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Sociedade

O Gripen brasileiro

Depois de quase 30 anos, o Brasil finalmente tem um novo caça: o Gripen E/F, cuja primeira unidade será apresentada este mês. Ele vem da Suécia – mas, com o tempo, passará a ser fabricado aqui. Veja como o Gripen é, saiba como se compara a outros aviões, e o que o país deve ganhar com ele.

Texto: Ricardo Lacerda e Bruno Garattoni | Foto: Saab/Wikimedia Commons | Ilustração: Felipe Del Rio | Design: Carlos Eduardo Hara

Aguerra era questão de tempo. Em maio de 1967, o Egito bloqueou o Estreito de Tiran, pelo qual passavam os petroleiros que abasteciam Israel, sufocando a economia do país – e praticamente forçando uma reação. Os egípcios sabiam disso, e estavam bem preparados: tinham cinco vezes mais soldados e três vezes mais aviões e tanques do que os israelenses. Tudo apontava para uma vitória fácil. Até que no dia 5 de junho, às 7h45 da manhã, Israel despachou uma série de ataques-surpresa contra bases egípcias, dizimando a Força Aérea do país. Abalado, o Egito não conseguiu responder à altura – e Israel, contrariando todas as expectativas, venceu o confronto, que ficaria conhecido como Guerra dos Seis Dias.

Em abril de 1949, com o mundo ainda se recuperando da Segunda Guerra, os Estados Unidos fundaram a Otan: Organização do Tratado do Atlântico Norte, uma aliança militar reunindo a maioria dos países da Europa Ocidental. Era uma projeção do poder americano no Velho Continente, e também uma forma de proteção mútua – o estatuto da Otan diz que, se um dos países membros for atacado, os demais são obrigados a revidar. A Suécia, ao contrário da vizinha Noruega, não quis entrar no grupo. Se manteve independente, mas arranjou uma preocupação: sem a proteção da Otan, a URSS poderia tentar invadi-la.

Os suecos resolveram isso com duas táticas. Investiram pesadamente em sua indústria militar e criaram uma estratégia batizada de Flygbassystem 90 (“sistema de bases aéreas 90”). A ideia era espalhar os caças da Força Aérea sueca em dezenas de bases, inclusive algumas disfarçadas ou improvisadas, para que fosse impossível destruir todos com um ataque de surpresa, como o que Israel lançou contra o Egito. Mas, para que o plano funcionasse, faltava um elemento: um avião que fosse capaz de decolar e pousar praticamente em qualquer lugar.

Foi aí, no final da década de 1980, que surgiu o Gripen. Esse caça (cujo nome significa “grifão”, um animal mitológico com cabeça de águia e corpo de leão) foi projetado para ser barato, robusto, de manutenção simples – e decolar de pistas com apenas 500 metros de comprimento, incluindo ruas e estradas. Ele foi a resposta sueca à última etapa da Guerra Fria. Agora, em outubro de 2020, uma versão modernizada do avião está chegando ao Brasil – que adquiriu 36 aeronaves, dos novos modelos Gripen E/F, por R$ 24 bilhões na cotação atual. O Gripen “brasileiro” não é o caça mais avançado do planeta. Mas ele representa um salto para o país – que pode mudar o status militar, tecnológico e industrial do Brasil na América Latina, e mesmo em relação ao resto do mundo.

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Um livro de 33 mil páginas

O Brasil irá pagar R$ 24 bilhões pelos caças. É bastante dinheiro – se aproxima dos R$ 29,5 bilhões que o governo gastou, por exemplo, com o programa Bolsa Família no ano passado. Como somos um país pacífico, que raramente se envolve em conflitos internacionais, você pode pensar que um investimento dessa magnitude não faz sentido. Mas não é bem assim, por vários motivos. A começar por um bem simples: nossos aviões estão obsoletos.

O primeiro caça da Força Aérea Brasileira (FAB) foi o britânico Gloster Meteor, que chegou ao Brasil a preço de banana. Ou melhor, de algodão. Em 1953, o governo brasileiro trocou com os ingleses 15 mil toneladas de algodão por 70 aviões. Nas décadas seguintes vieram modelos como o F-80, o T-37 e o Mirage 2000: aposentado em 2013 e o melhor caça que o Brasil já teve (até o Gripen). Hoje o país conta com apenas dois modelos. O F-5M, principal avião de combate da FAB e nosso único avião supersônico – um projeto americano da década de 1950. E o A-1M (também conhecido como AMX), um projeto dos anos 1980 que foi modernizado pela Embraer, mas voa a apenas 1.053 km/h. Uma frota antiga e limitada. Melhor que a da Argentina, mas pior que a da Venezuela [veja quadro abaixo].

