PRORROGAMOS! Assine a partir de 1,50/semana

Da terra à taça: a transformação da uva em vinho

Como um suco de fruta, ao passar por um processo de fermentação, pode adquirir sabores e aromas complexos que variam dramaticamente de acordo com a variedade da uva

Texto: Marcos Nogueira | Edição de Arte: FazFazFaz Design | Design: Andy Faria | Ilustrações: André Valente

É

difícil não rir quando alguém usa adjetivos e analogias para descrever um vinho: carnudo, mineral, aromas de frutas tropicais, de café, de pimentão verde, de cachorro molhado. Estamos falando, afinal, de suco de uva − mas ninguém usa a palavra “uva” para dissertar sobre um cabernet sauvignon do Chile ou um chardonnay da Borgonha.

Segure o riso, porque essa gente tem razão. Apesar de ser feito de uva, o vinho é um coquetel complexo de substâncias químicas que, na maior parte das vezes, remete pouquíssimo à matéria-prima original. Esse coquetel é único para cada garrafa aberta em algum lugar do mundo, pois ele depende de uma enorme série de fatores.

Só para citar alguns: a variedade da uva, as características do terreno em que ela foi plantada, o manejo da plantação, as ocorrências meteorológicas daquela safra em particular, a data da colheita, os processos de extração e fermentação, a opção por envelhecer ou não em madeira, o tempo de guarda e as condições de armazenamento da garrafa.

Muitos dos compostos do vinho têm estrutura molecular idêntica ou semelhante à de substâncias encontradas em outras coisas − de natureza vegetal, mineral ou animal. Assim, quando alguém fala em pimentão verde, clorofila, grama cortada, é porque detectou a pirazina: molécula aromática presente tanto no pimentão verde quanto em alguns vinhos de uvas sauvignon blanc ou carmenère.

A lista de exemplos vai longe. O furano-2-ilmetanotiol responde pelo cheiro de café torrado, o diacetil emula o aroma de manteiga, o geraniol é culpado por determinados vinhos parecerem um buquê de flores. Mais de 400 compostos aromáticos já foram identificados.

Continua após a publicidade

<strong>A natureza da fruta e os processos químicos da vinificação explicam por que o vinho pode ter cheiro de baunilha, pimentão, manteiga e outras coisas estranhas.</strong>
A natureza da fruta e os processos químicos da vinificação explicam por que o vinho pode ter cheiro de baunilha, pimentão, manteiga e outras coisas estranhas. (André Valente/Superinteressante)

Curiosamente, o antranilato de metila − molécula que relacionamos ao cheiro de uva, muito usada na indústria alimentícia − costuma aparecer em concentração baixa demais para estimular nosso olfato. Ela é muito mais abundante na Vitis labrusca (uva de mesa usada em vinhos de garrafão) que na Vitis vinifera (a espécie adequada para fazer vinhos de qualidade).

O coquetel químico do vinho não se restringe aos aromas. O suco de uva fermentado contém uma variedade de álcoois, ácidos, fenóis, proteínas e sais, entre outras substâncias. O etanol, por mais que você beba para apreciar as notas de frutas vermelhas, não pode ser desprezado. Ele surge na fermentação, quando as leveduras − fungos inoculados ou captados do ambiente − transformam os açúcares do suco de uva. Quanto mais doce a uva (e ela é mais doce em climas quentes), mais alcoólico o vinho.

Mesmo a pessoa menos interessada por química já deve ter ouvido falar dos taninos do vinho. Na planta, essas substâncias funcionam como agentes imunológicos e repelentes de pragas; no vinho, provocam sensações de amargor e adstringência. Tintos têm mais taninos porque cascas, sementes e galhinhos da uva, que concentram a substância, ficam em contato com o suco por bastante tempo, para o aporte de cor − quando se produz um vinho branco, o líquido é isolado de imediato.

Mas taninos não são pigmentos. Embora seja comum o alto teor deles em tintos de cor intensa, isso nem sempre ocorre: a nebbiolo, uva que resulta num vinho quase rosado, é campeã de taninos. Vinhos bastante tânicos envelhecem bem porque os taninos funcionam como conservante natural. Com o passar do tempo, esses elementos se desnaturam e se tornam mais palatáveis.

Continua após a publicidade

O envelhecimento do vinho costuma acontecer em barris, o que pode modificar radicalmente os aromas: o carvalho (em especial o da variedade americana) libera sua própria carga de químicos no líquido. Além disso, os toneleiros costumam tostar o interior dos barris para melhorar a vedação: o fogo na madeira produz uma espécie de caramelo que tem, entre outros compostos, a vanilina. É o “princípio ativo” da baunilha: eis por que alguns vinhos parecem pudim de leite.

