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Medicina integrativa – o caminho do meio

Depois de décadas se ignorando mutuamente, a medicina ocidental e a oriental estão cada vez mais integradas. Bom para os pacientes, que podem se beneficiar do que cada uma tem de melhor a oferecer.

Texto: Tarso Araujo | Edição de Arte: Verúcio Ferraz | Design: Andy Faria | Imagens: Tomás Arthuzzi e Getty Images

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uiz Guilherme Correa era médico há 27 anos quando começou a ter um problema crônico de hipertensão, importante fator de risco para doenças cardiovasculares. “Tentei tratar de várias maneiras, sem resultados”, diz. Decidiu, então, recorrer à ayurveda, sistema medicinal criado na Índia há pelo menos 5 mil anos. “Fiquei surpreso. Resolvi a situação em três meses, com algumas plantas medicinais e uma dieta.” A experiência não mudou apenas sua pressão arterial, mas toda sua vida profissional.

Ele foi para a Índia estudar o assunto e criou uma clínica especializada em São Paulo. Divide seu tempo entre as aulas que dá na Faculdade de Medicina da USP, bastião da medicina convencional, e consultas na clínica. Correa representa as duas faces de uma moeda que, aos poucos, pode transformar a medicina. De um lado, pacientes insatisfeitos com as limitações dos tratamentos convencionais. De outro, o interesse cada vez maior dos profissionais de saúde em expandir seus horizontes de tratamento.

O resultado dessa busca de pacientes e médicos por opções toma forma no que hoje se chama medicina integrativa ou complementar. Ela soma o conhecimento médico convencional no Ocidente a práticas criadas há milhares de anos no Oriente, em geral, e que ainda hoje os leigos chamam de “medicina alternativa”.

O conceito de integração se refere tanto a essa conciliação de antigos opostos como a um conceito comum entre as abordagens tradicionais: “Elas tratam o ser humano como um todo, e não em suas partes”, diz Correa. Ao contrário dos médicos ocidentais, que se especializam em corações ou esqueletos ou cérebros, os orientais nunca perdem de vista que corpo e mente são uma coisa só.

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“Esse processo começou há muitas décadas, com estudos sobre a interação entre corpo e mente, mas ninguém dava importância para isso”, diz Plínio Cutait, mestre reiki e coordenador do Programa de Cuidados Integrativos do hospital Sírio-Libanês, em São Paulo. Os dois extremos começaram a se aproximar mais nos anos 80, com a criação de núcleos dedicados ao assunto em universidades e hospitais dos EUA e da Inglaterra, e ganhou força de vez com a criação do Consórcio de Centros de Saúde Acadêmicos de Medicina Integrativa, em 1999.

O trabalho de Cutait num hospital que é referência no tratamento de câncer no Brasil é um sintoma de que essa tendência também chegou por aqui. E ela não está se popularizando apenas em hospitais privados. O governo federal lançou uma Política Nacional de Práticas Integrativas e Complementares, para incentivar o uso dessas abordagens no País. “O objetivo dela é deixar claro para os profissionais de saúde que essas práticas são importantes”, diz Heider Aurélio, diretor de Atenção Básica do Ministério da Saúde.

O orçamento da pasta para essa área ainda é pequeno, mas cresceu nos últimos anos. O número de estabelecimentos no Brasil que oferecem serviços como homeopatia, acupuntura, meditação e fitoterapia pulou de 517 para 3.972. Mas essa expansão não é livre de resistências.

“Essas mudanças causam desconforto. Os médicos percebem que existem outros jeitos de fazer o que eles aprenderam na escola”, diz o sociólogo da Universidade de Campinas Nelson Barros, que pesquisa a introdução de práticas integrativas em centros de saúde brasileiros. Num de seus estudos, os alunos de medicina da Unicamp foram questionados se a homeopatia deveria ser ensinada no curso.

O resultado foi positivo: 52% deles disseram que sim. Numa segunda fase, os alunos que responderam que não foram questionados sobre seus porquês. Eles alegaram que ela não tem evidências de eficácia – uma premissa falsa. “O ponto de vista deles não tinha fundamento. Era um preconceito”, diz Barros.

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<strong>As abordagens integrativas valorizam a relação médico-paciente, diminuem o consumo de remédios e cuidam do bem-estar geral do paciente, além da doença.</strong>
As abordagens integrativas valorizam a relação médico-paciente, diminuem o consumo de remédios e cuidam do bem-estar geral do paciente, além da doença. (Trevor Williams/Getty Images)

Essa resistência tem raízes culturais e de mercado. As práticas que hoje são chamadas de integrativas tiveram um grande boom de popularidade a partir da década de 1960, quando eram “alternativas”. O problema é que, nessa época, esse termo era associado à contracultura e ao grupo que melhor representava essa revolução de comportamento: os hippies. “A adoção gradual dos termos integrativo e complementar foi uma tentativa de dissociar essas práticas desse contexto e introduzi-las no ambiente formal da medicina”, diz Barros.