Com a chegada dos Gripen, o Brasil vai ganhar poder de dissuasão, ou seja, a capacidade de desencorajar agressores externos e manter a soberania de um espaço aéreo de 22 milhões de quilômetros quadrados. E esse poder é fundamental. Em 2019, quando as tensões internacionais envolvendo a Venezuela alcançaram seu grau máximo, circularam rumores sobre a possibilidade de uma intervenção brasileira no país. A ideia foi rapidamente desmentida pelo governo, e ainda bem. Isso porque a Aviación Militar Bolivariana (AMB) possui uma frota de 23 caças Sukhoi Su-30 e 20 caças F-16, que muito provavelmente fariam picadinho dos nossos antigos e modestos aviões. Não se sabe ao certo quantos caças venezuelanos estão aptos a operar, já que o país vive uma profunda crise econômica e social. Mas só o fato de eles existirem já funcionou como dissuasão. Quando os Gripen estiverem voando, o Brasil também terá esse poder. Nossos novos caças não estão à altura dos modelos mais avançados dos EUA, da Rússia e da China – mas nos colocarão em boa posição na América Latina.

O outro fator que justifica o investimento bilionário está na transferência de tecnologia. O processo licitatório do chamado “Programa FX-2” colocou três concorrentes no páreo: o caça Rafale, da francesa Dassault, o F/A-18 Super Hornet, da Boeing, e o Gripen, da sueca Saab. Foi um processo extremamente complexo: o Comando da Aeronáutica elaborou um relatório com nada menos que 33 mil páginas de análises. Apesar de o jato da Saab ser o mais barato dos três, não era a escolha mais provável. Havia receio porque o modelo oferecido (Gripen E/F) era um avião inédito, a ser desenvolvido a partir das versões anteriores do Gripen. Logo, ele nunca tinha sido testado em combate. Enquanto isso, o F/A-18 acumulava experiências nas guerras do Iraque e Afeganistão, e o Rafale havia participado de intervenções em Mali, na Líbia e na República Centro-Africana.

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Mas um fator virou o jogo: os suecos aceitaram transferir as tecnologias do avião para o Brasil, que se tornará capaz de fabricá-lo. E isso, além de ter óbvias implicações para a soberania do país, também pode ser uma injeção e tanto em seu desenvolvimento tecnológico, industrial e econômico. Para os suecos, também foi bom negócio – pois, assim, eles conseguiram emplacar um avião que não era o favorito. “As compras de materiais bélicos com razoável nível de tecnologia têm uma equação de decisão bem longa, com várias considerações. Não é só preço e qualidade”, diz o cientista político Ricardo Sennes, da consultoria Prospectiva. De fato: a renovação da frota aérea militar brasileira é uma novela que começou nos anos 1990, esfriou, foi retomada na década seguinte – e só em 2014 o contrato foi assinado.

O acordo prevê 60 projetos obrigatórios, envolvendo pesquisa, tecnologia, treinamentos teóricos e práticos, desenvolvimento e produção. Até 2025, cerca de 350 engenheiros e técnicos brasileiros, de empresas integrantes do projeto, terão passado por Linköping, sede da Saab, onde receberão um total de 600 mil horas em treinamentos. A maioria dos cerca de 200 brasileiros que já passaram pela Escandinávia atua no Centro de Projetos e Desenvolvimento do Gripen (GDDN, em inglês), dentro da planta da Embraer em Gavião Peixoto, no interior paulista.

A Saab vai fabricar sozinha 13 unidades do Gripen brasileiro – como é o caso do primeiro deles, que veio da Suécia e deverá ser apresentado em Brasília em 23 de outubro, Dia do Aviador (e data em que Santos Dumont voou com o 14-Bis). Outros oito caças serão construídos na Suécia, mas finalizados no Brasil, e 15 serão montados no GDDN, dentro da Embraer. Algumas partes do Gripen serão produzidas no país: na fábrica de aeroestruturas da Saab, em São Bernardo do Campo, e por outras empresas brasileiras.

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(Felipe Del Rio/Superinteressante)

Ao apresentar o projeto ao Senado, em 2011, representantes da Saab disseram que a indústria brasileira ficaria responsável por “40% do desenvolvimento e até 80% da produção de estruturas [do avião] com exclusividade mundial”. O mapa atualizado de transferência tecnológica [veja infográfico acima] lista algumas peças, mas também deixa bastante coisa de fora. Questionadas a respeito, Saab e FAB afirmaram que está tudo dentro do cronograma previsto. Mas não cravaram quando, e como, o Brasil estará fabricando 80% da aeronave. “Por não se tratar da compra de um produto já existente, o Gripen ofereceu a oportunidade aos brasileiros de participar no desenvolvimento de estruturas, sistemas, aviônicos, na produção e nos ensaios em voo junto aos suecos, além da capacitação para apoiar, manter e modernizar a frota pelas próximas décadas”, afirmaram.

