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Como o corpo reage ao vício digital

Aborrecer-se por ficar sem uma funcionalidade é normal. Mas pânico, fúria, tristeza profunda podem ser sintomas de algo um pouco maior: o vício digital.

Texto: Thais Sardá | Design: Andy Faria | Imagens: Getty Images

V

ocê fica acordado até mais tarde e vira de um lado para o outro na cama com os olhos vidrados no smartphone só para dar mais uma olhadinha nas redes sociais. No bar, em uma mesa cheia de amigos e chope gelado, mantém os olhos fixos naquela tela de menos de 6 polegadas, a despeito da conversa animada ao redor. Identificou-se com a descrição? É hora de assumir: você precisa de um detox digital. Com abordagens que vão de grupos de apoio a internação, o tratamento para se livrar do vício em smartphone, notebook, tablet e assemelhados serve para lembrar que, sim, há vida além da internet.

Uma pesquisa realizada no Instituto de Psiquiatria da Universidade Federal do Rio de Janeiro indica que 34% das pessoas admitem ter ansiedade longe dos celulares e 54% têm medo de se sentir mal por não estar com o aparelho. Isso tem nome: nomofobia. Uma abreviação da expressão no-mobile-phone phobia (em português, medo de ficar sem telefone celular), o transtorno é aquela sensação de desconforto e ansiedade causada pelo medo de ficar offline.

Quem se sentiu desnorteado com a possibilidade de ficar sem acesso ao WhatsApp por apenas dois dias não precisa correr em busca de ajuda psiquiátrica. Nem mesmo quem passa horas por dia online precisa se desesperar, porque não é o tempo que qualifica o dependente. O limite entre o normal e o exagero são as consequências.

O problema começa quando você usa a internet como um escape da realidade. Com um pouco de descuido, começa a ter uma preocupação excessiva em ficar conectado, relembrando o que aconteceu na última sessão e antecipando a próxima. No seu cérebro, a sensação de prazer que a liberação de dopamina promove a cada novo like recebido no Facebook vai transformando o hábito em vício. Essa recompensa estimula a ficar cada vez mais tempo online, em busca de satisfação.

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A partir daí, um dos sintomas mais comuns é a ansiedade. Você tenta cortar a internet e não consegue. Depois, vêm os sentimentos de inquietação, mau-humor e irritabilidade. Apenas um passo para a depressão. Quando percebe, você está passando o dobro do tempo que pretendia online, arriscando perder relacionamentos ou oportunidades, enganando as pessoas ao redor para não ser julgado pelo tempo que passa na companhia do Wi-Fi.

O diagnóstico é difícil de ser feito porque o vício em internet é comportamental, ligado a um hábito, diferentemente da dependência química, como a da nicotina ou a do álcool. Conforme o britânico Mark Griffiths, professor de vícios comportamentais da Universidade de Nottingham Trent, no Reino Unido, para ser enquadrado como vício, o comportamento precisa de seis critérios mantidos por, ao menos, seis meses: excesso, mudança de humor, indulgência, abstinência, conflito e recaída.

Embora seja uma situação extrema, o vício em internet não é tão raro assim. Segundo a psicóloga Hilarie Cash, fundadora do Restart, um programa para esse tipo de dependência no Estado de Washington, nos Estados Unidos, 8% dos usuários de internet em geral são viciados ou utilizam a tecnologia para manter outro vício, especialmente jogos. Esse número chega a 19% em idades entre 18 e 25 anos, fase em que os jovens controlam suas decisões.

Entre os pacientes da clínica Restart, 72% têm entre 18 e 22 anos, e a maior parte deles chega à entidade porque repetiu de ano na faculdade. Como ainda são dependentes financeiramente, a família mantém poder sobre eles. Nesses casos, os pais fazem uma espécie de consultoria para aprender a impor autoridade, estabelecendo um sistema de confiança e recompensa: por exemplo, a faculdade só é paga se o estudante recuperar as notas. Em casos extremos, familiares podem monitorar o computador dos filhos e acompanhar a atividade online.