O jogo de palavras também era importante para diminuir, entre os médicos de roupa branca, a sensação de que essas práticas iriam competir com as deles. “Era muita resistência”, diz o psiquiatra e instrutor de meditação Paulo Bloise, que fundou na Unifesp o núcleo de estudos integrativos Anthropos. “A palavra alternativo significa um ou. Imagina-se que a pessoa vai tratar diabete com acupuntura e deixar a medicina convencional pra lá”, diz. “Mas a ideia é associar os paradigmas, não trocar um pelo outro. Usar acupuntura e medicina ocidental.”

A mesma moeda

Mas também existem bons motivos para promover esse casamento entre Ocidente e Oriente na medicina. E os maiores beneficiados são os pacientes. “Um benefício importante das práticas integrativas é enfatizar a relação médico-paciente, que estava e ainda está muito de lado na medicina convencional”, diz Bloise. Outra vantagem é que essas abordagens diminuem a quantidade de medicamentos e o custo do tratamento, além de cuidarem de outros aspectos do bem-estar do paciente que não estão diretamente ligados ao órgão doente.

Quem faz acupuntura para tratar uma dor crônica ou reduzir as náuseas de uma quimioterapia, por exemplo, leva no “pacote” menos estresse, menos ansiedade. E isso faz diferença para a saúde geral. “A pessoa com câncer não tem só um tumor. Ela está abalada emocionalmente, preocupada com família, dinheiro… Temos que lidar com essas dimensões humanas, também. Às vezes, o paciente volta para casa tenso com tudo isso, e é aí que nasce outro câncer”, diz Cutait, que lembra de outro motivo importante para a expansão da medicina integrativa: “Já existe muita pesquisa para apaziguar o coração dos médicos.”

No PubMed, importante base de artigos científicos da área médica, o número de estudos publicados sobre medicina integrativa, de modo geral, aumenta exponencialmente. Na década de 2000, foram publicados quase 4 mil. Só nos últimos três anos, saíram outros 3 mil. Nem todos confirmam a eficácia dessas práticas testadas, mas é claro que o interesse crescente é sustentado por muitos resultados positivos.

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Algumas abordagens, como a acupuntura, a meditação e a homeopatia, já têm utilidade comprovada no tratamento de uma grande variedade de doenças A medicina da energia vital Escolas orientais estão fundamentadas numa visão que integra mente, corpo e espírito, e na existência  de uma energia que sustenta a vida.

A maioria das práticas que influenciam a medicina integrativa hoje foi desenvolvida no Oriente há milhares de anos, como a tradicional medicina chinesa, a medicina ayurveda e a tibetana. Essas escolas têm em comum a ideia de cuidar do ser humano como um todo – por isso são chamadas de “sistemas integrais”. Corpo, mente e espírito são indissociáveis – e, na verdade, os próprios humanos são parte de um todo maior, o Universo. “Para nós, a mente é o intelecto. Para os chineses, é o mundo inteiro”, diz Plínio Cutait, do Sírio-Libanês.

Todas são fundadas sobre a ideia de que a vida é sustentada por uma forma de energia não visível chamada chi (na China), ki (no Japão) e prana (na Índia e no Tibete). Segundo essa filosofia, nossa saúde é sustentada pelo fluxo equilibrado dessa energia pelo corpo – essa ideia também era compartilhada pela filosofia de Hipócrates, que regeu a clínica ocidental até meados do século 19. Na visão da medicina chinesa tradicional, por exemplo, esse equilíbrio é mantido por duas forças opostas e inseparáveis, o yin e o yang.

A doença, por sua vez, é resultado de um desequilíbrio entre essas forças e bloqueios no fluxo da energia vital que flui pelos chamados meridianos ou trajetos. Na tradição tibetana (e budista), esses canais de energia são os nadiis e os chacras são os pontos de convergência do prana. Apesar de os nomes mudarem, os sistemas orientais cuidam da saúde intervindo nesses caminhos de energia, para manter ou restaurar o equilíbrio dessa força vital – seja com as mãos, agulhas ou ervas.

Outro ponto em comum entre todas é a ideia de que nossa natureza tende ao equilíbrio. Por isso, a ênfase dessas escolas de medicina está na manutenção desse estado – uma abordagem essencialmente preventiva. Luiz Guilherme Correa, especialista em ayurveda e professor da USP, resume: “A medicina tradicional foca no tratamento das doenças, e como algo localizado. Na tradicional, o foco está na prevenção. E, quando a doença surge, ela não é no fígado, por exemplo, mas no organismo. Então é preciso tratá-lo como um todo.” – por mais que a ciência ainda não tenha como explicar direito o mecanismo de ação dessas técnicas.

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A lógica de funcionamento da maioria dessas práticas integrativas está ligada à “energia vital”, conceito que não tem nenhuma correspondência no paradigma técnico-científico moderno. Nenhum equipamento de laboratório consegue identificar e muito menos medir o fluxo de energia que os chineses chamam de chi, os japoneses de ki e os indianos de prana.

