Tudo o que Freud escreveu a respeito da sexualidade gira em torno de um dos principais conceitos da psicanálise: o de que meninos querem matar o pai e casar com a mãe.
Texto: Alexandre Carvalho | Edição de arte: Estúdio Nono | Design: Andy Faria | Imagens: Getty Images
“Que animal tem quatro patas de manhã, duas ao meio-dia e três à noite?” A questão é feita por um ser monstruoso: cabeça humana seguida por corpo de leão e asas de águia. É a esfinge que traz destruição e má sorte à cidade de Tebas, e mata todos os passantes que não conseguem solucionar seu enigma. “Decifra-me ou te devoro”, ameaça o demônio – que sempre cumpre a promessa. Até que um jovem forasteiro, chamado Édipo, segue em direção à esfinge – depois de ele próprio ter matado um viajante desconhecido com quem arrumou confusão na estrada. Ao ser confrontado com a pergunta fatal, compreende suas analogias e dá a resposta precisa: “É o homem, que na infância engatinha, quando adulto caminha ereto sobre duas pernas e na velhice precisa de uma bengala”. Ao ter seu enigma decifrado, a esfinge enlouquece e se atira de um precipício, livrando Tebas de suas maldições. Creonte, o regente da cidade, premia então o viajante com o trono da cidade-estado, e ainda oferece a própria irmã, Jocasta, para ser esposa do novo rei.
Essa lenda do decifrador de enigma, produto da riquíssima mitologia grega, virou tragédia no teatro por volta de 430 a.C.: Édipo Rei, peça de um dos mais importantes dramaturgos da Antiguidade, Sófocles (495 a.C.-406 a.C.). A obra – que engrandece a lenda com personagens coadjuvantes e diálogos cheios de emoção – trata da funesta descoberta de Édipo a respeito de suas origens.
Anos após o confronto com a esfinge, Tebas atravessa novo período de dificuldades, agora já no reinado de Édipo: a terra se torna infértil e há uma onda de abortos espontâneos entre as grávidas. Consultado, o Oráculo de Delfos – centro religioso de profecias na Grécia Antiga – revela que a cidade só voltará aos tempos de fartura quando o assassino de Laio – o antigo monarca e ex-marido de Jocasta, morto misteriosamente anos antes – for encontrado e expulso da região. Só que ninguém sabe quem cometeu o crime. Acreditava-se que a vítima tinha caído nas mãos de assaltantes, para além das fronteiras da cidade. Então, em meio a esse clima de “quem matou Odete Roitman”, o rei Édipo acaba descobrindo seu papel de marionete do destino.
Mais jovem, ele havia deixado sua cidade natal, Corinto, por causa de uma profecia: a de que mataria seu pai e casaria com a própria mãe. Apesar de não ter nenhum motivo para isso, porque era bom filho, afastou-se tanto quanto pôde para garantir que a sina nunca se cumprisse. O que ele não desconfiava é que, na época em que nasceu, outra profecia terrível de parricídio – gregos antigos adoram uma profecia – assombrava os governantes de uma outra cidade: justamente Tebas, para onde Édipo iria já adulto. Laio e Jocasta, diante da informação divina de que o filho deles, quando crescesse, mataria o pai e tomaria seu lugar no trono, mandaram sacrificar o próprio bebê.
O problema, para eles, é que esse assassinato não sairia como planejado. O carrasco convocado para a execução ficou com pena do neném, então terceirizou o serviço. Só que esse terceiro também amarelou, repassando mais uma vez a batata quente. Foi de colo em colo, de hesitação em hesitação, que o herdeiro de Tebas finalmente chegaria ao lar de um casal que não podia ter filhos: sim, o rei e a rainha de Corinto, aqueles que Édipo acreditava serem seus pais.
Voltando ao tempo presente da peça, tudo se esclarece a partir das delações de algumas testemunhas: Édipo na verdade é filho adotivo; o homem que ele matou na estrada a caminho de Tebas era o seu pai biológico, Laio – o que faz de sua esposa sua mãe… com quem ainda gerou quatro filhos.
Incesto! Maldição dos deuses gregos. Diante dessa verdade aberrante, Jocasta se enforca, e Édipo cega os próprios olhos.
“Se eu tivesse morrido mais cedo, não seria o motivo odioso de aflição para meus companheiros e também para mim nesta hora!
E jamais eu seria assassino de meu pai e não desposaria a mulher que me pôs no mundo.
Mas os deuses desprezam-me agora por ser filho de seres impuros e porque fecundei – miserável! – as entranhas de onde saí!”
Esse é o discurso de Édipo já perto do fim do drama. Agora compare com esta outra confissão:
“Encontrei em mim, como em toda parte, sentimentos amorosos em relação à minha mãe e de ciúme contra meu pai.”