<strong>Homens são mais estimulados por jogos complexos, que exigem uma grande quantidade de tempo para desenvolver habilidades e conquistar objetivos.</strong>
Homens são mais estimulados por jogos complexos, que exigem uma grande quantidade de tempo para desenvolver habilidades e conquistar objetivos. (Thanasis Zovoilis/Getty Images)

Outro dado da clínica comandada por Hilarie, que tratou cerca de 150 pessoas para o vício em internet nos últimos seis anos: 95% dos clientes são homens. Segundo ela, eles são mais estimulados por jogos complexos, que exigem uma grande quantidade de tempo para desenvolver habilidades e conquistar objetivos. Esses jogos também promovem um senso de comunidade, porque os usuários interagem dentro e fora das sessões, com troca de tutoriais e criação de hierarquias. As mulheres, por outro lado, jogam casualmente, sem investir tanta energia.

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Nos casos mais graves, que exigem desintoxicação radical, a internação do paciente dura em média 54 dias na clínica Restart, tempo no qual ele é privado de qualquer contato com tecnologia. O índice de recuperação é de 80%. O principal desafio, porém, está após a alta. Enquanto um alcoólico pode se afastar da bebida e cortá-la da sua rotina, é impossível, hoje, viver longe dos computadores.

Nesse ponto, começa a terapia para estabelecer o uso saudável de internet. Primeiro, é preciso um planejamento individual de como será a interação com os gadgets. Depois, a reinserção é gradual e com acompanhamento, para diminuir os riscos de recaída.

No Brasil, onde o vício em internet não é considerado um transtorno psiquiátrico, e os planos de saúde não são obrigados a pagar pelo tratamento, não há clínicas especializadas. Assim, o viciado só é colocado em uma instituição se apresentar um quadro agudo de uso dos gadgets, em que pare de se alimentar para continuar online, por exemplo, ou outras doenças sobrepostas, como depressão ou fobia social, decorrentes do vício online.

No restante dos casos, o controle é feito especialmente por meio de grupos de apoio especializados. O Grupo de Dependências Tecnológicas do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da Universidade de São Paulo (USP) tem um programa que dura 18 semanas para atender a quadros de vício em internet. A ideia é transferir a segurança que o indivíduo sente quando está online, porque deixa de enfrentar os problemas cotidianos e troca as interações humanas pela tela, pela ajuda de um grupo.

O detox digital e o cérebro

Entenda como o vício começa…

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1Uso
Quando depara com um novo estímulo, o organismo começa a aprender a lidar com ele. Por exemplo, a pessoa entra pela primeira vez em um chat e descobre suas dinâmicas e suas funcionalidades.

2Recompensa
Se o uso da ferramenta passa a dar prazer, é porque o cérebro aumenta a liberação de um neurotransmissor chamado dopamina. A função dessa substância é dar um feedback positivo, uma recompensa ao organismo.

3Círculo
Por causa dessa recompensa, o cérebro começa a criar um circuito: quanto mais uso, mais dopamina libera. Por isso, a pessoa aumenta a atividade online, em busca da manutenção do prazer.

Ícones cérebro, wifi e coração

…e como o organismo reage à desintoxicação

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1Detox
Por iniciativa própria ou com ajuda especializada, a pessoa percebe que está exagerando no tempo online e decide suspender o uso. Começa, então, uma desintoxicação.

2Abstinência
Quando o corpo para de receber o estímulo, o cérebro aumenta a liberação de uma substância em especial: a noradrenalina, causando sintomas de ansiedade, como pressão alta, taquicardia e inquietação.

3Recuperação
Se a pessoa supera a abstinência e retoma a vida sem excessos, está recuperada, embora tenha de se manter afastada ou usar as ferramentas com equilíbrio.

Acampamento só para adultos

Foi preciso uma experiência de quase morte para que o americano Levi Felix entendesse que o ritmo estava forte demais. Vinte e quatro anos, vice-presidente de uma startup, notebook sempre por perto, 75 horas de trabalho por semana, olhos no tablet, festas, só mais uma conferida no smartphone. Resultado: o executivo foi hospitalizado com uma ruptura no esôfago e sangramento interno. “Antes de parar no hospital, eu estava feliz, aproveitando a vida”, diz. Mas o problema agudo acabou com a fantasia e mostrou a única alternativa: reiniciar.

Ao lado da namorada, Brooke Dean, Felix partiu para viajar pelo mundo com a mochila nas costas. Buscaram equilíbrio. Aprenderam ioga. Começaram a meditar. Ficaram dez dias em silêncio em um monastério tailandês. Gerenciaram um hotel no Camboja. Passaram por 15 países. Viveram dois anos e meio na estrada.

