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Ciência

Como cientistas descobrem novas espécies – sem sair do laboratório

Animais jamais classificados pela ciência podem passar décadas escondidos em coleções de museus. O trabalho dos taxonomistas é trazê-los à tona.

por Guilherme Eler Atualizado em 30 set 2020, 15h37 - Publicado em 18 jul 2019 18h42

Texto: Guilherme Eler | Ilustração: Leandro Lassmar | Design: Carol Malavolta | Edição: Ana Carolina Leonardi


“É como se fosse uma biblioteca”, conta Luiz Simone enquanto caminha entre as estantes de seu laboratório no Museu de Zoologia da USP, onde trabalha há 16 anos. Em vez de armazenarem clássicos da literatura, as prateleiras estão repletas de itens que já foram vivos um dia. Polvos, ostras, mariscos, lulas, caramujos de todos os tipos ficam aprisionados em frascos com álcool. Um incontável estoque de conchas, cuidadosamente etiquetadas em potes plásticos, enchem centenas de gavetas de metal. É mesmo uma biblioteca – de moluscos.

O acervo possui 140 mil volumes diferentes, nacionais e importados, e é a maior coleção do Brasil dedicada a esses animais. Sua função principal é servir como um catálogo, um verdadeiro checklist da biodiversidade de invertebrados molengas de praias, mangues, cavernas e onde mais decidirem se esconder.

Como se fossem obras de referência, os bichos guardados ali podem ser consultados por qualquer cientista que queira entender mais a fundo as espécies já conhecidas pelos humanos. “Imagine se cada pesquisador que precisasse estudar uma espécie tivesse que ir até a natureza coletá-la?”, diz Simone.

Mas bancos do tipo podem também revelar espécies totalmente novas, que ninguém fazia ideia que existiam – e estavam escondidas bem debaixo do nariz dos cientistas.

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O trabalho de descrever novas espécies na maioria das vezes não é concluído pelo mesmo cientista que se embrenhou em matas densas ou mergulhou em águas profundas atrás desses animais desconhecidos. O mais comum é que as amostras coletadas em missões do tipo sejam levadas para laboratórios e, então, passem por análises mais aprofundadas.

Em coleções mantidas por museus e universidades, esses animais aguardam placidamente a chegada dos experts em colocar ordem na bagunça: os taxonomistas. É ofício deles definir, a partir de diferentes critérios, se uma determinada amostra merece fazer parte do acervo – e, principalmente, se representa ou não algo novo. O trabalho é volumoso: pelo menos 5 mil lotes de moluscos chegam à coleção todo ano.

Mas como é possível saber que uma espécie é única, diferente de qualquer outra que já foi descrita? Em alguns casos, um olho treinado consegue entender logo de cara quando se trata de uma novidade. “Vai muito da experiência da pessoa. Eu lido com moluscos há quase 50 anos. Comecei criança, colecionando conchas, tinha por volta dos 10 anos e já sabia classificação zoológica. Eu não era normal”, brinca o pesquisador.

Quando a aparência do bicho –  fatores como o tamanho da cabeça, formato dos dentes, penagem ou características da concha – não acusa nenhum ineditismo, o negócio é apelar para outros critérios. Novas espécies podem se acusar a partir de características como os seus hábitos alimentares, suas pegadas, o ninho onde vivem ou sua voz, por exemplo.

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O problema é que, na maioria das vezes, tudo que os cientistas têm em mãos é um animal no interior de um vidro – sem um passado que possa fornecer dicas sobre sua origem. Sendo assim, a forma mais precisa de classificá-lo é investigar sua genética.

A ferramenta mais certeira para definir se uma espécie é igual a outra é a partir do sequenciamento de seu código genético. Para isso, costuma-se utilizar o método de “código de barras” (também conhecido por seu nome em inglês, barcoding). Ele consiste em analisar uma pequena sequência do DNA presente em um mesmo gene de dois indivíduos diferentes.

