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Nagorno-Karabakh: 30 anos de guerra no Cáucaso

Em 1921, os soviéticos deram o controle do enclave armênio de Nagorno-Karabakh ao Azerbaijão. Era a semente de um conflito que eclodiu em 1988 e voltou à tona em 2020. Entenda a história e os interesses por trás dessa disputa.

Texto: Sarah Kern | Design: Juliana Alencar | Ilustrações: Amanda Miranda | Edição: Bruno Vaiano

Atualização: em 10 de novembro, Azerbaijão, Armênia e Rússia assinaram um acordo de paz que encerrou o conflito iniciado em setembro – sob a condição de que os armênios se retirem do enclave. Esta edição da SUPER foi fechada antes do cessar-fogo.

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ois países, uma nação. É assim que o Azerbaijão, um pequeno país de maioria islâmica localizado às margens do Mar Cáspio, define sua intimidade diplomática com a Turquia. Eles são muito próximos religiosa e culturalmente – os idiomas turco e azerbaijano, inclusive, compartilham uma raiz comum. 

A pedra no caminho dessa amizade é a Armênia, lar da mais antiga doutrina cristã ainda na ativa: a Igreja Ortodoxa armênia foi fundada no ano 301, décadas antes da conversão oficial do Império Romano. Trata-se de um estado-nação do tamanho de Alagoas que bloqueia completamente a ligação por terra entre a Turquia e o Azerbaijão – e tem um longo histórico de inimizade com ambos. 

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Os armênios são um povo resiliente em sua identidade cultural, mas passaram pouco tempo no comando de seu próprio território. A Transcaucásia – região montanhosa que compreende a Geórgia, a Armênia e o Azerbaijão – já foi invadida e controlada por quase todos os grandes impérios da história: persas, romanos, mongóis, otomanos, russos. A última dessas feridas, aberta pela União Soviética, ainda não cicatrizou. 

Em julho de 1921, a cúpula soviética se reuniu em Moscou para deliberar sobre o destino da Transcaucásia. A região saiu das mãos do Império Russo no final da 1ª Guerra e, após um breve surto de declarações de independência e guerras étnicas ferozes, foi incorporada à URSS. 

Uma das preocupações dos soviéticos era um território chamado Nagorno-Karabakh. Trata-se de uma área de 4.400 km2 – três vezes o município de São Paulo – habitada majoritariamente por armênios, mas ilhada dentro do território do Azerbaijão. De início, a intenção era anexar o território à Armênia para aplacar conflitos. Mas o enclave acabou permanecendo com o Azerbaijão.

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A URSS se enfraqueceu no final da década de 1980. Em 1988, pouco antes do colapso do regime soviético, a insatisfação acumulada pelos armênios por décadas ressurgiu intacta no Cáucaso. Eclodiu uma guerra entre os armênios de Nagorno-Karabakh e os azerbaijanos – que terminou em 1994 com um cessar-fogo mediado por Moscou. 

 O resultado foi a derrota do Azerbaijão e a independência do enclave, ainda que a comunidade internacional não reconheça sua autonomia. Nagorno permanece até hoje como um pedaço do Azerbaijão no mapa, mas está sob controle dos separatistas – que denominam a região como “República de Artsakh” e recebem apoio e armamento da Armênia.  Os civis apoiam a separação: etnicamente, Nagorno-Karabakh permanece 95% armênia, e sua população já votou em dois referendos pela independência, em 1991 e em 2017 – ambos tratados como ilegais pelo Azerbaijão. 

 É possível observar no mapa abaixo que a República de Artsakh controla não só o território de Nagorno em si como a faixa de terra que separa Nagorno da Armênia. A conexão mantém o abastecimento do enclave armênio e o impede de ser completamente cercado pelas forças inimigas.

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(Ilustração: Amanda Miranda / Design: Juliana Alencar/Superinteressante)

 

Após 26 anos de tensão, com pequenos conflitos pipocando de vez em quando, uma reedição da guerra eclodiu em setembro de 2020, já deixou 5 mil mortos e não tem previsão para terminar. O presidente armênio, empossado em 2018, inflamou os ânimos com uma retórica populista – mas os analistas de geopolítica concordam que o Azerbaijão atirou primeiro (a Armênia não tem interesse em mudar o status de semi-independência de Nagorno, que é vantajoso para ela).

