origem inorgânica.
Para diferenciar resquícios abióticos (que não têm a ver com vida) de fósseis autênticos, é preciso verificar se a poeirinha em questão tem uma composição química anômala em relação à rocha que a circunda. Anômala de jeitos bem específicos. Não basta saber que uma bactéria produza uma determinada molécula ou elemento e então buscá-los – o que por si só já é um desafio: como deduzir o metabolismo de um serzinho que viveu há tanto tempo?
Também é preciso estudar por quais transformações esses restos teriam passado após bilhões de anos submetidos a mudanças de temperatura e pressão, à erosão etc. Muitas vezes, a análise do contexto geológico diz que o sinal de vida é um alarme falso.
Hoje, o campo da nanopaleontologia mobiliza centenas de pesquisadores de vários países e máquinas bilionárias – capazes de decifrar as moléculas presentes em amostras minúsculas e fazer imagens dos fósseis com resolução altíssima. É o caso do acelerador de partículas Sirius, localizado em Campinas (SP). Saber se um buraquinho em uma rocha é ou não uma bactéria ancestral será essencial quando as amostras marcianas chegarem aqui, no final da década. A seguir, vamos conhecer o trabalho de cientistas brasileiros que estão na vanguarda dessas pesquisas.