por Bruno Vaiano
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Atualizado em 29 jan 2021, 15h29 - Publicado em
28 Maio 2020
16h24
Nesta quarentena, você provavelmente conheceu melhor uma pessoa que vive dentro da sua cabeça, aquela que você apelidou de "eu". Mas quem é ela, afinal? Porque ela existe? Bem vindo ao enigma da consciência.
Em um vídeo gravado em 2008, um homem de 50 anos conhecido pelas iniciais TN está caminhando em um corredor. Há uma porção de objetos que cientistas espalharam pelo chão: uma lata de lixo, um tripé de câmera, um maço de papel sulfite. Lawrence Weiskrantz, neurocientista da Universidade de Oxford, quer testar se TN é capaz percorrer alguns metros sem tropeçar. TN cumpre a tarefa, se desviando habilmente dos obstáculos. Normal, não fosse um detalhe: TN não “vê” nada. Ele é cego.
Em 2003, num intervalo de 36 dias, TN teve dois derrames. Nos dois casos, os coágulos interromperam circulação sanguínea na parte de trás do cérebro, onde fica o chamado córtex visual. Sem fornecimento de oxigênio por alguns minutos, ou neurônios dessa região morreram. O córtex visual, como o próprio nome diz, recebe e processa os impulsos elétricos que chegam dos olhos. Sem eles, é impossível enxergar. Ou deveria ser.
Quando Weiskrantz perguntou a TN como ele era capaz de se esquivar dos objetos sem vê-los, ele afirmou simplesmente não saber: mexia as pernas e braços por mero instinto. Alguma área do cérebro de TN continua recebendo informações enviadas pelos olhos e usando-as para guiá-lo – mas ele não tem acesso consciente às imagens. Seu “eu” interior vê apenas escuridão.
Pensando bem, isso não é tão estranho assim. Afinal, seu cérebro faz várias coisas sem te consultar – ainda que ver não seja uma delas, normalmente. Ele mantém seu coração batendo, comanda os movimentos peristálticos do sistema digestório e cuida até da sua respiração – embora os pulmões possam sair do automático e passar para o controle manual (como quando um médico pede para você respirar fundo). O que aconteceu com o paciente TN, grosso modo, é que sua visão passou para esse plano secundário, das coisas inconscientes.
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Corpo e mente
Existe alguém aí dentro da sua cabeça. No caso, você. Você lembra de trechos de um filme, ou de sons de uma canção, ou do cheiro de um perfume. Você realiza tarefas falando consigo mesmo silenciosamente, sem que esse monólogo interior jamais saia pela boca. Você decide quando vai mover as pernas e braços ou quando vai ficar parado. Você, em resumo, é consciente.
Somos íntimos da consciência. Mas tem um detalhe: não sabemos como nosso cérebro é capaz de criá-la. Já em 1637, o filósofo René Descartes se preocupou com essa desconexão aparente entre a mente (o que um religioso chamaria de alma) e o cérebro em si, o órgão feito de carne que gera essa mente. Afinal, a nossa impressão intuitiva é de que a tal alma vai para algum lugar após o cérebro morrer e se decompor – como se ela ocupasse sua cabeça, mas pudesse se libertar dela. Esse é o dualismo cartesiano.
O filósofo GIlbert Ryle chama esse conceito de fantasma na máquina. Ou seja: se houvesse uma máquina que fizesse a mesma coisa que faz o cérebro, e essa máquina fosse tão grande que pudéssemos acessar o seu interior, nós encontraríamos só uma porção de engrenagens e alavancas inanimadas. “Apenas peças funcionando com outras peças, mas nada para explicar a percepção”, nas palavras do matemático alemão Gottfried Leibniz. Onde, afinal, fica o fantasma?
Como impulsos elétricos – que por si só não têm nada de conscientes – dão origem à experiência subjetiva da dor?
A questão é que ele não fica. Hoje, do ponto de vista estritamente científico, pode-se afirmar com razoável segurança que a consciência é produto de interações eletroquímicas entre os neurônios. Ela não pode ser encontrada entre as engrenagens, porque ela é as engrenagens. A tal percepção a que Leibniz se refere nasce do próprio funcionamento da máquina. Se o cérebro morre, você e tudo que você é morrem junto.