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 O pedaço de terra é pequeno, mas a briga é de cachorro grande: Rússia, ao Norte,  Turquia, a Oeste, e Irã, ao Sul, todos têm interesses na disputa  – um cabo de guerra que se reflete na etimologia: “Nagorno”, em russo, significa “montanhoso”, e “Karabakh”, com raízes turcas e persas, quer dizer “jardim negro”. 

 Até agora, o Azerbaijão se concentrou em retomar Nagorno-Karabakh e não atacou o território armênio em si. Eles temem a amizade do país cristão com os russos – que estão se esforçando para negociar a paz, mas têm um acordo que os forçaria a entrar na disputa do lado armênio caso a situação saia de controle. A Armênia faz parte da  Organização do Tratado de Segurança Coletiva (OTSC), aliança de ex-repúblicas soviéticas que permanecem protegidas por Moscou. 

 Putin não quer essa dor de cabeça. Embora já tenha verbalizado sua intenção de fazer valer o tratado com a Armênia caso necessário, o líder russo não tem nada contra o Azerbaijão. E manter o controle do Cáucaso pacificamente é um objetivo particularmente caro à Rússia: se eles perderem protagonismo por lá, a Turquia ficará mais do que satisfeita em pegá-lo para si – e ela, como dissemos, é unha e carne com o Azerbaijão.

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A situação armênia

Em 10 de outubro, os russos negociaram uma trégua humanitária sem sucesso. Horas depois de anunciarem a pausa – a ideia era usar o intervalo para recolher cadáveres e trocar prisioneiros –, tanto os separatistas armênios quanto o Azerbaijão recomeçaram as ofensivas. Ambos acusam o outro lado de desrespeitar a pausa primeiro. O descontrole dos oponentes tira credibilidade de Moscou, que põe ordem diplomática na região há três décadas, e em 2016 havia tido sucesso em evitar a eclosão de um conflito por lá.

Rússia e Armênia têm afinidade religiosa por causa do cristianismo ortodoxo – que Putin considera um pilar indispensável da Rússia. Para dar uma ideia da importância da tradição judaico-cristã na Armênia, o Monte Ararate – onde, segundo a Bíblia, Noé teria encalhado sua arca – é o pano de fundo das fotos da capital Yerevan e o maior cartão-postal do país, ilustrado em seu brasão. 

 Só há um problema: o monte não fica na Armênia. Ele fica do outro lado da fronteira, na Turquia. O território habitado na prática pelo povo armênio sempre foi mais amplo do que o país em si – até porque, pela maior parte da história, não houve país. Assim como os judeus, eles são um grupo étnico coeso, que não se limita por fronteiras. Existem diásporas armênias consolidadas em muitos países, inclusive o Brasil. Os movimentos nacionalistas armênios entendem que o Ararate e seus arredores pertencem a eles – reivindicação que é fruto de um trauma recente. 

 O Império Otomano dominou a maior fatia do território tradicionalmente armênio desde o século 15, e iniciou uma campanha de opressão sistemática no século 19, quando os armênios cobraram autonomia. De 1915 em diante, os otomanos aproveitaram a distração gerada pela 1ª Guerra para massacrar ou exilar 1,5 milhão de armênios que habitavam o leste do atual território turco. Além dos fuzilamentos, incêndios, confisco de bens, estupros e trabalhos forçados, adultos, idosos e crianças foram forçados a caminhar pelo deserto até sucumbir à sede, à fome e ao frio. 

Há mais de um século, os armênios lutam fervorosamente pelo reconhecimento desse genocídio, o pior depois do Holocausto. Hoje, o massacre é reconhecido por 32 países – entre eles, EUA, Rússia, Brasil e a maior parte da União Europeia. Mas a Turquia não apenas se nega a assumir a responsabilidade como, recentemente, se tornou um criadouro de movimentos saudosistas do Império Otomano, alimentados pela retórica do presidente turco, Recep Erdogan.

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A emergência da Turquia

Em 27 de setembro, Erdogan anunciou que apoiaria o Azerbaijão na retomada do controle de Nagorno-Karabakh. Nacionalista, ele tenta estabelecer a Turquia não apenas como uma potência geopolítica, mas também como líder simbólica dos islâmicos. Membro da Otan, o país não cessa de comprar armas, algumas contra a vontade dos outros membros. Segundo o índice Global Fire Power, a Turquia é a 11ª maior força militar, na frente da Alemanha e de Israel. 