As principais variedades de uva

O sabor e o aroma dos vinhos varietais mudam de acordo com o lugar da plantação: quanto mais quente, mais açúcar a uva desenvolve (e, portanto, mais álcool). Vinhos de clima frio tendem a ser mais delicados.

Cabernet Sauvignon

A cabernet é, de longe, a uva tinta mais popular que existe. Adaptou-se ao clima de quase todos os países que produzem vinho. Resulta em bebidas de cor escura e muitos taninos, com aromas de cereja, amora, pimentão verde e hortelã − os exemplares envelhecidos em carvalho remetem a baunilha e chocolate.

SI_Vinho_Uva_2

É a uva predominante nos grandes vinhos de Médoc e Graves, em Bordeaux. Para um vinho bacana e barato, invista num chileno ou num argentino. Onde dá: França (Bordeaux), Califórnia, África do Sul, Austrália, Itália (Toscana), Espanha (Catalunha), Chile (Maipo).

Continua após a publicidade

Sauvignon Blanc

Originária do vale do Loire, a sauvignon blanc produz vinhos frescos, de boa acidez e aroma pronunciado. Esse aroma pode lembrar maracujá, pimentão verde, frutas cítricas e grama.

SI_Vinho_Uva_3

Os melhores do mundo vêm da região de Sancerre, no Loire; no Brasil, as melhores compras são os vinhos das áreas costeiras do Chile, onde a influência do Pacífico derruba a temperatura (o que é bom para essa uva). Onde dá: França (Loire e Bordeaux), Nova Zelândia, Chile (Leyda e Casablanca).

Chardonnay

Uva branca mais plantada no mundo, a chardonnay é usada tanto em espumantes quanto em vinhos tranquilos. Seu perfil aromático é bastante versátil. A variedade atinge seu auge na Borgonha, onde resulta em vinhos delicados e minerais, com notas de frutas verdes. No Novo Mundo, tendem a ser abaunilhados e amanteigados − resultado da guarda em barril.

Continua após a publicidade

SI_Vinho_Uva_4

Os espumantes nacionais, onde ela geralmente vem misturada à pinot noir, são a melhor relação custo-benefício. Onde dá: França (Borgonha e Champagne), Califórnia, Austrália, Brasil.

Merlot

É a outra uva de Bordeaux, onde faz tabelinha com a cabernet sauvignon. Ela prevalece nos vinhos de denominações prestigiadas, como Pomerol. É a uva tinta que melhor se adaptou ao sul do Brasil, embora as melhores barganhas do mercado doméstico recaiam nos rótulos chilenos.

SI_Vinho_Uva_5

Enquanto a cabernet é potência, a merlot é suavidade − menos cor e menos taninos em vinhos redondos, suculentos e fáceis de beber. No nariz, lembra ameixa e amoras; se envelhecida, adquire cremosidade e notas de baunilha. Onde dá: França (Bordeaux), Chile (Colchagua), Austrália, Itália (Toscana), Estados Unidos (Califórnia), Brasil.

Continua após a publicidade

Pinot noir

Há quem diga que a Borgonha, sua região de origem, é o único lugar capaz de produzir e trabalhar bem a temperamental pinot noir. Não é bem assim: os tintos borgonheses são imbatíveis (e caríssimos), mas a pinot também consegue bons resultados em outras zonas de clima frio.

SI_Vinho_Uva_6

Produz vinhos de cor vermelha, com aromas de frutas vermelhas e, quando há passagem por carvalho, notas de baunilha e coco. Também entra na composição de espumantes − inclusive alguns ótimos brasileiros. Onde dá: França (Borgonha e Champagne), Nova Zelândia, Estados Unidos (Oregon), Chile (Leyda e Casablanca), Brasil.

Malbec

Nativa do sudoeste francês, onde se transforma em vinhos rústicos, encontrou seu lugar ideal na Argentina. O sol abundante do deserto de Mendoza transforma a malbec em vinhos frutados (amora, cereja) e florais (violeta), encorpados e suculentos.

SI_Vinho_Uva_7

Recentemente, o vizinho Chile passou a investir nessa uva, produzindo exemplares de perfil aromático distinto − com notas mentoladas e de especiarias. Onde dá: Argentina (Mendoza, Salta, Patagônia), França (Cahors, Bordeaux), Chile (Colchagua).

