Os primeiros anos do país criado pelos vencedores da 1ª Guerra Mundial, que desde aquela época já estavam de olho no petróleo da antiga Mesopotâmia.
Texto: José Francisco Botelho | Design: Andy Faria
No dia 1º de dezembro de 1918, menos de um mês após o armistício que encerrou a barbárie da 1ª Guerra Mundial, dois importantes estadistas europeus se reuniram num gabinete em Londres para selar o destino do Oriente Médio. O diálogo que ali eles travaram, enquanto a Europa ainda contava seus mortos, feridos e desaparecidos, haveria de mudar o mundo – para pior.
— Bem, o que vamos discutir? – perguntou o homem mais velho, um francês de grandes bigodes.
— A Mesopotâmia – respondeu o estadista mais jovem, um inglês de suíças farfalhudas e bem cuidadas.
— Ah, você pode ficar com ela – disse o francês.
O mais velho era monsieur Georges Clemenceau, primeiro-ministro da França. O outro era seu colega britânico, sir David Lloyd George. E os territórios que eles dividiam 90 anos atrás, num confortável escritório londrino, tragicamente ainda ocupam as manchetes dos jornais. Muitos dos conflitos que transformaram o Oriente Médio na região turbulenta de hoje têm origem naquela conversa amigável e bem-humorada entre os dois maiores vencedores da 1ª Guerra Mundial.
Cruzada moderna
Antes da guerra, o Oriente Médio era dominado pelos sultões do gigantesco Império Turco-Otomano. O que os europeus chamavam de Mesopotâmia – e que hoje chamamos de Iraque – correspondia à região entre os rios Tigres e Eufrates, um dos berços da civilização ocidental. No início do século 20, o território estava divido em 3 províncias, habitadas por árabes xiitas, árabes sunitas e curdos. As diferenças étnicas e religiosas entre esses grupos já provocavam sérias desavenças desde aqueles tempos. Mas pelo menos um sonho eles tinham em comum: expulsar os turcos dali.
O antes poderoso Estado otomano era agora um colosso de pernas bambas, sacudido por revoltas internas e dependente dos investimentos do riquíssimo Reich germânico. Aliás, foi puxado pelo cabresto financeiro que o reino dos sultões acabou ingressando na 1ª Guerra Mundial, ao lado da Alemanha, em 29 de outubro de 1914. Só então franceses e ingleses decidiram desferir o golpe de misericórdia no “homem enfermo do Oriente” – apelido que os diplomatas europeus deram ao combalido império em fins do século 19.
No front oriental, os ingleses buscaram uma aliança com os chefes guerreiros da Arábia, que havia décadas planejavam se libertar do domínio otomano e fundar um reino independente. Em julho de 1915, o cônsul britânico Henry McMahon prometeu autonomia às nações árabes em troca de ajuda contra o inimigo comum. E a barganha funcionou. Enquanto guerrilheiros árabes acossavam as tropas turcas nas areias do deserto, o Exército britânico avançou sobre as principais cidades da região.
Em março de 1917, a Grã-Bretanha tomou Bagdá – foi a primeira vez, mas não a última, que exércitos ocidentais ocuparam a capital das Mil e Uma Noites. Apunhalado em seu âmago, o Império Otomano viu ruir outro bastião simbólico: em dezembro daquele mesmo ano, o general inglês Edmund Allenby tornou-se o 34º conquistador a marchar triunfalmente pelas ruas de Jerusalém. Para muitos soldados britânicos, a conquista da cidade era uma espécie de cruzada moderna – só que, dessa vez, árabes e “cruzados” lutavam lado a lado.
Essa inusitada lua-de-mel durou pouco. Enquanto prometiam mundos e fundos aos chefes árabes, os ingleses planejavam espetar suas próprias bandeiras nas recém-liberadas províncias otomanas. Situado na confluência de 3 continentes, o Oriente Médio sempre foi uma das áreas de maior valor estratégico do mundo. Mesmo antes da 1ª Guerra Mundial, os britânicos planejavam abocanhar a região e transformá-la num atalho para a Índia, a mais valiosa joia colonial da Coroa britânica. Completando o pacote, havia o petróleo, que já começava a despertar apetites ocidentais.
Desde 1914, agentes europeus vasculhavam os vilarejos da Mesopotâmia em busca de reservas petrolíferas. Ao final do conflito, a Grã-Bretanha engoliu, sozinha, um território 13 vezes maior que o Reino Unido. E virou o Estado com maior número de súditos muçulmanos no planeta.
Estado artificial
Para ingleses e franceses, a conquista do Oriente Médio foi um grande negócio. Para os árabes, no entanto, a criação das novas colônias – ou mandatos, como preferiam os diplomatas da Europa – foi a “Grande Traição” do século 20. Tão logo perceberam que os antigos aliados tinham segundas intenções, os habitantes dos territórios que hoje formam a Síria e o Iraque voltaram a se rebelar – dessa vez, contra os europeus.
