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No princípio, gelo e lava

As narrativas da criação e a estrutura dos nove mundos que compunham os cosmos dos nórdicos.

Texto: Reinaldo José Lopes | Edição de Arte: Estúdio Nono | Design: Andy Faria | Imagens: Rômulo Pacheco e Getty Images

A

cena da Edda em Prosa dá a impressão de ter se passado em algum canto remoto da Islândia, a terra onde geleiras majestosas e vulcões ativos volta e meia batem de frente, mas corresponderia ao panorama do início dos tempos, segundo Snorri. Nos primórdios de tudo, no centro da Criação ainda informe, havia apenas o Ginnungagap, o Grande Abismo.

Ao norte desse buraco incomensurável ficava Niflheim, uma região de frio e trevas eternas da qual brotavam rios de água gelada. Como todo rio que se preze, eles corriam rumo a terrenos mais baixos – ou seja, direto para o Ginnungagap.

Pouco a pouco, o líquido inimaginavelmente frio ia formando camadas e mais camadas de matéria congelada no buracão, enquanto o fluxo lento vindo de Niflheim também produzia uma névoa impenetrável e uma garoa constante.

Parecia a receita para um Universo eternamente submetido a temperaturas abaixo de zero, se não fosse pelo fato de que, ao sul do Grande Abismo, existia o extremo oposto de Niflheim: as chamas inesgotáveis de Muspellsheim.

Ventos mais quentes do que os do pior deserto, brasas ardentes e chispas ferozes eram produzidos o tempo todo por lá, e na fronteira dessa região estava postada uma sentinela assustadora: Surt, o Negro, um gigante de fogo cuja espada de chamas estava sempre desembainhada – e ainda está, à espera de ser usada um dia contra deuses e seres humanos.

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Naquele momento, porém, o gelo de Niflheim e o fogo de Muspellsheim se encontraram bem no meio do Vazio primordial e produziram ali um clima ameno, “tão tranquilo quanto um céu sem vento”, escreve Snorri. A brisa quente que batia nas camadas da geleira primeva começou a derretê-la pouco a pouco, e do gelo que se esvaía foi emergindo uma forma vagamente humana: Ymir, o pai de todos os gigantes do gelo (e, em parte, ancestral dos deuses também).

O mesmo processo levou ao aparecimento de Audhumla, uma magnífica vaca primordial. De seu úbere majestoso, quatro enormes rios de leite começaram a fluir, e foi esse leite que nutriu Ymir.

Provavelmente com a pança cheia de tanto leite, o patriarca dos gigantes adormeceu satisfeito nas imediações do Ginnungagap. O sono parece ter despertado a natureza andrógina – parte macho, parte fêmea – e autofecundadora de Ymir, pois debaixo de suas axilas nasceram espontaneamente um homem e uma mulher, enquanto um filho foi gerado no espaço entre suas pernas, como se elas tivessem copulado entre si. Com isso, a raça dos gigantes, filhos de Ymir, começava de vez.

Nesse meio tempo, Audhumla, que lambia o gelo formado pelos rios de Niflheim em busca de sal, como toda vaca ainda gosta de fazer, acabou por operar outro milagre. No primeiro dia de lambidas, apareceram cabelos humanos nos blocos de gelo.

Mais uma sessão de lambidas e surgiu a cabeça à qual estavam presos aqueles cabelos; e, no terceiro dia, a língua de Audhumla acabou por desenterrar todo o corpo do indivíduo, que estava vivo e em perfeitas condições de saúde, aliás. Seu nome era Buri, um sujeito grande, forte e belo. Buri gerou um filho chamado Bor, o qual, por sua vez, casou-se com Bestla, filha do gigante Bolthorn. E da união de Bor e Bestla nasceram três filhos do sexo masculino: Odin, Vili e Ve.