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De volta aos Estados Unidos, em 2012, fundaram o Digital Detox, numa organização que tem como lema “desconecte-se para se reconectar” e busca incentivar um estilo de vida com menos 3G e mais reflexão. A resposta foi um sucesso. Felix se transformou uma espécie de guru no tema, com entrevistas para dezenas de veículos no mundo todo e participação em TEDs.

Uma das iniciativas do Digital Detox é o Camp Grounded – acampamento de verão para adultos mais badalado do mundo, com edições em 30 Estados norte-americanos e sete países diferentes. Felix montou o acampamento porque tinha vontade de passar alguns dias em um retiro. Como não encontrou o lugar ideal, resolveu criar o seu. Durante os encontros, a ideia não é demonizar a tecnologia, mas pensar em como utilizá-la de uma maneira equilibrada, dando atenção às ferramentas que realmente importam.

Na rotina do acampamento, há 25 oficinas, como redação em máquina de escrever, artesanato, fotografia analógica, dança e aconselhamento, entre outros. O público é diversificado, com idades entre 18 e 75 anos, e inclui até executivos de grandes corporações, todos sob o mesmo mantra: diminua o ritmo, o trabalho, os problemas. Até as atualizações do Facebook podem esperar.

Embora possa ser um desafio interessante se impor passar um fim de semana inteiro offline, não dá para confundir isso com uma verdadeira reabilitação. Quem faz essa ressalva é o psicólogo e coordenador do Grupo de Dependências Tecnológicas da USP, Cristiano Nabuco. Para ele, essas iniciativas podem sugerir uma internação aos leigos, mas são, no máximo, uma brincadeira.

As pessoas que de fato estão doentes não conseguem ficar por escolha própria sem internet. Pelo contrário. Em alguns casos, podem se tornar até agressivas se a conexão for cortada. Por isso, iniciativas como retiros podem ajudar os heavy users, pessoas que passam muitas horas conectadas, mas não quem é viciado de fato.

Nada impede, porém, a busca por uma terapia alternativa. E a última moda para quem quer se desconectar é o mindfulness training (um treinamento de meditação). Trata-se de uma rotina de exercícios mentais inspirados na meditação budista e que busca estimular a concentração e a atenção. Assim, as pessoas se tornam menos reativas e mais amigáveis.

Recomendado para a recuperação de diferentes vícios, o mindfulness training instiga o praticante a entender as sensações corporais e como o organismo alerta sobre seus desequilíbrios. Também treina a respiração e a atenção às emoções e aos pensamentos, estimulando o autocontrole. Os primeiros resultados aparecem em dois meses. No mínimo, são duas horas por semana para tentar esquecer a existência do smartphone. Findo o prazo, é só ligá-lo novamente – e tentar pouco a pouco se relacionar com a tecnologia de uma forma mais leve.

Você é viciado em internet?

É preciso se encaixar em pelo menos cinco dos oito critérios listados.

1 • Você fica preocupado com a internet, pensando sobre a sua atividade online anterior e antecipando a próxima sessão?

2 • Você sente a necessidade de usar a internet gradativamente, aumentando o tempo online?

3 • Você foi repetidamente malsucedido nas tentativas de controlar, reduzir ou cortar o uso?

4 • Você se sente inquieto, rabugento, depressivo ou irritado quando tenta reduzir ou parar de usar a internet?

5 • Você fica mais tempo online do que pretendia inicialmente?

6 • Você já prejudicou ou se arriscou a perder um relacionamento importante ou uma oportunidade de emprego, educação ou carreira por causa da internet?

7 • Você já mentiu para familiares, terapeuta ou outros para esconder quanto tempo você passa na internet?

8 • Você usa a internet como uma forma de escapar de problemas?

Crianças em reabilitação

Quanto mais tarde os pequenos aprenderem sobre os riscos do excesso de internet, pior.

Impossível criar uma criança alheia à tecnologia em pleno século 21. Nem faz sentido mantê-la em uma redoma offline fingindo que a internet não existe. Mas se os limites já são importantes para os adultos, com as crianças eles se tornam fundamentais.