Mesmo o exame minucioso dos genes também não é garantia de sucesso absoluto. “Já vi barcoding de dois bichos serem diferentes e eles reproduzirem entre si, gerarem descendentes férteis. Também já peguei uma ostra do Brasil e outra da África e o barcoding deu exatamente igual”, conta Simone.

O nível de exigência faz o processo se arrastar ao longo de, no mínimo, um ano. “O normal é que dure dois ou três anos [até que se publique um artigo descrevendo uma nova espécie].” Ainda assim, o volume de novas descobertas impressiona: Simone estima já ter descrito quase 300 espécies, gêneros ou famílias de moluscos inéditos. O mais curioso é que cerca de 70% delas, segundo seus cálculos, estavam escondidas em coleções zoológicas. “Mas a gente não está aqui só para descrever bicho novo. O nobre da taxonomia é fazer revisões. Pegar um determinado gênero ou família, checar tudo e arrumar a casa”, completa o cientista. “Se eu parasse com as minhas outras obrigações e só descrevesse novas espécies, seriam umas 300 por ano, com facilidade.”

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Dando nome aos bois

O principal responsável por tornar o hobby de colecionar espécies uma ciência foi o naturalista sueco Carl Linnæus – conhecido por aqui como Lineu. No século 18, ele propôs um jeito próprio para sistematizar a arte de batizar espécies: qualquer coisa viva precisaria ganhar nome e sobrenome em latim. Homo sapiens, nossa própria espécie, e Felis catus, a dos gatos domésticos, foram dois exemplos sugeridos pelo cientista, e que valem desde então.

Feita a identificação de um novo tipo de bicho em laboratório, começa, então, a saga para nomeá-lo. Estudos supõem que não conhecemos nem 20% das espécies que existem – e, mesmo assim, a humanidade já batizou 1,8 milhão de seres com nomes diferentes.

A quantidade exige uma dose de criatividade de quem assina a descoberta. Algumas das espécies batizadas por Luiz Simone são um exemplo disso. Um molusco que só existe no Pico da Neblina, a montanha mais alta do Brasil, ganhou a alcunha de Olimpus nimbus. Outro exemplo foi Ovini petalius, chamado assim graças à sua semelhança com uma nave alienígena. “Gosto de nomear a partir de uma característica do animal”, conta.

Somam-se à lista de nomes exóticos a dupla Habeas corpus e Habeas data. De uma origem similar veio o batismo que obteve maior destaque até hoje: Lavajatus moroi, uma homenagem à Operação Lava Jato e ao juiz Sergio Moro, virou o título oficial pelo qual, por toda a eternidade, será conhecido um molusco de 3 centímetros que vive numa caverna do Ceará.

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Segundo o pesquisador, a inspiração foi a transparência da concha do animal. No ano em que a espécie foi descrita, 2015, a operação estava no auge. Simone fez o link na hora, entre a  casca transparente que mostrava o interior do bicho e a operação que revelava as entranhas da corrupção.

Ele já tem nomes na manga caso espécies raras resolvam dar as caras na coleção de moluscos do Museu de Zoologia da USP. O próximo molusco de concha alongada que aparecer já está destinado à alcunha de vuvuzela – o instrumento de sopro que tomou os estádios de futebol na Copa da África do Sul em 2010. “Ainda vou descrever, também, um ‘Lima duarte’”, brinca Simone. Meio caminho está andado: o gênero Lima de moluscos já foi criado pelo próprio Lineu, em 1758, para batizar um grupo de moluscos mediterrâneos.

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Chá de gaveta

A espécie de besouro que o biólogo Stylianos Chatzimanolis, da Universidade do Tennessee, identificou em fevereiro de 2014 era especialmente curiosa. A começar pela aparência: tinha cabeça em forma de hexágono, antenas serrilhadas e ostentava uma cor metálica que misturava tons de verde, azul e roxo.

Ele seria apenas mais um rostinho estranho no mundo dos insetos, não fosse o contexto em que a descoberta aconteceu. O besouro em questão havia sido coletado na Argentina, em 1832, pelo próprio Charles Darwin – e enviado para Londres com o nome de “espécie 708”.