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Não dá para saber se a fantástica fertilidade dessas criaturas primordiais estava ameaçando superpovoar o Ginnungagap, ou se havia incompatibilidades sérias de gênio entre os filhos de Bor e os descendentes de Ymir (Snorri diz que o patriarca dos gigantes era malévolo, assim como todos os seus filhos, mas não explica exatamente em que consistia a maldade dele).

Seja como for, Odin e seus irmãos Vili e Ve resolveram alterar radicalmente a estrutura do cosmos matando o velho Ymir e usando seus imensos restos mortais para tapar o abismo primordial. A partir do cadáver de Ymir e de algumas outras coisinhas, o Universo que conhecemos foi construído.

<strong>Odin e seus irmãos usam o cadáver do gigante primordial para criar o Cosmos.</strong>
Odin e seus irmãos usam o cadáver do gigante primordial para criar o Cosmos. (Rômulo Pacheco/Superinteressante)

Os oceanos, por exemplo, não passam do sangue do pai dos gigantes, que fluiu de modo tão abundante, quando Odin e seus irmãos o golpearam mortalmente, que todos os demais gigantes morreram afogados. Ou quase todos: Bergelmir e sua mulher escaparam, encarapitados em cima de uma caixa de madeira, feito Noé e sua família dentro da arca bíblica. E dos dois é que descendem os gigantes que ainda estão por aí. A terra é a carne de Ymir, as montanhas são seus ossos; as pedras, seus dentes.

A calota craniana do primeiro gigante virou a abóbada do céu, enquanto a massa cinzenta do seu cérebro hoje atende pelo nome de “nuvens”. Enquanto o cadáver do monstro ainda apodrecia, surgiram vermes que o roíam: essas criaturas, os deuses transformaram na raça dos anões, quatro dos quais – batizados de Norte, Sul, Leste e Oeste – foram colocados nos quatro cantos da Terra.

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As chispas, faíscas e raios ferozes que vinham de Muspellsheim e estavam soltos acima do antigo abismo foram reunidos em alguns poucos lugares, dando origem ao Sol, à Lua e às estrelas. A terra firme moldada pelo trio de jovens deuses era circular e achatada, cercada pelo Grande Oceano por todos os lados, e foi permitido aos gigantes habitar as regiões desse litoral distante, afastadas do centro.

Como precaução extra, Odin e seus irmãos usaram os cílios de Ymir para construir uma barreira entre a morada dos gigantes e a futura habitação dos seres humanos, que foi batizada de Midgard – algo como “recinto central” ou “cercado central”, a expressão deu origem ao termo “Terra-média” na obra de J.R.R. Tolkien.

O lar dos gigantes, por sua vez, ficou conhecido como Utgard, o “recinto externo” (ut é o equivalente de out em inglês, como você talvez tenha imaginado), ou então Jötunheim, “Mundo/Lar dos Gigantes”.

Acabei de mencionar os seres humanos, mas é claro que eles ainda não existiam. Nossos primeiros pais vieram ao mundo depois que os jovens Æsir encontraram dois pedaços de madeira, lançados à praia pelas ondas do mar.

Snorri diz que Odin, Vili e Ve foram os responsáveis por transformar os dois troncos no primeiro casal humano, enquanto a Edda Poética afirma que os criadores da nossa espécie foram Odin (que deu a respiração aos troncos) e dois deuses pouco conhecidos, Hœnir (que nos concedeu o espírito) e Lóður (responsável pela dádiva do sangue e da boa coloração da pele).

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Seja como for, todos concordam que o primeiro casal tinha nome de planta: Ask (Freixo) e Embla (Olmo, ou talvez Videira), árvores típicas do Hemisfério Norte. Ask e Embla, como Adão e Eva, são os ancestrais de todos nós, mortais, habitantes de Midgard. Tanto por seu papel na criação do homem quanto por gerar diversos outros deuses em vários casamentos, Odin recebeu a alcunha de Pai-de-Todos.