Syrah

A syrah é a uva tinta que reina no vale do Rhône (sul da França), prevalecendo nos blends de vinhos conceituadíssimos, como o Côte-Rotie e o Hermitage. No nariz, a syrah geralmente lembra especiarias como pimenta negra e um toque levemente defumado.

SI_Vinho_Uva_8

No Novo Mundo, encontrou seu lugar na Austrália, que se tornou referência em vinhos intensos, com aromas de frutas negras e chocolate. Lá, a uva recebe o nome de shiraz. Onde dá: França (Rhône e Languedoc), Austrália, África do Sul, EUA (Washington) e Chile (Rapel).

Outras variedades

SI_Vinho_Uva_9

1Riesling
Uva de clima frio, resulta em bebidas minerais e intensamente aromáticas. Os exemplares alemães podem ser secos ou adocicados. Onde dá: Alemanha, França (Alsácia), Nova Zelândia.

2Prosecco
Para proteger seus vinhos de imitações, a Itália recentemente mudou o nome desta uva para glera. Produz espumantes que vão do sofrível ao muito bom. Onde dá: Itália (Vêneto).

3 Carmenère
Uva bordalesa que se julgava extinta até que o Chile percebeu que a plantava como se fosse merlot. Vinhos tintos com forte caráter vegetal, de clorofila. Onde dá: Chile (Colchagua).

4 Nebbiolo
A uva-símbolo do Piemonte não se adapta bem a outras regiões. Sua cor relativamente pálida engana: os vinhos são bastante tânicos e podem requerer envelhecimento. Onde dá: Itália (Piemonte).

5 Pinotage
Cruzamento de pinot noir e cinsault, fez sucesso somente nos vinhedos sul-africanos. Seus críticos dizem que ela produz vinhos com aroma de tinta − o que não é nada bom. Onde dá: África do Sul.

SI_Vinho_Uva_10

6Primitivo
Uva nativa do quente sul da Itália, onde gera vinhos tintos suculentos e muito alcoólicos. Nos Estados Unidos, mudou de nome para zinfandel. Onde dá: Itália (Puglia) e EUA (Califórnia).

7Sangiovese
Variedade típica da Itália central, resulta em vinhos com acidez marcante − que podem ser de médio corpo (Chianti) ou encorpados (Brunello de Montalcino). Onde dá: Itália (Toscana), EUA (Califórnia).

8 Tannat
Nasceu no país basco francês, mas foi adotada pelo Uruguai − único país a investir na tannat como varietal. Onde dá: Uruguai, EUA (Califórnia).

9 Tempranillo
Uva abundante em toda a Península Ibérica, resulta em vinhos potentes e ricos em notas de frutas e especiarias. É a base dos grandes rótulos de Rioja e Ribera del Duero. Onde dá: Espanha (Rioja, Ribera del Duero, Toro, Catalunha), Portugal (Douro, Porto, Alentejo).

10 Touriga nacional
Em meio à confusão das variedades portuguesas, a touriga nacional se destaca − é uma das poucas a serem plantadas isoladamente. O aroma floral (de violeta, principalmente) é característico. Onde dá: Portugal (Douro, Porto, Dão).

Publicidade

Tags Relacionadas

Matéria exclusiva para assinantes. Faça seu login

Este usuário não possui direito de acesso neste conteúdo. Para mudar de conta, faça seu login

Black Friday

A melhor notícia da Black Friday

BLACK
FRIDAY
Digital Completo
Digital Completo

Acesso ilimitado ao site, edições digitais e acervo de todos os títulos Abril nos apps*

Apenas 5,99/mês*

ou
BLACK
FRIDAY

MELHOR
OFERTA

Impressa + Digital
Impressa + Digital

Receba Super impressa e tenha acesso ilimitado ao site, edições digitais e acervo de todos os títulos Abril nos apps*

a partir de 10,99/mês

ou

*Acesso ilimitado ao site e edições digitais de todos os títulos Abril, ao acervo completo de Veja e Quatro Rodas e todas as edições dos últimos 7 anos de Claudia, Superinteressante, VC S/A, Você RH e Veja Saúde, incluindo edições especiais e históricas no app.
*Pagamento único anual de R$71,88, equivalente a 5,99/mês.

PARABÉNS! Você já pode ler essa matéria grátis.
Fechar

Não vá embora sem ler essa matéria!
Assista um anúncio e leia grátis
CLIQUE AQUI.