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O problema é outro: que interações eletroquímicas são essas? Como esses impulsos elétricos – que por si só não têm nada de conscientes – dão origem à experiência subjetiva da dor, da alegria ou da cor verde? Se um dia decifrarmos esses pulsos elétricos, nós vamos conseguir construir um robô capaz de ter experiências subjetivas?
Os cientistas e filósofos de hoje não têm essas respostas, mas sistematizaram o problema de uma maneira que se tornou possível abordá-lo com seriedade. Na década de 1990, a consciência saiu do campo das coisas sobre as quais nós não sabemos como pensar e se tornou alvo de investigação séria. O primeiro passo nessa direção foi dado pelo filósofo David Chalmers no livro A Mente Consciente, de 1996. Ele afirma que o problema da consciência pode ser subdivido em problemas menores, e que, para algum deles, já temos respostas, ainda que rudimentares. Vamos começar pelas respostas que estão encaminhadas.
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Os problemas "fáceis"
1. Um aspecto importante da consciência é o autoconhecimento.
Você não é só um ser capaz de ter dor de cabeça, você é um ser capaz de pensar “Eu, Bruno, repórter da SUPER, estou com dor de cabeça”. Steven Pinker, cientista cognitivo de Harvard, não considera essa capacidade um mistério: “Qualquer programador amador consegue escrever um software que examina e modifica a si próprio, e que gera relatórios sobre si mesmo”, ele escreve no livro Como a Mente Funciona. “Um robô que se reconhece no espelho não é mais difícil de construir do que um robô que reconhece qualquer outra coisa. Ou seja: a sensação de que existe um “eu” é um problema de programação razoavelmente simples. Chimpanzés e golfinhos, como nós, se reconhecem no espelho. Cães são ruins de espelho, mas sabem se o xixi no poste é deles mesmos ou de outros cães.
2. Outra questão é a imaginação. Temos a sensação de que existe uma tela no interior da nossa cabeça, em que podemos criar situações de mentirinha. Não é difícil entender por que esse software mental da imaginação evoluiu por seleção natural. Ele aumenta nossas chances de sobreviver a situações adversas. Se um gato quer subir em um armário, ele usa essa tela interior para treinar vários jeitos de dar um pulo tão alto, averiguar qual é o melhor e só então utilizá-lo. O gato manipula um armário fictício em seu teatro mental.
Já os teatros mentais humanos são tão completos que contêm os próprios humanos que os criaram: “Talvez a consciência surja no momento em que a simulação que o cérebro faz do mundo se torna tão completa que passa a incluir um modelo de si mesma”, escreve o biólogo Richard Dawkins.
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3. Além do autoconhecimento e da imaginação, há o acesso à informação. Como já mencionado, sua consciência permite acessar algumas coisas que acontecem com o seu corpo – como a visão –, mas não outras – como os batimentos cardíacos. Além disso, ela organiza o acesso. Permite que você decida o que fará agora.
Em 1988, Bernard Baars criou a hipótese do global workspace – o “espaço de trabalho global”. A ideia é basicamente a seguinte: seu cérebro tem vários módulos, que funcionam todos ao mesmo tempo. Há uma área que cuida do coração, outra do estômago, outra do nariz, operando simultaneamente (Caso contrário, você teria que interromper seus batimentos cardíacos para cheirar alguma coisa ou digerir. Não daria muito certo.) Isso torna o cérebro uma máquina capaz de fazer algo que a ciência da computação chama de processamento em paralelo.
Por outro lado, o seu fluxo de consciência – essa sequência de sons, imagens, cheiros, palavras etc. que passa pela sua cabeça constantemente – é oposto de paralelo. Ele é serial. Ou seja: você só consegue dar atenção a uma coisa de cada vez, uma após a outra. Quando você para e pensa em algo, você escolhe um tópico (digamos, o preço da escola do seu filho) e dedica todos os recursos necessários a explorar esse tópico. Você ativa a memória para relembrar as mensalidades antigas e o aumento nos preços, ativa a linguagem para explicar o problema a um amigo e pedir conselhos etc.