<strong>Odin e Thor (no centro) enfrentam inimigos no Ragnarök.</strong>
Odin e Thor (no centro) enfrentam inimigos no Ragnarök. ((*)/Superinteressante)

A nossa seção cosmogônica (sobre o nascimento do cosmos) ainda não acabou, porém. Embora a Criação propriamente dita pareça ter começado com a reciclagem do imenso cadáver de Ymir, os antigos escandinavos costumavam imaginar um total de Nove Mundos na estrutura cósmica, montados num “andaime” muito especial, que não tinha relação com a carcaça do primeiro gigante e talvez tenha existido por todos os séculos dos séculos.

Trata-se da árvore Yggdrasil, um descomunal freixo (assim como a madeira que deu origem ao primeiro homem), que, para alguns especialistas, pode ser vista como uma versão mítica da Via Láctea.

É praticamente impossível mapear os Nove Mundos ao longo das raízes e do tronco de Yggdrasil com precisão total, mas vamos tentar. Imagine que a Árvore Cósmica possui três grandes raízes, espalhadas por três mundos. Uma delas, paradoxalmente, está acima de nós, na própria Asgard, a morada dos deuses, e obtém seu sustento do Poço de Urd, perto do local onde os Æsir se reúnem em conselho para tomar suas decisões divinas.

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Urd pode significar algo como “destino”, e é também o nome de uma das Nornas, o trio de figuras sobrenaturais que regiam os acontecimentos da vida das pessoas e dos deuses. Além de Urd, há a Norna chamada Verdandi (algo como “o que está se tornando”) e, finalmente, Skuld (“obrigação”).

Grosso modo, é como se Urd, Verdandi e Skuld representassem o presente, o passado e o futuro, as transformações da passagem do tempo que também extraem sua vitalidade da água do poço que nutre Yggdrasil.

A segunda raiz da Árvore das Árvores fica em Utgard/Jötunheim, e embaixo dela está o Poço de Mímir (gigante que é amigo de Odin). Quem bebe do poço do gigante ganha imensa sabedoria, e foi por desejar esse conhecimento que Odin se tornou o Deus Caolho.

O Senhor dos Æsir foi até o gigante pedindo um gole daquela água, mas Mímir só concordou em ceder a preciosa bebida em troca de um dos olhos de Odin, o qual foi cuidadosamente colocado dentro do poço. Finalmente, a terceira raiz de Yggdrasil está nas profundezas de Niflheim.

Lista dos Nove Mundos

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Asgard – esse é fácil, o mundo dos deuses ou, pelo menos, o lar dos Æsir (ué, tem outros deuses além deles? Tem, calma que já explico).

Álfheim ou Ljósálfheim – trata-se do mundo dos elfos ou, para ser mais exato, o dos “elfos da luz”, figuras imortais belas e luminosas, que não são exatamente divinas, mas mesmo assim recebiam honras religiosas especiais por parte dos antigos nórdicos, como sacrifícios de animais. Pode ser que eles fizessem parte do séquito dos Vanir, deuses que eram antigos rivais dos Æsir e depois acabaram firmando um tratado de paz com eles.

Vanaheim, o lar original dos deuses Vanir, ligados à fertilidade e ao sucesso agrícola, entre outras coisas.

Midgard, onde você e eu estamos agora.

Jötunheim ou Utgard, terrinha dos gigantes.

Niðavellir ou Svartálfaheim, a morada dos anões (os quais, só para confundir a cabeça do pobre cidadão moderno, também são chamados de svartálfar ou dökkálfar, ou seja, “elfos negros” ou “elfos das trevas”). Os anões são vistos como moradores do subsolo e do interior das montanhas, com grande amor pelas riquezas e incrível habilidade como artesãos. Lugar bom para adquirir artigos de metal de primeira qualidade.

Muspellsheim, nosso velho conhecido reino da lava e do fogo.

Niflheim, mundo do gelo primordial.

Hel, o mundo dos mortos que se foram de maneiras consideradas ignóbeis na cultura nórdica (doença, velhice, assassinato, suicídio), e não em batalha, fecha a nossa lista.

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