Não foi fácil transformar a imagem do avião, antes visto como máquina de guerra, em instrumento de paz. Mas, quando aconteceu, o mundo nunca mais foi o mesmo. Na verdade, ficou muito menor.
Texto: Mariana Barbosa | Design: Andy Faria
Se fosse preciso indicar o dia do nascimento da aviação civil moderna, provavelmente a data escolhida seria 21 de maio de 1927, quando Charles Lindbergh e seu avião Spirit of St. Louis pousaram na pista de Le Bourget, em Paris, 33 horas e 29 minutos depois de decolar da região de Nova York, no primeiro voo transatlântico sem escalas. O mundo ficou eletrizado. Pela primeira vez, ficou claro que o avião tinha um potencial que ia muito além de sua aplicação em combate. O voo transatlântico foi o primeiro evento com transmissão global em tempo real, e seu sucesso não só transformou Lindbergh em celebridade como serviu para consolidar a indústria de transporte aéreo, que da noite para o dia passou a atrair milhões de dólares em investimentos.
É verdade que houve tentativas anteriores de emplacar a ideia de transporte de passageiros. A primeira aconteceu na Flórida, no dia 1º de janeiro de 1914, com um hidroavião construído por um fabricante de autopeças. O aeroplano só podia acomodar um passageiro por vez e o voo, de 23 minutos, na linha St. Petersburg-Tampa, custava US$ 5 – da época. Hoje seriam US$ 120, em valores atualizados (como também serão as cifras usadas daqui em diante nesta reportagem). O empreendimento durou apenas quatro meses.
Iniciativas como essa atraíam grande atenção da mídia, mas ainda havia muito ceticismo por parte do público e, consequentemente, os avanços tecnológicos das aeronaves caminhavam lentamente.
Só com a eclosão da 1ª Guerra Mundial, as vantagens militares dos aviões levaram ao desenvolvimento tecnológico necessário para alavancar a aviação civil. Com o armistício, surgiram os primeiros voos comerciais, sobretudo na Europa, ligando Londres a Paris e a outras capitais do velho continente, aproveitando o excedente de aeronaves construídas na guerra. A companhia aérea mais antiga em operação hoje é a holandesa KLM, que realizou o seu primeiro voo, ligando Amsterdã a Londres, em 1919.
Mas o público não estava convencido, e o ronco do motor ainda era muito associado a bombardeios. Além do mais, nos EUA, que era bem servido de estradas, era mais confortável viajar de carro ou ônibus, já que a aviação ainda não representava muita vantagem em termos de velocidade.
Por isso, o impulso para o desenvolvimento inicial da aviação comercial em território americano veio do governo, que em 1917 alocou o equivalente a US$ 1,9 milhão para o Exército e os Correios desenvolverem uma linha postal experimental, o que durou até meados dos anos 1920, quando o transporte de cartas de costa a costa já estava bastante disseminado. Sem interesse em manter o controle estatal sobre as rotas, o governo terceirizou o serviço para a iniciativa privada, dando origem às primeiras companhias aéreas do país.
Até mesmo Henry Ford entrou nessa corrida, vencendo um contrato para transportar carga postal de Chicago a Detroit e Cleveland em aviões que ele já usava para levar partes e peças entre suas plantas automotivas. Em 1927, a montadora lançou seu próprio avião, o Ford Trimotor. Feito todo de duralumínio, um material tão leve quanto o alumínio e duas vezes mais resistente, a aeronave foi também a primeira a ser desenhada para o transporte de passageiros – e não carga. Tinha 12 assentos, uma cabine alta o suficiente para se andar pelo corredor e uma salinha para a aeromoça.
Nessa época, as comissárias de bordo eram basicamente enfermeiras – era comum as pessoas ficarem enjoadas, pois as cabines não eram pressurizadas. A primeira aeronave pressurizada foi introduzida nos 1940 pela Boeing. Mesmo os enjoos sendo raros hoje em dia, os saquinhos de vômito permanecem atrás das poltronas.
Lindbergh se ocupava da nada glamurosa rota postal St. Louis-Chicago quando resolveu enfrentar o desafio proposto sete anos antes por um francês dono de um hotel em Nova York: o equivalente a cerca de US$ 300 mil para o primeiro aviador de um país aliado que voasse entre Nova York e Paris em um único voo, em qualquer direção. Lindbergh levantou algo como US$ 206 mil com a Câmara de Comércio de St. Louis para construir o seu avião. Antes dele, diversos pilotos perderam a vida tentando atravessar o Atlântico.
Com o fascínio pelo Spirit of St. Louis, os fabricantes passaram a investir em aeronaves maiores, mais rápidas e mais seguras. Os anos 1930 são tidos como os de maior avanço na história da aviação: da refrigeração a ar dos motores (em vez de água), reduzindo o peso e abrindo caminho para os grandes e velozes aviões equipados com instrumentos sofisticados e comunicação por rádio-frequência como auxílio para ajudar na navegação.
Foi na década de 1930 que a Boeing, que também começou como empresa aérea de linha postal, lançou aquele que é considerado o primeiro avião moderno, o Boeing 247. Tinha capacidade para dez passageiros e muito glamour: assentos estofados e um aquecedor de água. A United Air Lines comprou nada menos do que 60 unidades no lançamento, em 1933.
Três anos depois, a concorrente Douglas Aircraft Company lançou o DC-3, avião que se mostrou bem mais lucrativo para as companhias aéreas: tinha capacidade para 21 passageiros e motores mais potentes.
O motor a jato também começou a ser testado na década de 1930, mas ainda levariam alguns anos até o aperfeiçoamento e a difusão da tecnologia – impulsionada sobretudo pela 2ª Guerra Mundial. O primeiro voo comercial com um avião a jato viria acontecer em 1952, em um voo de Londres para Johanesburgo, na África do Sul. Mas o avião se acidentou dois anos depois.
A corrida armamentista da Guerra Fria também ajudou a indústria a superar os problemas técnicos do motor a jato e, em 1958, com o lançamento do Boeing 707, um avião para 181 passageiros derivado de um cargueiro (KC-135) usado pela Força Aérea Americana, os jatos passaram a ser considerados altamente seguros.
Desde então, a indústria cresceu, companhias de transporte aéreo e fabricantes de aeronaves se diversificaram para ocupar todas as fatias desse mercado em expansão. E o que tinha começado apenas como um sonho desvairado na cabeça de entusiastas como Charles Lindbergh, um século depois se tornou um negócio capaz de movimentar mais de US$ 700 bilhões por ano, transportando 3,5 bilhões de passageiros.