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Ou seja: a consciência permite controlar a ativação dos módulos do cérebro, que são paralelos, de maneira serial. Ela é como a tela do seu computador: você pode até ter vários programas rodando ao mesmo tempo, mas usa um de cada vez.
Talvez a consciência surja no momento em que a simulação que o cérebro faz do mundo se torna tão completa que passa a incluir um modelo de si mesma.
Richard Dawkins, biólogo
Um experimento realizado pela psicóloga Anne Treisman, de Princeton, demonstra que nós temos um estágio de processamento paralelo inconsciente e um estágio de processamento paralelo consciente. Ela mostra a uma cobaia uma folha de papel com um monte de letras X e apenas uma letra O. A cobaia precisa identificar a letra O lá no meio. Simples: a letra O é muito diferente da letra X, ela se destaca imediatamente aos olhos. A mesma coisa acontece se a folha tem um monte de letras X verdes e apenas uma letra X vermelha. Isso é processamento paralelo inconsciente: os módulos do seu cérebro que reconhecem formas e cores rastreiam a folha de papel e encontraram um item diferente sem você precisar prestar atenção.
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Agora, imagine que a folha de papel tem letras X verdes e vermelhas e letras O verdes e vermelhas. Ou seja: agora há quatro combinações possíveis: X vermelho, X verde, O vermelho, O verde. Sua missão é identificar o X vermelho. Fica bem mais complicado. O único jeito é ligar o processamento serial consciente, ou seja: prestar atenção. Você para e pensa: “Vou olhar letra por letra, avaliando forma e cor, até encontrar a combinação correta de forma e cor”. A consciência, em suma, põe ordem na casa dos pensamentos. Permite abordar os problemas de maneira sistemática.
Os três casos que você acabou de ver ilustram algumas hipóteses sólidas sobre o funcionamento da consciência. Mas elas, como dissemos antes, estão no rol dos “problemas fáceis”. Falta explicar o que David Chalmers chamou de hard problem – o “problema difícil”. Então vamos introduzir o hard problem de Chalmers com morcegos, como fez o filósofo contemporâneo Thomas Nagel.
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O problema difícil
Um morcego tem uma espécie de sexto sentido, a ecolocalização. Esse mamífero voador emite sons e calcula a que distância que um objeto está pelo tempo que o som demora para bater no objeto e voltar. Como será que é estar dentro da cabeça dele? Como é ver o mundo usando o som, em vez da luz? Será que o morcego “vê” os sons? Talvez, a representação mental gerada pela ecolocalização não se pareça nem com a audição nem com a visão. Ela pode ser algo que sequer conseguimos imaginar, pois não possuímos esse sentido.
Há muitas coisas inacessíveis a um ser humano. Nunca saberemos qual é a cor de um raio ultravioleta, porque nossos olhos só enxergam ondas eletromagnéticas (isto é, de luz) até o violeta. A caixa de lápis de cor da natureza é bem maior. Cada lápis corresponde a um comprimento de onda eletromagnética, mas só conseguimos enxergar um pedaço da caixa. Da mesma forma, somos incapazes conceber um espaço de quatro dimensões, porque vivemos num Universo limitado a três. Os filósofos chamam essas sensações puras, que não podem ser descritas em termos de outras coisas, de qualia. Explicar a existência dos qualia é o “problema difícil”.
Em princípio, nós poderíamos ser todos zumbis, diz Chalmers. Não zumbis de Walking Dead. Zumbis filosóficos. Vamos explicar esse conceito com o paciente TN, lá do começo do texto. Ele não enxerga conscientemente, mas enxerga. Se você visse TN andar no corredor sem saber que ele é cego, pensaria que ele tem uma visão normal. E ele tem. O que ele não tem é a experiência subjetiva da visão.
Dá para imaginar uma pessoa que seja como TN em todos os aspectos, não só a visão. Que não acessa cheiros, sons, cores ou dores. E você não conseguiria perceber, porque essa pessoa se comportaria normalmente. Ela teria autoconhecimento, imaginação e acesso à informação. A única coisa que faltaria é o que falta a um computador: a experiência subjetiva dessas coisas. Os tais qualia (o plural é quale). Falta a pessoa saber qual é a aparência da cor vermelha, em vez de simplesmente registrá-la como uma onda eletromagnética de um certo comprimento.
