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Goró e carne assada: como eram as festanças vikings

Goró e carne assada: como eram as festanças vikings

As invasões eram planejadas durante banquetes promovidos por líderes locais e regados a hidromel.

Texto: Agência Fronteira | Edição de Arte: Rafael Quick | Design: Andy Faria | Ilustrações: Luis Matuto


No final de uma tarde de inverno, guerreiros começaram a chegar ao grande salão de Lejre, uma localidade a 45 km de Copenhague (a capital da Dinamarca ainda não existia). Os homens ficaram encantados com o prédio: com 48,5 m por 11,5 m de largura e profundidade, o salão era a maior construção que alguns tinham visto. O teto ficava a 10 metros do chão, apoiado por paredes e vigas de madeira de florestas milenares. Mas estava muito frio, não mais que 5 ºC , para ficar contemplando o prédio do lado de fora.

Lá dentro, os guerreiros encontraram um ambiente animado. Uma grande fogueira aquecia os convidados numa das pontas do salão – todo aberto, sem paredes no meio. Escravas (algumas delas, de cabelo escuro, haviam sido trazidas de regiões tão distantes quanto o norte da África) serviam hidromel aos guerreiros. A bebida, um fermentado de água e mel, era sorvida em chifres ou jarras. Com teor alcoólico próximo aos 14%, criava o clima perfeito para um ambiente de fraternidade e muitas risadas entre os homens – não muito diferente do que ocorre em qualquer boteco a partir das 18h de sexta-feira.

A certa altura da noite, o dono do recinto tomava conta da cena. Um animal era trazido ao centro do salão, e o chefe local cortava a garganta do bicho (um imponente veado-vermelho, se fosse uma noite de sorte) e deixava seu sangue escorrer pelo chão, sem antes pingar um pouco de bebida sobre o caldo, tudo em homenagem aos deuses. A carcaça era levada ao fogo. Agora, restava relaxar e esperar o jantar.

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Banquetes como esse foram fundamentais para a formação dos vikings e ocorreram em inúmeros salões construídos no século 8 (e provavelmente nos séculos anteriores também). A casa de Lejre foi a maior das dezenas de construções encontradas por arqueólogos na Escandinávia. A bebida, a comida e o calor ficavam por conta do chefe local, que construía o salão justamente para receber e agradar os homens da localidade. Era uma mistura de bar, comitê político, quartel general e tribunal. Ali surgiram amizades, fortes laços de lealdade e planos ambiciosos.

Numa sociedade que não estava organizada em Estados ou reinos, toda a vida social e política girava em torno da generosidade do chefe do clã e do seu salão. Mas não era uma liderança impositiva: a vida medieval na Escandinávia, embora um tanto anárquica pela ausência de um governo central, era democrática. Todos podiam falar e participar da divisão de riquezas (exceto os escravos, é claro).

Enquanto a carne assava, os homens discutiam os planos para o verão. Mas não falavam de férias em praias ensolaradas: comentavam a construção de barcos, uma especialidade local, e a produção de armas e de produtos que podiam ser vendidos para os vizinhos. O verão era a época em que os guerreiros desbravavam o mar para fazer negócios com outros povos. Mas uma nova preocupação começou a tomar conta do salão. Com o avanço dos cristãos ao Norte, sobretudo com a ascensão do sanguinolento Império Franco, de Carlos Magno, os nórdicos começaram a discutir formas de se proteger contra uma eventual invasão.

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A carne era servida, e os guerreiros debatiam o assunto sob a liderança do dono do salão, sentado numa cadeira alta, uma espécie de trono de madeira esculpida com inúmeros entalhes caprichados (outro talento local). Ele era um chefe informal que havia ganho poder na base da sedução. Alguns se autodenominavam reis, mas os territórios não estavam consolidados e era muito provável que algumas regiões tivessem “reis” simultâneos separados por alguns quilômetros. Rei, conde ou chefe, seja como for, eles faziam questão de demonstrar seu poder com casacos de pele do Leste (hoje, Polônia, Lituânia e Letônia), espadas do Sul (atual Alemanha) e até roupas de seda chinesa que passavam de mão em mão até os mercados europeus.

De tempos em tempos, ofereciam banquetes, distribuíam presentes tão exóticos quanto um punhado de noz pecã (que não existia na Escandinávia e era vista como uma sobremesa requintada) e prometiam divisão de lucros nas expedições. Em caso de falta de comida, abriam seus silos e repartiam reservas. O chefe cuidava bem dos seus seguidores. Parte desse poder havia sido conquistado com violência, e talvez os guerreiros sentissem um pouco de medo também. A bebida era farta, a carne estava assada, os deuses satisfeitos, só faltava descobrir uma forma de se proteger dos cristãos.

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As festas ao redor do fogo no salão de Lejre só foram possíveis porque diversas tribos europeias começaram a se movimentar pelo continente em busca de novos territórios há 14 mil anos. Ao fim do último grande período glacial, o gelo derreteu na superfície e permitiu o deslocamento de humanos até o Norte, naquela região fria ao redor do Mar Báltico. Eles foram os primeiros a pisar na Península Escandinava, que compreende o que hoje chamamos de Noruega, Suécia e Dinamarca.