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Em abril deste ano, um anúncio chamou a atenção: a Saab comprou 100% da Atmos Sistemas, uma empresa brasileira que participa do programa Gripen (ela faz a manutenção dos radares do avião, um de seus sistemas mais avançados). A compra acendeu um sinal de alerta em analistas do setor de defesa, que enxergaram nela um freio do processo de transferência de tecnologia para o Brasil. “A aquisição da Atmos pela Saab é especialmente problemática nos sentidos de apropriabilidade tecnológica e dos objetivos dos programas de capacitação fomentados por investimentos públicos”, diz um artigo assinado (1) por dois professores do ITA (Instituto Tecnológico da Aeronáutica). A Saab diz que comprou a Atmos porque isso facilita a operação do Gripen, permitindo que os radares do avião sejam consertados no Brasil. Mas não revela quando, e se, os segredos tecnológicos desses componentes serão transferidos ao Brasil. Em 2019, os suecos já haviam comprado 40% da Akaer, empresa brasileira que fabrica fuselagens – e também faz parte do projeto Gripen.

O processo de transferência de tecnologia não é tão automático, nem tão simples, quanto pode parecer. “É necessário garantir que quem recebe a tecnologia tenha capacidade de absorvê-la, explorá-la e fazer com que chegue a outros mercados”, diz Thiago Caliari, professor do ITA e um dos autores do artigo que analisa a compra da Atmos pela Saab. Ele não descarta a possibilidade de que os suecos voltem a frear a transferência de tecnologia, ainda que não aposte nisso. “Risco sempre tem.”

Também houve um caso de transferência inversa, em que uma empresa brasileira desenvolveu uma tecnologia que acabou sendo adotada pela Saab. É a Wide Area Display (WAD), uma tela de 19×8 polegadas que reúne todos os dados cruciais de voo – que, nas versões anteriores do Gripen, ficavam espalhados por três monitores. Ela foi desenvolvida pela empresa AEL Sistemas, de Porto Alegre, e passará a equipar todos os Gripen (não só os brasileiros). A AEL também irá fabricar outros dois displays para o avião. Um deles é o Head-up Display (HUD), que projeta dados na linha de visão do piloto, e o Helmet Mounted Display (HMD), um capacete que também exibe informações. “É um visor integrado, que permite visualizar informações críticas de voo e de missão diretamente na viseira do capacete, independentemente para onde o piloto estiver olhando”, diz Saul Bencke, gerente de projetos da empresa.

A chegada do Gripen, por sinal, será um salto e tanto para os pilotos da Força Aérea Brasileira, que terão de aprender a pilotá-lo. E já começaram a fazer isso.

(1) https://www.defesanet.com.br/gripenbrazil/noticia/36682/O-que-esperar-da-politica-de-desenvolvimento-da-industria-aeroespacial-brasileira–O-caso-ATMOS

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Software amigável

Em 2015, a FAB enviou seus dois primeiros pilotos para treinar com o avião na Suécia. Um deles foi o major aviador Ramon Lincoln Santos Fórneas, que hoje é um dos diretores do projeto Gripen. Na ocasião, ele participou de simulações de missões de combate além do alcance visual (Beyond Visual Range, ou BVR) com aeronaves de uma versão anterior. Segundo Fórneas, o que mais chamou sua atenção foi a interface do avião, lógica e organizada. “A maneira com que o piloto interage com a aeronave e a forma com que ela apresenta os dados são extremamente eficientes, facilitando a tomada de decisão”, diz.

O ponto mais crítico é que o Brasil recebeu acesso ao código-fonte do software que roda no Gripen. Isso significa que, além de poder aperfeiçoá-lo, será possível fazer mudanças – para que o avião utilize outros mísseis além daqueles que já são compatíveis com ele [veja infográfico acima]. Alegando se tratar de informação estratégica, nem a FAB, nem a Saab quiseram revelar o kit de armamentos que será incluído no avião. Mas analistas do setor de defesa especulam que o Gripen brasileiro poderá utilizar o Meteor, um míssil ar-ar desenvolvido pelo consórcio europeu MBDA e considerado um dos mais modernos e letais que existem: ele voa a quatro vezes a velocidade do som (quase 5 mil km/h) e tem a maior zona de “não escape” (no escape zone) entre todos os mísseis já produzidos. Isso significa que é capaz de abater inimigos a até 60 km, não importando quais manobras de fuga tentem executar. Uma arma e tanto.

Seja para atacar ou, como é mais provável, apenas para dissuadir outros países de fazerem isso, ter um arsenal militar moderno é essencial para qualquer nação – até  as mais pacíficas, como o Brasil. Nosso esquadrão de Gripen dificilmente precisará participar de missões reais de combate. Mas, se um dia isso acontecer, os aviões estarão prontos. Inclusive, se for necessário, para decolar do meio da rua.

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