 As provocações crescem no mesmo ritmo da pilha de mísseis. Erdogan já ordenou a exploração de jazidas de gás natural por todo o Mediterrâneo, incluindo em águas pertencentes a Grécia, Chipre, Egito, Israel e Líbano. Em 2019, o país desafiou os EUA ao invadir a Síria para aniquilar as forças curdas, aliadas dos americanos contra o Estado Islâmico. Em março de 2020, os turcos abriram as fronteiras para que imigrantes sírios pudessem entrar na Europa. 

 Esses recados têm endereço: a Rússia. Os dois países mantêm relações diplomáticas amigáveis na superfície, mas na prática já disputaram várias proxy wars – “guerras por procuração”, um termo para designar conflitos armados em que países maiores fornecem apoio a forças locais para não lutarem diretamente entre si. 

 É o caso de Nagorno: para os turcos, a única resolução possível para a situação é a retirada dos armênios. “Quando a Armênia abandonar o território que ocupa, a região reencontrará paz e harmonia. Qualquer outra proposta seria injusta”, declarou Erdogan.

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Pitacos não faltam

Outros atores têm interesses na região. O Irã – que faz fronteira com os dois países – apoia uma resolução pacífica, mas deixa claro que é favorável à integridade territorial do Azerbaijão. Em 1992, durante o primeiro conflito em Nagorno, o Irã propôs um cessar-fogo que não foi respeitado, e perdeu credibilidade como intermediador. Mesmo assim, defende que os países ocidentais não devem intervir no conflito atual. 

“Os integrantes internacionais do Grupo de Minsk [formado por França e EUA em 1992 para mediar a disputa] estão longe da região e desconectados dela não apenas politicamente, mas também emocional e eticamente, e não têm uma vontade verdadeira de estabelecer a paz”, declarou o ministro iraniano da Defesa.

 Israel, por sua vez, poderia ser um aliado evidente da Armênia: os povos dos dois países, cercados por nações islâmicas, compartilham a herança judaico-cristã e o trauma dos dois maiores genocídios da história. Mas a verdade é que Israel tem uma aliança sólida com o Azerbaijão, um de seus únicos aliados islâmicos: 60% do arsenal militar do azerbaijanos foi adquirido dos israelenses, enquanto 40% do fornecimento de petróleo de Israel vem de reservas no Azerbaijão. Ou seja: trata-se de uma amizade estratégica para Israel, ainda mais pelo fato de o Azerbaijão ficar colado no Irã, um grande inimigo. 

 Petróleo e gás representam 80% das exportações do Azerbaijão e 37% do PIB. Diversos países europeus apelaram para as reservas do pequeno país islâmico depois que os russos – grandes fornecedores de combustíveis fósseis – passaram a ameaçar cortes no fornecimento como uma forma de chantagem. Os gasodutos passam perto de Nagorno-Karabakh, o que dá uma dimensão maior ao conflito regional.  

 

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Sem perspectiva de paz

O Azerbaijão está com a confiança nas alturas. Armado até os dentes com equipamento israelense e turco, parece disposto a reconquistar o território perdido em 1994. O drone Bayraktar TB2, por exemplo, pode operar a até 8 mil metros de altitude – o que dificulta a vida das defesas armênias –, tem autonomia de 27 horas e dispara até quatro mísseis por viagem. 

 Na capital do Azerbaijão, Baku, outdoors digitais têm transmitido imagens dos ataques aéreos para inflamar a população. Os armênios, por sua vez, consideram sua dívida histórica grande demais para ceder o controle de Nagorno-Karabakh ao governo azerbaijano em troca da paz. Por isso, é praticamente impossível que o conflito termine em um impasse como em 1994. O mais provável agora é que ele se estenda até um dos lados vencer. 

 A população civil de Nagorno-Karabakh se esconde, às vezes por vários dias consecutivos, em bunkers. A artilharia de longa distância e os ataques aéreos são intermitentes. Os dois lados são acusados de usar bombas de fragmentação M095 fornecidas por Israel. Proibidos pela maioria dos países, esses artefatos dispersam explosivos menores por grandes distâncias, que nem sempre detonam imediatamente – o que põe em risco a vida de civis na limpeza dos campos de batalha. A violência choca a comunidade internacional, mas é rotina para os habitantes de Nagorno: após três décadas em pé de guerra, há toda uma geração que cresceu sem saber o que é paz.

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