Foram necessários 180 anos até que Chatzimanolis, estudando a coleção do Museu de História Natural de Londres, notasse a amostra no meio de outros 24 tipos de besouros. Ele foi o primeiro a perceber que a espécie era inédita no sistema de classificação, e se propôs a descrevê-la. Acabou batizando o bicho com o nome do descobridor, chamando o inseto de Darwinilus sedarisi.

O tempo médio que novas amostras costumam esperar até serem catalogadas, segundo um estudo de 2012, é de 21 anos.

A história ilustra o quanto pode se arrastar o trabalho de descoberta de novas espécies. Em 2012, pesquisadores do Museu Nacional de História Natural de Paris estimaram que o tempo até que animais coletados na natureza sejam descritos e catalogados como uma espécie nova é, em média, de 21 anos. Um chá implacável de cadeira ou, melhor dizendo, de gaveta.

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Entre as centenas de espécies consideradas no levantamento, destacou-se a história de uma víbora que esperou nada menos do que 206 anos armazenada em uma coleção biológica até ganhar um nome para chamar de seu – o que aconteceu apenas em 2007.

Mas por que espécies acabam passando tanto tempo negligenciadas dessa forma? A resposta provavelmente está na biodiversidade absurda que nosso planeta abriga – e no quanto ainda engatinhamos na tarefa de identificar espécies, uma ciência que existe há pouco mais de 200 anos.

“A velocidade de depósito de material em coleções geralmente é maior do que a nossa capacidade de estudá-lo”, diz Márcio Félix, pesquisador do Laboratório de Diversidade Entomológica do Instituto Oswaldo Cruz, no Rio de Janeiro. “O pesquisador geralmente está envolvido em várias outras ações, como ministrar aulas e gerir departamentos. A complexidade de estudo do material, por vezes, é alta também, exigindo que o pesquisador viaje para consultas a coleções em outros países, por exemplo”, completa.

Félix, que assina a descoberta de 30 novas espécies de insetos a partir do material de coleções biológicas, estima que o acervo do Instituto Oswaldo Cruz, um dos maiores e mais antigos do Brasil no ramo de insetos, possui 5 milhões de exemplares e 100 mil espécies diferentes – cerca de 10% do total de espécies de insetos conhecidas atualmente no planeta, que fica perto de 1 milhão.

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Escrito nas prateleiras

Além de trazer à luz novos animais, coleções podem, também, ser retratos fiéis do meio ambiente. Graças a dados fornecidos por acervos zoológicos, é possível recriar, por exemplo, como era a fauna de uma determinada praia há 30 anos, ou como o formato de bicos de aves de uma certa floresta mudou com o tempo.

Esses registros servem tanto para resolver equívocos taxonômicos históricos quanto para mapear aspectos como poluição e incidência de doenças causadas por vírus, fungos e bactérias – registrada no próprio corpo dos exemplares de animais. Mas tudo começa com o nome: no momento que se batiza uma espécie nova é que a contribuição científica dela ganha potencial.

A riqueza de coleções pode torná-las depósitos de uma biodiversidade que já não existe – pelo fato de reunirem, por vezes, os últimos exemplares de espécies extintas. Um levantamento do Museu de História Natural de Londres, por exemplo, mostrou que 36 das 260 espécies de animais, plantas, algas e fungos descobertas por pesquisadores da casa em 2018 já tinham sido riscadas do mapa.

A tendência é que o aumento de problemas ambientais e o desaparecimento sistemático de espécies tornem o trabalho de taxonomistas cada vez mais parecido com o dos astrônomos. Quando observam coleções de museu e descrevem espécies que já não existem mais, é como se eles se dedicassem à tarefa ingrata de observar estrelas que desapareceram milhares de anos atrás. Com a diferença de que, ao invés do que acontece com os corpos celestes, aquilo que foi embora não será reposto à velocidade de um pensamento.

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