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Saúde

Epidemias invisíveis: as doenças além da Covid-19

O coronavírus não cancelou surtos de sarampo, dengue e ebola. Ao fragilizar a saúde pública mundial, ele pode torná-los ainda mais perigosos.

Texto: Bruno Carbinatto | Design: Juliana Krauss | Edição: Bruno Vaiano

Em outubro de 1977, Ali Maow Maalin, cozinheiro de um hospital na Somália, pegou varíola. Ele não sabia, mas era a última pessoa do mundo a contrair naturalmente a doença* – que infectou 1 bilhão de pessoas e matou 300 milhões ao longo do século 20. Ali sobreviveu. E entrou para a história. Quando ele recebeu alta, a varíola se tornou a primeira (e até hoje, a única) doença humana completamente erradicada. 

Não à toa, Ali seguiu atuando na saúde pública: se tornou coordenador local da Organização Mundial da Saúde (OMS) na Somália, e viajava o país educando a população sobre a importância da vacinação (ele pegou varíola porque não se imunizou – tinha medo de injeção). Em 2013, enquanto participava de uma campanha contra a poliomielite, Ali foi picado por um mosquito e contraiu malária. Dessa vez, não resistiu. 

Ali é um personagem emblemático da guerra da civilização contra o mundo microscópico. Uma guerra em que vencemos uma única batalha – a da varíola – , e perdemos todas as outras. Enquanto a covid-19 vira o mundo de ponta-cabeça, doenças que nos assolam há muito mais tempo – sarampo, febre amarela, dengue, ebola – encontram um terreno fértil no caos econômico e no colapso da saúde pública, principalmente em países subdesenvolvidos.

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Em março, a OMS recomendou cessar temporariamente a vacinação em massa em todos os países. Afinal, qualquer campanha inevitavelmente gera aglomerações e contato físico entre as pessoas, em especial nos lugares mais pobres. O Centro de Controle de Doenças (CDC) dos EUA estima que, por conta da medida, 78 milhões de crianças ficarão sem imunização. Isso abre portas para algo perigosíssimo: epidemias dentro da pandemia. Nas próximas páginas, descubra quais são as doenças que mais nos ameaçam por baixo do panos – e por que, apesar de existirem há tanto tempo e serem tão letais, elas nunca receberam a atenção necessária.

*Em 1978, na Inglaterra, uma fotógrafa pegou varíola acidentalmente por causa de uma amostra do vírus guardada em um laboratório para fins de pesquisa. Como a transmissão não foi entre humanos, o caso não conta. 

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Além da Covid-19, há dezenas de surtos de diversas doenças acontecendo atualmente. A OMS reconhece estes seis como os mais preocupantes.

MERS: Também causada por um coronavírus, começou em 2012 no Oriente Médio. Hoje, conta poucos casos na Arábia Saudita, mas preocupa pela mortalidade de 35%.

Febre de Lassa: Nos últimos 50 anos, causou 5 mil mortes por ano na África. Após uma breve redução, os números voltaram a crescer na Nigéria em 2019.

Sarampo: A República Democrática do Congo (RDC) enfrenta a maior epidemia desde a invenção da vacina, e não está sozinha. Em 2019, houve pelo menos 800 mil casos pelo mundo.

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Ebola: Desde 1976, a doença já causou surtos em 11 países, totalizando, no mínimo, 15 mil mortes. O surto atual, na RDC, é o segundo maior da história: já matou 2,2 mil pessoas.

Febre amarela: Está quase erradicada, mas houve recaídas perigosas na Etiópia, Sudão do Sul e Uganda em 2019. O Brasil registrou 777 casos entre 2016 e 2017.

Dengue: Comum em 129 países tropicais, a dengue registra 390 milhões de casos e 25 mil mortes todos os anos. Um surto recente na Guiana Francesa e no Caribe chamou a atenção da OMS.

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A volta da que não foi

No mapa acima, listamos seis doenças, fora a Covid-19, que estão oficialmente no radar da OMS por estarem causando surtos neste exato momento.  

É bom esclarecer que essas não são, nem de longe, as únicas doenças rolando em 2020. Nem sequer são as que deixam mais vítimas: a síndrome respiratória do Oriente Médio, também causada por um coronavírus, registrou apenas 56 casos (e 18 mortes) na Península Arábica neste ano. A febre amarela, 13 casos (e 4 mortes) no Sudão do Sul e na Etiópia. O que as coloca na lista negra da OMS não são os números atuais, mas o risco de que se tornem algo maior e pior – até pelos altos índices de mortalidade dessas doenças. 

Mas, se você quer números grandes, há um vírus da lista que disputa até com o SARS-CoV-2 – ainda que não tenha nada de novo. É o do sarampo. Em 2019, os países membros da OMS registraram quase 800 mil casos da doença. O número real, porém, deve ser muito maior, já que em lugares mais pobres a doença sequer é diagnosticada – há quem fale em 10 milhões de casos e 140 mil mortes só no ano passado.

