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Homebrewing: por que tanta gente faz cerveja em casa?

A popularização da produção doméstica de cerveja baixou custos e trouxe praticidade para um hobby que já foi pesado, sujo e difícil de executar. Entenda por que milhares de pessoas estão trocando as lojas de importados por uma panela e um saco de malte.

Texto: Marcos Nogueira | Edição de Arte: Jorge Oliveira |
Design: Andy Faria | Imagens: Tomás Arthuzzi

Q

uando o hábito de beber cerveja completa alguns anos – quase três décadas, no meu caso –, converter esse histórico em litros ou reais é uma tarefa que assusta. Se eu evito fazer a conta, não é por preguiça: é para não cair em depressão ao contabilizar valores que poderiam ter virado patrimônio, mas viraram xixi. Paralelamente, torna-se bem tentadora a ideia de fazer a própria cerveja. Você gasta menos, aprende coisas novas e se dedica a um hobby com o bônus de um círculo social novinho em folha. Parece incrível. Dizem que é mesmo.

Comigo não funcionou. Cinco anos atrás, quando fiz um curso de produção caseira de cerveja, a coisa toda me causou um efeito paradoxal. Ao mesmo tempo em que admirei com interesse jornalístico todo o processo, a experiência cristalizou a certeza de que aquilo não era para mim.

Eu era um ótimo bebedor, nada além disso, e continuaria a comprar cerveja. Já me parecia justo pagar para não ter de lidar com a sujeira, as fórmulas, o trabalho literalmente braçal e toda a complicação envolvidos na preparação de uma simples cerveja.

Desde então conheci muitos homebrewers – esse pessoal da cerveja adora enfiar umas palavras em inglês na conversa. Todos apaixonados pelo que fazem. O negócio em torno da cerveja caseira cresceu exponencialmente. As evidências indicavam que eu deveria rever minha posição.

Eu revi. Terminei a apuração deste texto com vontade de brincar de cervejeiro. O que mudou: fazer cerveja ficou mais fácil ou fui eu que deixei de ser chato? Como a segunda hipótese está fora de cogitação, presumo que a primeira seja verdadeira. Hoje existe toda uma rede de apoio ao homebrewer: escolas, lojas que vendem equipamento, matérias-primas fracionadas e até vendedores que atuam como help desk dos clientes mais confusos.

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Eu nem bebia ainda quando, moleque insone, assisti a uma reportagem sobre cerveja caseira em um programa chamado Comando da Madrugada. Isso foi nos anos 1980. O cenário tinha glamour zero para mim: um tiozão barrigudo entre panelas amassadas, tubos e recipientes de plástico em um ambiente que definitivamente era a casa dele.

A cerveja que coroava o final da matéria era um líquido que me parecia a água barrenta de um rio – marrom e turvo. Impossível lembrar que estilo o sujeito produziu (possivelmente uma porter?), mas aquilo não me apetecia de modo algum. Por que ele não foi até o boteco e gastou uns trocados numa cerveja decentemente amarela e transparente?

Estávamos na pré-história da cerveja caseira. O hobby era tão inusitado que merecia vários minutos de um programa famoso por exibir curiosidades fortes demais para os horários familiares da TV – entre outras reportagens antológicas, o jornalista Goulart de Andrade, âncora do Comando, foi o primeiro a mostrar no Brasil o sushi erótico japonês. Se você não sabe o que é isso, pergunte ao tio Google.

Meu próximo contato com o homebrewing aconteceria no comecinho de 2011, quando eu já escrevia sobre cerveja para uma revista masculina. O mestre-cervejeiro Leonardo Botto, carioca doente pelo Tricolor das Laranjeiras, me convidou para assistir ao seu curso de um dia. Certamente sairia mais barato estudar em São Paulo – o convite não incluía passagem de avião nem hotel –, mas a oportunidade de aprender com Botto era irrecusável. Acumulador de prêmios, ele hoje tem sua própria marca de cerveja, a Beertoon. Experimente.

Numa manhã de mormaço no Rio, o táxi me levou ao lugar em que Botto ministrava as aulas: o quintal de uma casa grande nas proximidades da Barra. Os alunos foram chegando até completar a turma de 30 pessoas – 29 do sexo masculino. Nas 12 horas que se seguiram, entendi que não se aprende a fazer cerveja lendo matéria de revista ou assistindo a um vídeo com trilha sonora moderninha.

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Mas é meu dever profissional explicar o processo, ainda que em linhas bem gerais. Vou tentar. Se ainda ficar difícil, tem uns desenhos do esquema mais abaixo – um infográfico que mostra a produção industrial de cerveja (só muda a escala do negócio).