Origens

Muito tempo depois, por volta de 2000 a.C., os protoindo-europeus, originários do Mar Negro, também chegaram lá e introduziram uma nova língua e uma religião, que se espalhou rapidamente por toda a Europa. Na Escandinávia, esse idioma se transformou no nórdico antigo, a língua de raízes germânicas falada entre goles de hidromel em Lejre. A crença virou o paganismo nórdico, que justificou o sacrifício do animal assado naquela noite no salão – e que serviria de base para vários mitos medievais e de inspiração para J.R.R. Tolkien criar O Senhor dos Anéis. O mesmo grupo étnico que deu as bases culturais aos nórdicos também chegou ao Mediterrâneo – não é à toa que existam tantas semelhanças entre as mitologias escandinava e grega.

Em 1500 a.C., os primeiros traços desse modo de vida começaram a aparecer. Desenhos esculpidos em pedras dessa época mostram figuras gigantes que se sobressaem aos homens e deixam pegadas enormes por onde passam. São, possivelmente, as primeiras representações dos deuses nórdicos, entre eles Odin, o maioral do panteão escandinavo. Além disso, as ilustrações mostram homens dentro de canoas, carregando remos, lanças e machados. O modelo dessas embarcações, por sinal, é muito semelhante aos barcos construídos pelos vikings tempos depois.

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Com o tempo, a navegação contribuiu para o comércio local. Por volta de 600 a.C., os escandinavos eram os principais vendedores de âmbar do Báltico, a resina fossilizada que era considerada o grande tesouro europeu da Idade do Bronze. Eles se especializaram em coletar a pedra preciosa e transportá-la a territórios distantes, suprindo a demanda crescente vinda do Mediterrâneo. Era um período próspero para o povo do Norte, segundo os arqueólogos. Mas o que se seguiu foi muito sombrio.

Os celtas começaram a conquistar a Europa no século 5 a.C. e tomaram controle das rotas de comércio, inclusive de âmbar. Para piorar a situação, uma mudança climática trouxe uma onda de frio intensa, que durou centenas de anos, contribuindo para o isolamento geográfico. Nessa época, muitos escandinavos resolveram migrar para o Sul, em busca de melhores terras para plantar e viver. Aos poucos, foram se estabelecendo em pequenos grupos pela Europa. Lá, desenvolveram língua e cultura próprias, dando origem a novas tribos germânicas, como os saxões e góticos.

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Esses grupos foram responsáveis por fazer a ponte entre a Europa central, que se desenvolvia rapidamente, e a Escandinávia. Foi assim que o Norte incorporou o alfabeto rúnico, por volta do ano 150. Mas, fora algumas novidades culturais e troca de mercadorias, os escandinavos ficaram alheios às transformações motivadas pelo Império Romano, que esnobou a Escandinávia. Os nórdicos, porém, tinham muito interesse naquela terra distante. Quando os romanos caíram, a Europa virou terra de ninguém. Mais tarde, novos impérios, como o de Carlos Magno, avançaram sobre territórios desprotegidos e exércitos fracos, assustando os nórdicos, mas também deixando flancos desguarnecidos. Um prato cheio para quem quisesse se aproveitar.

No salão de Lejre e em outros casarões, é provável que um homem, já meio embriagado de hidromel, tenha dito no avançado da noite: vamos saqueá-los! Foi ovacionado. Ainda que fosse ideia de bêbado, o brado fez sentido no dia seguinte, com a ressaca cintilando na têmpora. Era a única forma rápida de somar recursos para se proteger e prosperar. Interessava a todos. Os fazendeiros, que no verão faziam papel de guerreiros, receberiam parte do roubo. Os chefes teriam ainda mais tesouros e poder, o que atraía mais guerreiros, aumentando sua influência. Era bom para as famílias que ficariam em terra firme: embora pudessem perder entes queridos na ponta da espada, ganhavam a esperança de ter uma vida tranquila, sem a ameaça de invasão cristã. E não seria novidade: a pirataria era comum numa época em que não havia polícia ou guarda costeira.

Os próprios nórdicos já desembarcavam em praias estrangeiras para fazer comércio ou… roubar. Havia até um verbo para isso no nórdico antigo: viking, que descrevia o ato de navegar com o propósito aventureiro de buscar lucros em outras terras. “Os homens comuns viram uma oportunidade para ter mais influência a partir do acúmulo de riqueza e honras militares. Eles eram muito bons em tirar proveito dessas oportunidades – eles atacavam os fracos”, afirma Alexandra Sanmark, professora de história viking na universidade de Highlands and Islands, na Escócia.

Mas, para fazer frente aos exércitos de francos, bizantinos e muçulmanos, era preciso se unir, somar fundos para produzir machados, espadas, barcos e, claro, garantir reservas para os anos em que o frio escandinavo impedia boas colheitas ou caçadas. Sem um governo central capaz de pagar por tudo isso, os nórdicos tomaram um novo caminho no final do século 8: se tornaram vikings. Uma ressaca que durou quatro séculos no resto da Europa.

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