O sarampo é o vírus mais contagioso que se conhece: uma única pessoa pode infectar até outras 18 enquanto doente. No caso da gripe comum, esse número é pouco maior que 1; o coronavírus fica entre 2 e 4. A letalidade do sarampo é de 6%, mas pode chegar a 30% com fatores como a desnutrição. Antes da vacina, criada em 1963, praticamente toda criança pegava sarampo. A maioria sobrevivia e criava imunidade, mas estima-se que até 8 milhões morriam por ano. Com a vacina, a erradicação se tornou uma possibilidade real. Mesmo assim, 2019 foi o pior ano em número de casos desde 2006. 

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(Ilustração: Leonardo Yorka | Design: Juliana Krauss/Superinteressante)

O motivo do ressurgimento é simples: queda na cobertura vacinal. Quando o vírus do sarampo pega um, ele pega geral, então estima-se que 95% de uma população precise estar vacinada para criar imunidade de rebanho contra essa tropa elite microscópica. Em vários lugares do mundo, Brasil incluído, essa porcentagem foi atingida algum dia, mas depois caiu. Com isso, epidemias de sarampo despontam aqui e ali ocasionalmente. O que aconteceu? Onde foram parar as vacinas?

A OMS usa o chamado “Modelo dos três Cs” para explicar o fracasso. O primeiro C é de conveniência, e se refere ao lado logístico da coisa: não adianta ter vacina se as doses não alcançam todo o território. O segundo C é de complacência  – um fenômeno típico de áreas onde o número de casos caiu ao longo dos anos. As mães e pais de hoje já não convivem mais com a doença, o que passa uma falsa sensação de segurança. Muita gente se esquece (ou fica com preguiça) de levar o filho ao posto de saúde. Por fim, o terceiro C, de confiança. Mais precisamente, falta de confiança – na vacina. Trata-se, é claro, do movimento pseudocientífico que se opõe abertamente às vacinas. 

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A questão é saber qual dos Cs explica o desempenho melancólico do Brasil contra o sarampo. Em 2017, tínhamos zero casos – e até um certificado de erradicação. No ano seguinte, foram 10,3 mil casos. Em 2019, 18,2 mil. Não só rasgamos o certificado como pulamos direto para o terceiro lugar do ranking mundial da doença nos últimos 12 meses. O que explica o retrocesso? O primeiro C tem alguma parcela de culpa. “A capilaridade do SUS foi diminuindo com o tempo”, diz Flora Gonçalves, da Universidade Federal de Minas Gerais. “Em muitos lugares, a vacina do sarampo parou de chegar”. Mesmo assim, ainda somos referência mundial em campanhas de vacinação, e nosso movimento antivacina se limita a uns poucos nichos online. No fim das contas, o segundo C talvez seja o mais importante – falta conhecimento sobre os perigos do sarampo, e a necessidade de vacinação. 

Em alguns países, o movimento antivacina – o terceiro C – ganhou proporções perigosas. A cobertura vacinal contra o sarampo caiu de 95% em 2000 para 31% em 2016 na Ucrânia. De 2017 até hoje, 115 mil ucranianos ficaram doentes. Em 2018, apenas metade da população ucraniana afirmou confiar na eficácia de vacinas. Mesmo em países ricos, como o Reino Unido, houve uma alta preocupante – de 284 casos em 2017 para 991 em 2018. 

Enquanto algumas populações fazem birra anticientífica, outras padecem involuntariamente. O maior surto de sarampo desde a invenção da vacina está acontecendo agora, em pleno coronavírus, na República Democrática do Congo (RDC), país do centro da África. Já foram 530 mil casos e no mínimo 6,5 mil mortes – não há como saber ao certo, porque os números são largamente subestimados. Por ser uma área de conflito militar, comandada por regimes autoritários instáveis e atendida por um sistema de saúde frágil, é quase impossível contar as vítimas. Em 2018, a Unicef calcula que só 57% das crianças do país foram vacinadas. Só podemos imaginar quais serão as consequências com o cancelamento total da campanha por causa da covid-19.

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Velhos conhecidos

Para piorar, a RDC enfrenta um inimigo ainda mais mortal: o vírus ebola. Em 10 de abril, alguns dias antes da OMS declarar o fim da epidemia (eles estavam desde 17 de fevereiro sem nenhum infectado), novos casos foram diagnosticados. A contagem de dias reiniciou – oficialmente, a epidemia ainda está acontecendo. O ebola não é nada novo na região: só na RDC, esse é o décimo surto. Até agora, já foram 3,3 mil casos e 2,2 mil óbitos, o que torna o episódio atual a segunda epidemia de ebola mais mortal da história (a primeira ocorreu em vários países do oeste da África entre 2013 e 2016, causando 11 mil mortes).

ATUALIZAÇÃO: No dia 1 de junho de 2020, a República Democrática do Congo declarou seu 11º surto de ebola, dessa vez na província de Équateur, no noroeste do país. Segundo a OMS, foram registrados 6 casos até agora, dos quais 4 terminaram em óbito. Como o 10º surto, concentrado nas regiões de Kivu do Norte e Kivu do Sul, ainda não terminou oficialmente, o país enfrenta atualmente duas epidemias de ebola distintas ao mesmo tempo.