A recomendação da Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP) é para que crianças de até dois anos não tenham qualquer contato com gadgets. Seguindo sugestão da Organização Mundial de Saúde (OMS), entre os dois anos e a adolescência, as crianças devem utilizar somente tablets e por, no máximo, duas horas diárias. Mais do que isso pode causar dor de cabeça e no corpo, irritabilidade, agressividade e até queda do rendimento escolar.

<strong>A recomendação da Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP) é para que crianças de até dois anos não tenham qualquer contato com gadgets.</strong>
A recomendação da Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP) é para que crianças de até dois anos não tenham qualquer contato com gadgets. (Ioannis Tsotras/Getty Images)

Porém, a Academia Americana de Pediatria (AAP) já alertou que esses números estão sendo revistos. A principal mudança esperada está no tempo recomendado, que deve aumentar, desde que haja controle sobre o conteúdo e o tempo online seja intercalado com outras atividades.

Nas crianças, o primeiro sinal de que as coisas não vão bem e os limites estão ameaçados é aquela resmungada na hora de tirar o tablet das mãos delas. O diagnóstico nas crianças é feito quando preferem o tablet a brincar com os amigos, usar brinquedos analógicos ou interagir com a família. O diferencial do detox digital nas crianças é que ele deve se estender à família.

Doutora em psicologia e fundadora do Restart, Hilarie Cash afirma que os pais devem estabelecer limites saudáveis para o uso de tecnologia, mas antes disso precisam conhecer e entender esses limites. Na maioria dos casos, é uma questão de mudar a rotina da família – depende da disponibilidade dos pais e do empenho em ajudar os filhos a descobrirem suas aptidões e desenvolverem interesses por atividades diferentes.

E quanto mais velhos os filhos vão ficando, pior. Lidar com esse problema na adolescência é tão complicado que a clínica Restart está desenvolveu um programa de internação de adolescentes por longos períodos, de até oito ou nove meses. Hoje, no Brasil, esse trabalho é suprido por colônias de férias e grupos como os escoteiros, que incentivam atividades manuais e a prática de esportes, além de limitar o acesso à internet.

Graças a leis estaduais e municipais, as escolas também têm se tornado aliadas no controle do acesso não monitorado à internet. Amazonas, Ceará, Minas Gerais, Rio de Janeiro e São Paulo estão entre os Estados que proibiram o uso de smartphone pelos alunos durante as aulas.

Conforme a pesquisa Tecnologia, Distração e Desempenho Estudantil, realizado pela London School of Economics and Political Science, a preocupação faz muito sentido: as escolas britânicas que baniram os smartphones das salas de aula melhoraram em até 14% os resultados dos alunos em avaliações nacionais.

7 passos para um detox digital

Se você se assustou ao ler esta reportagem, mas não chega a ser um viciado em internet, há medidas que podem ser tomadas agora.

1• Determine uma hora limite para manter o celular ligado à noite. Por exemplo: desligue o telefone sempre entre as 23h e a hora de acordar. Assim, você estabelece uma rotina para garantir algumas horas off line todos os dias.

2 • Ignore o smartphone quando estiver com outras pessoas. Essa é uma verdadeira declaração de amor hoje: deixar o aparelho longe do alcance dos olhos, para prestar mais atenção na conversa do que na tela.

3 • Na hora das refeições, evite comer em frente ao computador ou levar o smartphone para a mesa. Nutricionistas alertam que você come mais e pior quando não se concentra no alimento. Use esse tempo para conversar ou refletir.

4 • Bloqueie as notificações de aplicativos que não são fundamentais na sua rotina, como algumas redes sociais. Assim, você evita aquela distração com o celular piscando ou a tela inundada de alertas.

5 • Estabeleça horários e um limite de tempo para navegar nas redes sociais e em sites de notícias. Por exemplo: 30 minutos durante a manhã, mais 30 minutos depois do almoço e mais 30 minutos à noite.

6 • Tolere as notificações na tela do smartphone, mesmo que se acumulem. Não é porque você recebeu um e-mail ou alguém comentou em uma foto sua no Facebook que precisa responder imediatamente. Relaxe.

7 • Mantenha o telefone no silencioso quando você estiver precisando de concentração no trabalho. Assim, você não se distrai com os sons das notificações nem atrapalha a atenção dos colegas ao redor.

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