Essa última não é de uma peça da Antiguidade – embora não seja deste século. Está numa carta de 1897 que Sigmund Freud escreveu a seu amigo e confidente Wilhelm Fliess. Foi o primeiro registro da associação, feita pelo pai da psicanálise, entre sentimentos incestuosos inconscientes e a tragédia grega – e tendo o próprio Freud como personagem.
Fã da cultura greco-romana, Freud viu na tragédia de Sófocles a representação perfeita para uma teoria a respeito da sexualidade infantil e suas consequências na vida adulta. O complexo de Édipo é a formulação inconsciente, na criança, que abriga um desejo pelo genitor do sexo oposto e, paralelamente, uma hostilidade para com o do mesmo sexo – relacionada a ciúme.
Sigmund Freud menciona publicamente o complexo de Édipo pela primeira vez em seu livro mais importante, A Interpretação dos Sonhos. Falando sobre o protagonista de Sófocles, diz: “Talvez todos nós tenhamos sido chamados a dirigir a primeira moção sexual à mãe, o primeiro ódio e desejo violento ao pai; nossos sonhos nos convencem disso. O rei Édipo é apenas a realização dos desejos de nossa infância”.
É, portanto, praticamente junto com a psicanálise que nasce essa estruturação subjetiva dos desejos, rivalidades, escolhas e identificações da criança – uma ideia que vai pautar todo o pensamento psicanalítico que viria a seguir. Segundo Freud, esse complexo costuma durar dos 3 aos 5 anos de vida da criança, ao longo da chamada fase fálica (assunto do nosso próximo capítulo) e ir embora a partir dos 6, quando o desenvolvimento da sexualidade entra num período de stand-by antes da puberdade.
Ainda muito apegado à mãe, o menino descobre que não é o único objeto de afeto dela. Existe uma pessoa inconveniente que a mãe também beija, abraça… vai para a cama com esse indivíduo. O pai, claro. Conforme a criança vai crescendo e dependendo cada vez menos da mãe – já não mama no seio dela e não tem mais fraldas para trocar –, a intimidade entre os pais volta um pouco ao que era antes, e o pequeno percebe que alguma coisa ali está fora da ordem – da sua ordem. Definitivamente, essa coisa de triângulo amoroso não encaixa bem na mente do menininho.
Repare que estamos falando em menino. E a menina? Pode ser também, Freud até indica um “Édipo invertido” quando trata do complexo, pensando na garota que se apaixona pelo pai e sente raiva da mãe, sua rival nessa comédia romântica. Mas, de verdade mesmo, o inventor da psicanálise quase sempre tem foco no homem em suas teorias sobre a sexualidade. Quando trata dos desejos femininos, passa a chutar bem longe do gol. Talvez você já tenha ouvido falar no complexo de Electra, a versão para meninas do Édipo freudiano. É outra referência a um mito grego – também encenado por Sófocles –, nesse caso, da princesa que assassina cruelmente a própria mãe para vingar a morte do pai. Um erro comum é achar que, por se tratar de teoria psicanalítica, o complexo de Electra também seja criação de Freud. Não é.
Foi Carl Gustav Jung (1875-1961) – um dos psicanalistas mais importantes da história – quem criou o termo. Segundo a teoria, as meninas querem usar as roupas da mãe e brincar com sua maquiagem como forma de atrair o pai, seu “marido”. Mas a coisa passa logo. Quando não passa, se as meninas não superam esse sentimento, acabam projetando a figura do pai em seus envolvimentos amorosos quando adultas – e às vezes odiando a mãe.
Deixem meu pinto em paz!
Para Sigmund Freud, o desaparecimento da fase edipiana a partir dos 6 anos tem a ver com outro complexo de nome espirituoso: o de castração. Nessa época, segundo uma visão bem polêmica do pai da psicanálise, a criança só consegue conceber que seres humanos tenham o membro masculino. A menina não tem pênis? Azar o dela. É porque alguém cortou. E isso dá um medo enorme. O complexo de castração é justamente esse sentimento inconsciente da ameaça de ficar sem pinto – “se cortaram o das meninas, podem cortar o meu também!”.
Dessa forma, o mundo se dividiria entre pessoas que têm pênis – os afortunados que fazem xixi de pé – e aquelas que foram castradas – sim, as que usam o banheiro feminino. Para exemplificar, Freud cita o famoso tratamento do Pequeno Hans, um menininho que, ao constatar a falta de pênis na irmã caçula, em vez de entender que seria assim mesmo, acha que é tudo questão de tempo, que o órgão só não cresceu ainda.
Nessa fase, o menino também acaba admitindo que, convenhamos, o pai é um baita de um empecilho para o seu desejo de se casar com a mãe. Isso o ajuda a desistir do plano inconsciente de incesto e parricídio qualificado, e essa paz de espírito – ou da mente – o leva a um outro ganho na formação da sua personalidade: ele passa a se identificar com o pai. Uma identificação que é fundamental para que o garoto possa, em breve, arrumar outro objeto sexual para substituir a mamãe. Se seguir essa linha sem traumas, podem ser as adolescentes da escola.