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(Ilustração: Leonardo Yorka | Design: Juliana Krauss/Superinteressante)

Apesar de a epidemia agora estar quase controlada, a OMS não retira seu status de emergência internacional por dois motivos. O primeiro é a letalidade altíssima – até 90% dos infectados podem morrer. O segundo é que o ebola só se espalha quando a prevenção vacila muito. Afinal, a transmissão exige contato direto com fezes, sangue ou vômito infectados. É por isso que o vírus não vinga em países ricos: basta isolar os primeiros pacientes que o surto acaba.

Ao contrário da Covid-19 ou do sarampo, que são essencialmente incontroláveis sem vacina, o ebola só não foi erradicado ainda porque a saúde pública na África Subsaariana sofre com uma escassez de recursos absurda. “Pouquíssimas comunidades têm postos de saúde, e as que têm atendem várias outras comunidades distantes”, diz Denise Pimenta, antropóloga que acompanhou o surto de ebola em Serra Leoa em 2015. “No início da epidemia, Serra Leoa tinha uma única ambulância [para uma população de 7 milhões de pessoas].” Muitos pacientes acabam sendo tratados em casa, sem equipamentos de proteção. Isso explica por que as mulheres formam a maior parte das vítimas. Em geral, são elas que cuidam dos doentes.

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Além de sistemas de saúde pública e de vigilância sanitária extremamente frágeis e precários, a região é palco de altas taxas de infecção por zoonoses. “Atividades humanas em ambientes silvestres como a caça, a pesca e a atividade agrícola e sua expansão para novas áreas resultam na entrada do homem em nichos ecológicos onde há naturalmente ciclos de transmissão de patógenos entre animais e vetores silvestres”, explica Waneska Alexandra Alves, epidemiologista da UFJF. “Na África esses fatores são muito fortes pois, além de uma rica biodiversidade, os indicadores sociais alarmantes, a elevada taxa de natalidade e o alto crescimento vegetativo comprometem a qualidade de vida da população.”

Tuberculose, aids, poliomielite, malária, esquistossomose, febre de lassa e doença do sono continuam todos na ativa no continente. E, neste lado do Atlântico, os brasileiros enfrentam suas próprias batalhas, como a dengue e, em menor escala, zika e chikungunya. A OMS divide as doenças que varrem os países tropicais em duas categorias. Tuberculose, malária e aids formam um grupo conhecido como big three – “três grandes” –, por receberem, historicamente, a maior fatia da ajuda humanitária e do investimento em pesquisa. Outras 20 doenças perfazem o grupo das negligenciadas.

São doenças que compartilham certas características: muitas não são letais se forem tratadas corretamente, e têm remédios acessíveis – com US$ 0,20 por ano é possível curar uma criança com esquistossomose. Como não afetam a Europa, os EUA ou o leste da Ásia, têm pouco impacto econômico global e recebem pouca atenção midiática – mesmo quando contam mais casos que a Covid-19. Esses patógenos com frequência pegam carona na comida, na água e em animais, e se aproveitam da falta de moradia e saneamento básico. Ou seja: são doenças associadas ao subdesenvolvimento.

Vamos voltar ao exemplo familiar: a dengue. Ela não é uma exclusividade brasileira, claro. Afeta 129 países, e 70% dos casos se concentram em regiões tropicais da Ásia. Um estudo de 2013 calculou que, todos os anos, 390 milhões de pessoas são infectadas pelo vírus, e 96 milhões desenvolvem sintomas (a dengue pode ser assintomática, por isso sofre com subnotificação). São números dignos de pandemia. É comum transferir a culpa para os vetores – como o Aedes aegypti –, mas duas décadas de campanha contra água parada não resolveram a dengue no Brasil. “A maior parte das políticas públicas são baseadas em controlar mosquitos”, diz o antropólogo Jean Segata, da UFRGS. “Mas algumas pessoas guardam água em baldes porque ela chega em casa uma vez por semana.”

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(Ilustração: Leonardo Yorka | Design: Juliana Krauss/Superinteressante)

A varíola não deverá ficar solitária no hall dos patógenos extintos. Estamos próximos da erradicação de algumas doenças – a poliomielite, por exemplo, existe só em três países (Afeganistão, Paquistão e Nigéria). Malária e tuberculose estão no meio do caminho. Mas os desafios, antes, eram menores: na época da erradicação da varíola, o mundo era menos globalizado e populoso, e havia uma vacina barata. Contra a malária, sequer há um meio eficaz de imunização. E a tuberculose é como o sarampo: mostra que uma vacina, sozinha, não resolve o problema. Pelos próximos meses (ou anos), com as atenções e o dinheiro voltados à Covid, é compreensível que a humanidade não avance no combate a outras doenças. Mas é importante não tirar o olho dos retrocessos

Agradecimento: Waneska Alexandra Alves, epidemiologista e professora adjunta do Departamento de Medicina da Universidade Federal de Juiz de Fora.

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