A reação foi brutal. Enquanto tropas francesas derrubavam o rei da Síria, os britânicos usaram na Mesopotâmia uma tática testada e aprovada na 1a Guerra Mundial: o terror aéreo. Em alguns meses, aviões ingleses despejaram mais de 97 toneladas de bombas, fogo líquido e gás venenoso sobre mulheres, crianças e guerrilheiros armados com espadas e carabinas. Aldeias inteiras desapareceram do mapa e até os rebanhos de gado foram dizimados a tiros de metralhadora. A guerra matou apenas 9 pilotos ingleses. Do outro lado, cerca de 9 mil árabes e curdos perderam a vida.
Ao baixar a poeira da rebelião, o futuro primeiro-ministro Winston Churchill, na época administrador das colônias britânicas, reuniu um grupo de diplomatas e geógrafos europeus na Conferência do Cairo, em 1921. Sua tarefa era traçar, com régua e lápis, as fronteiras dos novos domínios. Nesse encontro, Churchill inventou dois países. Um deles foi o reino da Jordânia. O outro foi o Iraque, um Estado artificial que teria 60% de habitantes xiitas, 20% de sunitas e 20% de curdos.
Para cauterizar os brios nacionalistas, Churchill colocou os países recém-nascidos sob o cetro de reis fantoches – fracos, impopulares e absolutamente incapazes de governar sem a ajuda das tropas britânicas. “Na prática, o controle ocidental era completo”, escreve o historiador brasileiro Voltaire Schilling no livro Ocidente x Islã (2003). “Os lugares estratégicos do mundo árabe continuaram ocupados pela Grã-Bretanha. E toda a economia local, incluindo a extração de petróleo, foi espremida para servir aos interesses de Londres.”
Lawrence da Arábia
Sem querer, ele acabou passando a perna nos árabes que eram seus aliados.
Poeta, arqueólogo, soldado e diplomata, o irlandês Thomas Edward Lawrence foi um dos personagens mais fascinantes e enigmáticos da 1ª Guerra Mundial. Sua participação no conflito começou em 1916, quando o Exército britânico o enviou para a Arábia com a missão de auxiliar os chefes locais na luta contra o domínio otomano.
Fez amizade com a família real dos Hachemitas, muçulmanos moderados que governavam Meca, e liderou guerrilheiros beduínos contra as forças de Istambul. As milícias de Lawrence armaram emboscadas nos desertos, dinamitaram ferrovias e cortaram a comunicação do Império Otomano com as províncias árabes. Sua vitória final foi a tomada de Damasco (hoje capital da Síria) em 1918.
Durante os anos de luta, fez uma promessa: os 50 milhões de árabes do Oriente Médio ganhariam a independência assim que o sultão otomano caísse. Quando vieram à tona os acordos secretos entre Inglaterra e França, que planejavam dividir a região em novas colônias, ele percebeu que fora cúmplice involuntário de uma tramoia. “Lançamos nossos aliados ao fogo para podermos ficar com o petróleo da Mesopotâmia”, escreveu em seu diário quando a 1ª Guerra Mundial chegou ao fim. Lawrence morreu em 1935 – esquecido e atormentado pelo remorso.
Terra (santa) em transe
O conflito entre judeus e palestinos tem origem na 1ª Guerra Mundial.
Enquanto o Iraque nascia das cinzas do Império Otomano, outro furacão se armava na esteira da 1ª Guerra Mundial: o conflito entre judeus e palestinos. Em 1917, o secretário do Exterior da Grã-Bretanha, Arthur Balfour (foto), declarou que seu governo faria de tudo para facilitar a criação de “um lar nacional judaico na Palestina”. O documento, conhecido como Declaração Balfour, foi um passo fundamental na criação do Estado de Israel. Mas a dupla jogada dos ingleses – que na mesma época prometiam independência a todas as nações árabes, incluindo os palestinos – plantou o conflito que até hoje devasta a Terra Santa.
Logo após a 1ª Guerra, árabes e judeus se reuniram em negociações que poderiam ter dado certo: em 1921, o rei sírio Faisal ibn Hussein convidou a Organização Sionista para discutir a criação de um Estado binacional, onde haveria lugar para todo os “irmãos semitas”. Mas, naquele mesmo ano, os franceses invadiram a Síria e os ingleses proibiram negociações diretas entre os povos colonizados. Sabotada, a proposta de Faisal nunca saiu do papel. Os palestinos seriam expulsos aos milhares em 1948, ano em que Israel declarou sua independência. E o sonho do convívio pacífico se transformaria num sangrento pesadelo.