A concepção freudiana da sexualidade parte sempre de um ponto de vista masculino – e machista mesmo. Para Freud, a mulher tem uma inferioridade anatômica que a condena à submissão e à passividade. Ou à neurose.
Texto: Alexandre Carvalho | Edição de arte: Estúdio Nono | Design: Andy Faria | Imagens: Getty Images
“Quem quer uma espingarda quando se pode ter uma pistola automática?” Apesar da menção a armas de fogo, a questão, feita por Natalie Angier, vencedora do Prêmio Pulitzer e jornalista de ciência do The New York Times, não tem a ver com troca de tiros – e sim com as teorias freudianas sobre a sexualidade feminina. A pergunta, que está em seu livro Woman: An Intimate Geography (“Mulher: Uma Geografia Íntima” – sem edição brasileira), explica, nas palavras da escritora, por que “as mulheres nunca compraram a ideia de Freud de inveja do pênis”.
A revolta tem razão de ser: a visão de Sigmund Freud sobre o desenvolvimento sexual da mulher é a mais contestada de suas ideias, tendo despertado animosidades em feministas desde que foi publicada. E não só com elas. Dentro do próprio círculo da psicanálise, naquelas primeiras décadas do século 20, já havia quem – inclusive homens – achasse estapafúrdia a noção de que toda menina deseja para si uma mangueirinha acoplada igual à dos meninos – e que sua personalidade futura será decidida pela forma como aceita essa “desvantagem”.
A psicanalista alemã Karen Horney (1885-1952), fundadora da escola neofreudiana – que alterna obediência e discordâncias com o pai da psicanálise –, foi uma das vozes que imediatamente se ergueram contra essa teoria de o feminino nascer da constatação de ausência do órgão masculino. “Como em todas as ciências, a psicologia das mulheres tem sido até agora considerada apenas do ponto de vista dos homens”, ela disse. E foi além, sugerindo que o macho é que teria uma “inveja do útero”: eles fariam de tudo para ser bem-sucedidos na vida apenas como forma de compensar a incapacidade de gerar uma criança. “Quando alguém começa a analisar os homens, como eu fiz, após uma vasta experiência de análise de mulheres, tem a impressão surpreendente da intensidade dessa inveja da gravidez, do parto e da maternidade.”
Além da inveja do pênis, a teoria freudiana sobre a sexualidade feminina tem outros conceitos nada elogiosos para elas: a mulher como uma criatura castrada sexualmente; a vocação feminina para o masoquismo; o superego subdesenvolvido (que transformaria a mulher em um perigo para a civilização); a submissão e o matrimônio como destino da “mulher normal”… em resumo, a inferioridade em relação ao homem – inerente e anatômica. Mas, antes de colocarmos Freud no caldeirão do inferno dos porcos chauvinistas, é bom lembrar que estamos falando de um pioneiro do interesse pelo que a mulher tem a dizer: a psicanálise nasceu de sua iniciativa de tratar mulheres neuróticas – não como loucas desvairadas, e sim como seres humanos com questões profundas, que precisavam ser externadas.
Mesmo sua polêmica teoria sobre a sexualidade feminina era um avanço: até então, acreditava-se que a mulher nem era capaz de ter desejo sexual. “A riqueza e a singularidade da psicanálise estão no fato de ela ter se constituído justamente na tensão discursiva – presente na obra freudiana – entre dar voz a esse outro, singular, e reafirmar o masculino como universal na cultura”, aponta a psicanalista Regina Alice Neri no livro Feminilidades. Eis aí o paradoxo de Freud.
Um homem do seu tempo
O problema é que ele foi de vanguarda até certo ponto – em diversos aspectos, seu pensamento alinhava-se ao seu tempo e ao lugar em que vivia. “Na sociedade vienense, as mulheres estavam sujeitas à interdição e intervenção masculinas. Todos nelas mandavam: pais e irmãos”, explica José Artur Molina, em O que Freud Dizia sobre as Mulheres. “Os casamentos de mulheres com homens mais velhos e ricos eram comuns, numa clara afirmativa de que o que elas precisavam era de bem-estar financeiro (nada mais do que uma forma de prostituição instituída pela hipócrita Viena).”