<strong>Hoje existe toda uma rede de apoio ao homebrewer: escolas, lojas que vendem equipamento, matérias-primas fracionadas e até vendedores que atuam como help desk dos clientes mais confusos.</strong>
Hoje existe toda uma rede de apoio ao homebrewer: escolas, lojas que vendem equipamento, matérias-primas fracionadas e até vendedores que atuam como help desk dos clientes mais confusos. (Tomás Arthuzzi/Superinteressante)

Para fazer cerveja, você precisa de malte. E precisa moer o malte na hora, senão ele oxida. O malte moído é aquecido com água em um caldeirão, numa etapa que os cervejeiros chamam de brassagem ou mostura. O ambiente quente e úmido ativa algumas enzimas presentes na cevada; essas substâncias, por sua vez, executam a tarefa de quebrar as moléculas de amido em outras menores, de açúcares digeríveis pelas leveduras. Assim obtém-se o mosto, um sopão doce de malte. Um cheiro gostoso toma conta do ar.

Em seguida filtra-se o mosto para descartar as cascas e outras partículas. O mosto filtrado é fervido e temperado com lúpulo para então ser resfriado e posto para fermentar. Aí o processo desacelera. Se até a fervura a coisa toda levou algumas horas, a fermentação e a maturação – fase em que a cerveja repousa e se estabiliza quimicamente – tomam vários dias, até um ou dois meses.

Meu desânimo começou quando Botto exibia o malte. Até existia um fulano que vendia malte em quantidades pequenas, razoáveis para um amador, mas o preço era extorsivo e a loja ficava nos cafundós do Paraná – ou outro lugar remoto, não me lembro. A regra, então, era bater na porta das maltarias e comprar uma saca de 25 quilos, destinada à indústria. Você precisaria ter um consórcio de amigos, todos homebrewers, para aproveitar bem tanta cevada.

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Aí vinha a moagem. Como moer no braço vários quilos de malte é inviável, ele adaptou ao moedor manual um motor de limpador de para-brisa de carro. Isso mesmo, Professor Pardal! Eu, que não sei instalar uma tomada em casa, senti um profundo desalento. No decorrer da aula, várias outras traquitanas e gambiarras foram apresentadas como alternativa a quem não estivesse a fim de vender a casa para comprar equipamento profissional.

Na brassagem, utilizou-se uma panela grande o bastante para cozinhar o rancho do Quinto Batalhão de Infantaria. Dentro dela, o mosto espesso que requer movimento constante por mais de uma hora. Haja braço. Entre uma etapa e outra, lavar, limpar, sanitizar.

No final da aula, quando a noite já caía junto com as minhas pálpebras, veio o arcabouço teórico absolutamente necessário, mas que àquela altura ricocheteava na minha caixa craniana direto para a Lagoa da Tijuca. Incomodava-me a ideia de atrelar a cerveja às aulas de química do ensino médio. Deixássemos essa arte de fazer cerveja para gênios como o Botto.

Levei muitos anos para entender que ninguém aprende a fazer cerveja em uma aula. Durante esse tempo, estudei para ser sommelier de cerveja, bebi coisas bem interessantes, troquei ideias com gente que manja muito e li um bocado. Tomei várias cervejas caseiras, metade delas boas. Mas nunca retomei o estudo da produção doméstica. Era um bloqueio. Só que agora eu precisava escrever sobre isso.

Recorri ao amigo Douglas Giacomini, ex-colega do curso de sommelier, homebrewer e cientista louco da computação. Gente finíssima. Entre um copo de american pale ale e outro de rauchbier, ele me fez compreender por que tanta gente está aderindo a esse passatempo – segundo seus cálculos, baseados no mailing de um vendedor de insumos, há pelo menos 9 mil amadores em atividade no País. As Acervas, associações de cervejeiros caseiros artesanais, atuam em 16 Estados de todas as regiões.

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“É mais fácil do que cozinhar”, disse Douglas, que costuma fazer duas brassagens por mês na casa onde mora em Mirandópolis, na zona sul da capital paulista, com a mulher, a filha e dois cachorros. Ele me contou que dá para produzir cerveja em uma espagueteira. Falou ainda que muitas mulheres estão se dedicando à atividade. Uma mudança substancial.
Uma dessas mulheres cervejeiras é a jornalista Júlia Reis, da escola cervejaria Sinnatrah, na zona oeste de São Paulo, e membro da Maltemoiselles, confraria exclusivamente feminina.

Expertos no assunto, ela e os outros três sócios dão aulas para cerca de 150 pessoas todo mês – 25% mulheres. A lojinha anexa vende saquinhos de malte a partir de 250 gramas, mais toda sorte de insumos e equipamentos na medida para o sujeito que só quer se divertir. Adeus, vaquinha para comprar saca de 25 quilos! Adeus, engenhoca com motor de limpador de para-brisa!