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“Uma teoria satisfatória da consciência precisa prever sob quais condições um sistema físico particular – sejam os neurônios do seu cérebro, seja um chip de silício – está tendo experiências subjetivas”, escreve Christof Koch, presidente do Instituto Allen para Ciências do Cérebro. Caso contrário, será impossível criar uma inteligência artificial consciente. Filósofos como Chalmers apostam nessa impossibilidade. Ele é um dualista, como Descartes. Embora sua visão não seja religiosa, ele entende os quale como algo desvinculado da biologia.
Entende a consciência usando nosso cérebro é como tentar medir uma régua usando a própria régua.
Outros, como Daniel Dennett, da Universidade Tufts, acreditam que na verdade não há um problema difícil, e que Chalmers precisa (com o perdão do trocadilho) colocar a mão na consciência. Quando os cientistas conseguirem mapear toda a rede de interações eletroquímicas entre os neurônios, os quale serão reduzidos a um fenômeno biológico. Isso já aconteceu antes na história da ciência: para os alquimistas, ouro era algo especial. Hoje, porém os químicos sabem que ouro e oxigênio são feitos da mesma coisa, átomos. A diferença é que os átomos de outro tem 79 prótons, os de oxigênio, 8.
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Há uma terceira classe de pensadores, porém, cuja opinião é a de que entender os quale (ou reproduzi-los em uma máquina) usando nosso cérebro é como tentar medir uma régua usando a própria régua: algo impossível, além do nosso alcance. A consciência até teria uma explicação perfeitamente lógica, mas que nossa mente de Homo sapiens evoluído no leste da África não é capaz de captar. Exatamente como a cor do infravermelho. Ou a quarta dimensão. Se for isso mesmo nós seremos, para sempre, um mistério para nós mesmos.
Fontes: artigo “Intact navigation skills after bilateral loss of striate cortex”; livros Consciousness Explained, de Daniel Dennett; Matéria e Consciência, de Paul M. Churchland; O Mistério da Consciência, de António Damásio; Como a Mente Funciona, de Steven Pinker; O Gene Egoísta, de Richard Dawkins; vídeos “Dennett’s Quining Qualia Argument” de Matt McCormick e “Como as coisas inconscientes se tornaram conscientes”, do canal Kurzgesagt; verbetes “Consciousness”, de Robert Van Gulick, na Stanford Encyclopedia of Philosophy e “The Hard Problem of Consciousness” de Josh Weisberg na Internet Encyclopedia of Phyilosophy.
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A evolução da consciência O ser humano não é o único: outros animais possuem experiências subjetivas com diferentes graus de complexidade. Conheça alguns exemplos:
1. Alga do gênero Euglena Essa alga unicelular tem um sensor de luz. Quando ela está em um lugar escuro, o sensor ativa um rabinho (o flagelo) e a Euglena nada até um lugar onde possa fazer fotossíntese.
2. Verme Dugesia tigrina Quando está de barriga cheia, ele se esconde até sentir fome de novo. É um dos animais mais primitivos a agir em resposta a um estado psicológico (a fome), e não ao ambiente.
3. Gatos domésticos O bichanos sabem que um objeto continua existindo mesmo quando não é possível vê-lo (como na brincadeira em que você esconde a bolinha em um copo e então embaralha os copos).
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4. Esquilo Eles têm uma memória complexa: mantêm registro de onde esconderam dezenas de nozes diferentes em um parque, e voltam às localizações exatas para comê-las.
5. Scrub jays da Califórnia Esses pássaros sabem que os outros pássaros têm intenções. Quando percebem que foram observados escondendo comida, mudam o alimento de lugar para evitar o roubo.
6. Golfinhos e grandes macacos Se reconhecem no espelho, e fazem planos para o futuro: golfinhos que recebem comida de recompensa por tirar lixo da água aprendem a entregar o lixo só quando estão com fome.
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