Em seu livro O Segundo Sexo, a francesa Simone de Beauvoir (1908-1986) dedica um capítulo ao “ponto de vista psicanalítico” a respeito das mulheres, e fala da concepção freudiana estar repleta de equívocos provenientes desse espaço-tempo: “A psicanálise só pode estabelecer suas verdades no contexto histórico”, ela diz. Para Beauvoir, se o pensamento sobre a sexualidade partisse de uma perspectiva feminina, os símbolos freudianos poderiam ser outros. “[A mulher] inventaria equivalentes para o falo; a boneca, encarnando a promessa do bebê que virá no futuro, pode se tornar um bem muito mais precioso que o pênis. Há sociedades matriarcais nas quais as mulheres detêm a posse dessas máscaras nas quais o grupo encontra alienação; nessas sociedades, o pênis perde muito de sua glória.”
Não era o caso de Viena. As letras das operetas que faziam sucesso na cidade, na época de Freud, recorriam ao estereótipo mais negativo para retratar suas personagens femininas: eram mulheres frívolas, infiéis, maliciosas e que caíam de amores por qualquer um que lhes fizesse um elogio. Freud, ainda que fosse rodeado de amigas de quem admirava a inteligência, e que citasse ideias delas em diversos ensaios sobre a psicanálise, em geral não pensava muito diferente dos vizinhos mais machistas. Ainda mais se o assunto fosse o papel das moças na sociedade.
O pai da psicanálise era contra a mulher sair para trabalhar e considerava o fim do mundo que uma ou outra ganhasse mais do que o marido. A única “profissão” possível seria o acúmulo de funções de gerente do lar, fiscal da limpeza domiciliar e gestora da educação das crianças: resumindo bem, dona de casa. “Espero que estejamos de acordo”, escreveu um dia a sua querida esposa, Martha Bernays, “em que administrar uma casa e educar os filhos requer da pessoa tempo integral, e praticamente elimina qualquer profissão”.
Esse lado conservador de Freud, embora não o tenha feito recuar diante da própria ousadia sobre a sexualidade infantil, veio à tona quando ele tirou conclusões a respeito do desenvolvimento sexual da mulher. Principalmente pelo seguinte: toda a sua teoria a esse respeito parte de uma perspectiva falocêntrica – se essa teoria fosse um sistema solar, o pênis estaria no lugar do Sol. E isso, em qualquer interpretação que se tenha, significa exatamente o que Karen Horney disse: para Freud, o homem vem primeiro, e é a base de qualquer pensamento adaptado para a mulher. A sexualidade feminina surge aos olhos de Freud sempre através de um filtro masculino. A tal ponto que, para o austríaco, meninas são meninos com defeito de fábrica.
A tal inveja
Para Freud, até que a puberdade chegue com seus pelos e peitos, vigora entre as crianças um monismo sexual – a hipótese de que meninos e meninas só admitem um único órgão para práticas sexuais, que é o pênis. O que a menina reconhece em si, até então, é seu clitóris – um tipo de pênis subdesenvolvido. A compreensão de que tem uma vagina – estrutura feminina por excelência – só virá na fase genital, já a partir dos 11 anos.
Na infância, portanto, não haveria diferença entre masculino e feminino. A criançada toda é menino – com ou sem pênis – até prova em contrário. E assim as criancinhas vão levando a vida sem maiores conflitos até o ponto em que essa diferença anatômica é notada. Entre os 3 e os 5 anos de idade, na fase fálica, surge a primeira curiosidade dos pequenos em diferenciar mocinhos e mocinhas. E é aí que as garotas terão uma descoberta devastadora: a de que são “garotos de segunda classe”, que vieram ao mundo com algo faltando.