Se não seguir o que Freud considera como o desenvolvimento psicossexual normal, em vez de mimetizar o pai, ele vai se fixar na figura da mãe, e seu desejo pode se voltar para os garotos na educação física. Ou ainda outras configurações de desvio podem levá-lo à perversão – quando o objeto de desejo sexual pode virar uma cabra do sítio, um sapato de salto alto ou um escapamento de carro. Nessa coisa de o que é normal ou não, aliás, Freud afirma que a homossexualidade também é uma perversão. Mas, calma lá. O pai da psicanálise explica (no próximo capítulo) que há vários tipos de comportamentos perversos, e que o dos homossexuais não tem nada de antinatural. Pelo contrário: é só o desvio de uma meta reprodutiva.
Édipo complexado
Por uma dessas reviravoltas da história, a teoria edipiana de Sigmund Freud, num sentido inverso, acabou influenciando também o estudo da mitologia grega. Édipo é um personagem mais sofisticado aos olhos de hoje por causa de Freud. Tanto que muita gente tem noções básicas sobre a teoria, mas nunca leu a obra de Sófocles nem viu uma peça de teatro inspirada nela. O rei de Tebas é muito mais conhecido por conta da enorme repercussão do pensamento freudiano sobre a cultura. Essa influência do influenciado ganhou tal dimensão que alguns estudiosos dos mitos gregos precisaram se posicionar para que Édipo não se tornasse “alguém com complexo de Édipo”.
Em Compêndio da Psicanálise, seu último livro, que deixou incompleto, Freud faz uma avaliação do legado de sua teoria edipiana: “Se a psicanálise não tivesse em seu ativo senão a simples descoberta do complexo de Édipo reprimido, isso bastaria para situá-la entre as preciosas novas aquisições do gênero humano”.
Ok, humildade não era o forte dele. Mas a importância desse conceito, para a psicologia, de que menino gosta da mamãe e menina quer casar com o papai, é mais que evidente. Até hoje é uma elaboração que faz parte das interpretações na prática psicanalítica. E ficou uma ideia tão grande porque, quando Freud encaixou esse herói trágico da mitologia em sua teoria do inconsciente, ele fez mais que sugerir que impulsos incestuosos estariam emaranhados na mente infantil. Sua concepção foi ganhando corpo ao longo dos anos, ressurgindo a cada novo postulado, e atravessaria o conjunto da obra freudiana, firmando-se, principalmente, no centro de tudo o que ele escreveu sobre como a sexualidade vai crescendo no nosso inconsciente, influenciando relações pessoais, neuroses e até nossas identificações de gênero – um tema de debates apaixonados aqui no século 21.
Para Sigmund Freud, Édipo é peça-chave do nosso amadurecimento – define os caminhos da nossa vida sexual, é pai biológico dos nossos sentimentos de culpa e ainda divide o mundo entre sujeitos normais e pervertidos.
Hamlet: arquétipo do reprimido
O complexo de Édipo, quando se estende mais do que devia, permanecendo na vida adulta, tem uma representação perfeita na obra de William Shakespeare (1564-1616) – uma associação que o próprio Freud faz em A Interpretação dos Sonhos. “Em Édipo, como no sonho, a fantasia de desejo subjacente da criança é trazida à luz e realizada; em Hamlet, ela permanece reprimida.” Hamlet, o doce príncipe da Dinamarca, protagonista da tragédia homônima escrita na virada do século 16 para o 17, seria um neurótico edipiano por excelência.
Esse personagem passa a peça inteira hesitando diante da missão que dá a si mesmo: matar o tio, Cláudio, um calhorda que assassinou o pai de Hamlet e ainda se casou com a mãe dele, Gertrudes. O psicanalista galês Ernest Jones (1879-1958) sinalizou que a história gira em torno da revolta do príncipe com o fato de sua mãe se casar de novo, e tão rápido, com outro homem. Inconscientemente, o rapaz acredita que, com a morte do pai, a mãe seria só dele, recuperando a exclusividade da relação na primeira infância.
E há outra simbologia edipiana envolvida na fúria do maior dos personagens de Shakespeare. Ao se tornar padrasto, Cláudio assume, ainda que involuntariamente, uma figura paterna. Hamlet, então, quer livrar-se desse “outro pai” que se intromete em seu amor por Gertrudes.
Mas ter impulsos destrutivos contra um pai simbólico já é razão para ansiedade, sendo só um desejo inconsciente. Assumindo o assassinato como missão a ser executada na prática, Hamlet se enrosca num conflito psíquico gigante. Daí procrastinar a vingança até onde é possível: as últimas cenas da tragédia.