Eu já estava quase totalmente convencido de que ser homebrewer é um bom negócio. Faltava apenas conferir se fazer cerveja em casa economiza grana, bufunfa, carvão, pila, arame. “As pessoas entram nessa mais pela diversão”, respondeu Júlia a este sovina. “Mas vale muito a pena. Você gasta mais ou menos R$ 5 por litro, fora o equipamento – que começa nos R$ 500.” Considerando que qualquer IPAzinha de 300 ml custa 20 mangos, vou começar a fazer cerveja em casa assim que mandar esta revista para a gráfica.

Uma transformação quase mágica

Fazer cerveja é como cozinhar, com a diferença de que um conhecimento um pouco mais avançado de química e de física ajuda bastante. Confira a seguir as etapas que transformam um grãozinho vulgar na bebida favorita de bilhões de pessoas ao redor do mundo.

<strong>MOAGEM – O malte precisa ser moído para que os açúcares do seu interior fiquem disponíveis mais facilmente.</strong>
MOAGEM – O malte precisa ser moído para que os açúcares do seu interior fiquem disponíveis mais facilmente. (Miwa/Superinteressante)
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<strong>BRASSAGEM OU MOSTURA – Aqui começa a chamada fase quente da fabricação. O malte é aquecido em água para ativar as enzimas que quebram o amido em açúcares – que podem ser convertidos em álcool pelas leveduras. O caldo, denominado mosto, não pode ultrapassar os 78˚C: acima desta temperatura, as enzimas se desnaturam.</strong>
BRASSAGEM OU MOSTURA – Aqui começa a chamada fase quente da fabricação. O malte é aquecido em água para ativar as enzimas que quebram o amido em açúcares – que podem ser convertidos em álcool pelas leveduras. O caldo, denominado mosto, não pode ultrapassar os 78˚C: acima desta temperatura, as enzimas se desnaturam. (Miwa/Superinteressante)
<strong>CLARIFICAÇÃO DO MOSTO – Consiste em filtrar grosseiramente o mosto para eliminar as partículas sólidas maiores. Essa filtragem normalmente é feita com as próprias cascas de malte que se depositam em um fundo falso do tanque.</strong>
CLARIFICAÇÃO DO MOSTO – Consiste em filtrar grosseiramente o mosto para eliminar as partículas sólidas maiores. Essa filtragem normalmente é feita com as próprias cascas de malte que se depositam em um fundo falso do tanque. (Miwa/Superinteressante)
<strong>FERVURA – A alta temperatura mata micro-organismos indesejáveis e dá ao líquido uma maior estabilidade coloidal – evita a aglutinação de substâncias dissolvidas na água, o que provocaria turbidez. É nesta etapa que os cervejeiros adicionam lúpulo à receita.</strong>
FERVURA – A alta temperatura mata micro-organismos indesejáveis e dá ao líquido uma maior estabilidade coloidal – evita a aglutinação de substâncias dissolvidas na água, o que provocaria turbidez. É nesta etapa que os cervejeiros adicionam lúpulo à receita. (Miwa/Superinteressante)
<strong>RESFRIAMENTO – O mosto fervido passa por uma serpentina para que resfrie rapidamente – o esfriamento lento aumenta o risco de contaminação microbiológica. A partir desta etapa começa a fase fria do processo.</strong>
RESFRIAMENTO – O mosto fervido passa por uma serpentina para que resfrie rapidamente – o esfriamento lento aumenta o risco de contaminação microbiológica. A partir desta etapa começa a fase fria do processo. (Miwa/Superinteressante)
<strong>FERMENTAÇÃO – Com o mosto a cerca de 25˚ C, inoculam-se as leveduras. O trabalho desses fungos é multiplicar-se e comer o açúcar do mosto. Como subprodutos, a fermentação gera dois componentes essenciais da cerveja: álcool e gás carbônico.</strong>
FERMENTAÇÃO – Com o mosto a cerca de 25˚ C, inoculam-se as leveduras. O trabalho desses fungos é multiplicar-se e comer o açúcar do mosto. Como subprodutos, a fermentação gera dois componentes essenciais da cerveja: álcool e gás carbônico. (Miwa/Superinteressante)
<strong>MATURAÇÃO – Etapa em que a cerveja deve permanecer em ambiente livre de luz e em baixa temperatura – uma geladeira serve – para estabilizar-se quimicamente. Nas cervejarias, a maturação ocorre em tanques; cervejeiros caseiros deixam o líquido maturar em galões ou já engarrafados. Neste momento pode ser feito o dry-hopping, lupulagem a frio que extrai substâncias altamente aromáticas.</strong>
MATURAÇÃO – Etapa em que a cerveja deve permanecer em ambiente livre de luz e em baixa temperatura – uma geladeira serve – para estabilizar-se quimicamente. Nas cervejarias, a maturação ocorre em tanques; cervejeiros caseiros deixam o líquido maturar em galões ou já engarrafados. Neste momento pode ser feito o dry-hopping, lupulagem a frio que extrai substâncias altamente aromáticas. (Miwa/Superinteressante)
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