Pois é nesse período que elas notam, segundo Freud, que seus irmãos e amiguinhos do sexo masculino têm pênis. No mesmo lugar, em seu próprio corpo, elas só enxergam um grande vazio – ou, na melhor das hipóteses, um órgão homólogo em tamanho miniatura, e ainda por cima escondido, que é o clitóris. O mundo foi injusto com elas. Então, assim como as crianças sentem desejo de possuir os brinquedos das outras, as meninas também passam a querer aquilo que não têm nas partes baixas, desenvolvendo o sentimento famoso que Freud chamou de inveja do pênis.
“Essa falta lhe cai como uma injustiça e como motivo para se sentir inferior”, explica Freud, referindo-se à menina. “Por algum tempo, acredita ainda que terá esse órgão tão valioso, ou seja, que seu pênis irá crescer.” Só que não, ele não cresce. O que fica para a garota é uma frustração enorme e o tal de complexo de castração, que acaba sendo fundamental para que a menina comece a desenvolver sentimentos incestuosos pelo pai. Afinal, ele tem aquilo que ela tanto inveja.
Nesse período do desenvolvimento sexual da criança, a mãe – que no início é o objeto de amor de todo bebê – perde pontos no conceito da menina por dois motivos. O primeiro, segundo Freud, é que a garotinha culpa a sua genitora pela falta de pênis no seu corpo – a mamãe não teria caprichado na sua fabricação como fez com o irmãozinho. O segundo é que a menina coloca na cabeça que pode amenizar sua inveja com um pênis simbólico: um filho. E não é com a mamãe, outra castrada, que ela vai conseguir isso.
Então esse conjunto de motivos associado a uma supervalorização do pênis leva a garota a direcionar seu afeto agora ao papai, com quem acha que pode casar e gerar um bebê. Melhor ainda se esse bebê for um menino. (Na menina, então, essa ansiedade da castração precede o complexo de Édipo – o inverso do que acontece com os meninos.) Possuidora de um bebê-pênis, ela já não precisaria mais invejar seus pares machos.
Pois é. Bebês-pênis, meninas que se acham meninos mutilados, crianças incestuosas… Até aí, Sigmund Freud simplesmente apresenta uma teoria que você pode achar completamente alucinada. Mas o que acabou revoltando feministas e não feministas do mundo todo foi o que ele apontou como consequências dessa inveja do pênis no desenvolvimento da sexualidade da mulher.
Mulher de malandro
Na elaboração de suas teorias a respeito das perversões, Freud contrapôs sadismo e masoquismo, associando a primeira a uma forma ativa de unir dor e prazer, impondo a dor a outra pessoa, e a segunda a uma forma passiva, sofrendo o diabo e achando bom. Adivinhe qual dessas o pai da psicanálise liga às mulheres? Se você pensou no bizarro bordão misógino “mulher gosta de apanhar”, não está muito longe da avaliação freudiana.
E o homem, segundo ele, tem maior inclinação a gostar de bater. “A sexualidade da maioria dos homens mostra um elemento de agressividade, de inclinação a subjugar, cuja significação biológica estaria na necessidade de superar a resistência do objeto sexual por algum outro meio além de fazendo-lhe a corte”, afirma em seus Três Ensaios sobre a Teoria da Sexualidade. Em contrapartida, a perversão masoquista estaria associada a uma fixação da atitude sexual passiva que tem origens lá na infância, no complexo de castração que irá definir a futura mulher. Ou seja, enquanto a natureza ativa do sadismo é a virilidade, a passividade do masoquismo é relacionada ao feminino.
Não que homens não possam ser masoquistas. Mas, para Freud, a necessidade de punição e humilhação vem de um estágio infantil de situação caracteristicamente delas, que significa ser castrado, penetrado ou dar à luz uma criança. Tudo que dói.
Freud ainda associa a mulher a um sentimento de culpa provocado por um masoquismo moral, que é uma necessidade inconsciente de ser punida pela mão do pai, tomar umas boas palmadas, como se fosse uma criança travessa. “Sabemos agora que o desejo, tão frequente em fantasias, de ser espancado pelo pai se situa muito próximo do outro desejo, o de ter uma relação sexual passiva (feminina) com ele”, diz Sigmund no artigo O Problema Econômico do Masoquismo.