<strong>A lógica de funcionamento da maioria dessas práticas integrativas está ligada à “energia vital”.</strong>
A lógica de funcionamento da maioria dessas práticas integrativas está ligada à “energia vital”. (Alexandre Affonso/Superinteressante)

Uma terceira explicação para a expansão desse processo de integração é o dinheiro. Para os hospitais particulares, é uma nova forma de receita – os pacientes já procuram esses tratamentos fora, por que não oferecê-los também, se a maioria das práticas não tem contraindicações?

Para a rede pública, é uma oportunidade de economizar. “Quando um idoso cai e quebra um fêmur, passa por uma internação longa e cara. É possível prevenir muitos desses acidentes com tai chi chuan, que exercita o equilíbrio e a consciência corporal”, diz Heider Aurélio, do Ministério da Saúde. “E isso pode ser praticado por um grupo de idosos com apenas um técnico de enfermagem, por exemplo. O custo-benefício é enorme.” Até os planos estão aderindo à tendência.

“Eles atraem clientes com serviços que têm uma avaliação ótima entre quem usa e têm menos gastos com dores crônicas e cirurgias.” De fato, diversos estudos mostram que praticantes de ioga, meditação e acupuntura, por exemplo, têm muito menos despesas com saúde. Mas é claro que nem todo mundo sai ganhando – a indústria farmacêutica, por exemplo – e isso é um dos fatores que explicam por que as mudanças são graduais.

“É um processo lento por causa de todos os interesses envolvidos”, diz Correa. A falta de acordos sobre a educação e atuação dessas práticas também complica. Para alguém ser médico, deve atender requisitos bem definidos por leis, associações e conselhos de classe. Mas quem define isso no caso de um instrutor de meditação, por exemplo? “As pessoas que trouxeram essas técnicas para o Brasil acham que a formação de um instrutor pode levar uma década, mas existem cursos que fazem isso em dois anos. Normatizar essas coisas pode levar muito tempo”, diz Paulo Bloise.

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Além disso, essa mistura entre Ocidente e Oriente, ciência moderna e tradições milenares, envolve uma grande mudança de paradigmas, adaptações e concessões de ambos os lados. De médicos que se dispõem a conhecer novas alternativas, como fez Correa em sua trajetória rumo à ayurveda, e de “alternativos” que topem fazer algumas adaptações, como já acontece em certos casos.

Algumas faculdades aplicam e ensinam uma “acupuntura médica” que nem toca no assunto “energia vital”, mas espeta o paciente exatamente nos mesmos lugares que chineses de 2 mil anos atrás. “A medicina quer a agulha, mas não a tradição. A acupuntura vira quase um procedimento alopático”, diz Plínio Cutait, do Sírio. “O importante é que estamos reconhecendo o potencial dessas práticas milenares. E é preciso respeitar coisas que têm essa história.”

A medicina da energia vital

Escolas orientais estão fundamentadas numa visão que integra mente, corpo e espírito, e na existência de uma energia que sustenta a vida.

A maioria das práticas que influenciam a medicina integrativa hoje foi desenvolvida no Oriente há milhares de anos, como a tradicional medicina chinesa, a medicina ayurveda e a tibetana. Essas escolas têm em comum a ideia de cuidar do ser humano como um todo – por isso são chamadas de “sistemas integrais”. Corpo, mente e espírito são indissociáveis – e, na verdade, os próprios humanos são parte de um todo maior, o Universo. “Para nós, a mente é o intelecto. Para os chineses, é o mundo inteiro”, diz Plínio Cutait, do Sírio-Libanês.

Todas são fundadas sobre a ideia de que a vida é sustentada por uma forma de energia não visível chamada chi (na China), ki (no Japão) e prana (na Índia e no Tibete). Segundo essa filosofia, nossa saúde é sustentada pelo fluxo equilibrado dessa energia pelo corpo – essa ideia também era compartilhada pela filosofia de Hipócrates, que regeu a clínica ocidental até meados do século 19. Na visão da medicina chinesa tradicional, por exemplo, esse equilíbrio é mantido por duas forças opostas e inseparáveis, o yin e o yang.

A doença, por sua vez, é resultado de um desequilíbrio entre essas forças e bloqueios no fluxo da energia vital que flui pelos chamados meridianos ou trajetos. Na tradição tibetana (e budista), esses canais de energia são os nadiis e os chacras são os pontos de convergência do prana. Apesar de os nomes mudarem, os sistemas orientais cuidam da saúde intervindo nesses caminhos de energia, para manter ou restaurar o equilíbrio dessa força vital – seja com as mãos, agulhas ou ervas.

Outro ponto em comum entre todas é a ideia de que nossa natureza tende ao equilíbrio. Por isso, a ênfase dessas escolas de medicina está na manutenção desse estado – uma abordagem essencialmente preventiva. Luiz Guilherme Correa, especialista em ayurveda e professor da USP, resume: “A medicina tradicional foca no tratamento das doenças, e como algo localizado. Na tradicional, o foco está na prevenção. E, quando a doença surge, ela não é no fígado, por exemplo, mas no organismo. Então é preciso tratá-lo como um todo.”

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