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O renascimento do Mac (e o futuro do PC)

Dezoito horas de bateria. Carregamento instantâneo. Aplicativos de iOS. Veja como o novo processador M1, da Apple, redefine os notebooks – e como ele vai influenciar os laptops com Windows.

Texto  Bruno Garattoni
Ilustração Estúdio Trema
Design Natalia Sayuri Lara

Texto originalmente publicado pela Super em fevereiro de 2021

Pense no seu smartphone. Ele fica ligado o tempo todo, pronto para você: basta pegá-lo para acender ou apagar a tela e usar. Os aplicativos abrem instantaneamente, não ficam “carregando”. E a bateria, nos últimos anos, deixou de ser um problema – os celulares modernos aguentam tranquilamente o dia inteiro longe da tomada. Agora compare com o seu notebook. É completamente diferente. Ele demora para ligar e desligar, os programas não abrem no ato, e a bateria é sempre uma preocupação. Estamos em 2021, mas os laptops ainda se comportam mais ou menos como nos anos 1990.    

Esses problemas têm a mesma raiz, e ela é mais antiga ainda: surgiu em 1978, quando a fabricante de processadores Intel apresentou ao mundo a “arquitetura” x86. O nome vem do chip Intel 8086, lançado naquele ano, e de seus sucessores 286, 386 e 486. Os notebooks e PCs de mesa até hoje são baseados nessa arquitetura, ou seja, seus processadores contêm elementos físicos e ferramentas matemáticas em comum com aquele primeiro chip.

A arquitetura x86 foi ampliada e aperfeiçoada nos últimos 40 anos e permitiu que os computadores dessem saltos inacreditáveis. Um processador moderno, como o Intel Core i9-9900K, executa até 400 bilhões de instruções por segundo – contra 300 mil do antigo 8086. Ou seja, ele é 1,3 milhão de vezes mais rápido. O mundo moderno, com computadores potentes e onipresentes, só existe graças à arquitetura x86.

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Mas ela tem um problema de nascença. Quando foi criada, os notebooks nem existiam (os primeiros computadores portáteis, que pesavam mais de 10 kg, só surgiram nos anos 1980), e o consumo de energia não era uma preocupação relevante. Afinal, se você só vai usar o seu PC plugado à tomada, quer é que ele seja o mais rápido possível, e não está muito preocupado com a conta de luz. Os processadores x86 gastam muita eletricidade. É por isso que os notebooks têm as limitações que têm. E é por isso que, quando a Apple lançou o iPhone, em 2007, não usou um chip x86. Escolheu outro tipo de processador, baseado em outra arquitetura: a ARM (Advanced RISC Machines).

Essa arquitetura também é antiga. Foi inventada em 1985 pela empresa inglesa Acorn Computers (hoje pertence à também inglesa ARM Holdings, comprada em 2020 pela fabricante de chips gráficos nVidia). Mas tem uma grande diferença em relação à x86. É muito mais simples. Os processadores x86 são capazes de executar mais de 1.500 instruções matemáticas diferentes. Os chips ARM, apenas 230. Eles seguem a filosofia RISC: Reduced Instruction Set Computing, ou “computação com número reduzido de instruções” (já os chips x86 são do tipo Complex Instruction Set Computing, ou CISC). 

Os processadores ARM conseguem se virar com menos instruções (basta que os softwares sejam adaptados para rodar neles). E, como não precisam de circuitos dedicados a interpretar e rodar uma enormidade de instruções, gastam bem menos energia. Todos os smartphones usam chips baseados na arquitetura ARM. E há muito tempo tem gente tentando emplacar esses processadores em notebooks: a Microsoft criou o sistema Windows RT, o primeiro para laptops ARM, em 2012. Ela e a Samsung lançaram alguns notebooks, das linhas Surface e Galaxy, com esse tipo de chip. 

Mas eles nunca fizeram sucesso, porque eram meio lentos e tinham um problema: se você tentasse usar programas x86 tradicionais, que não haviam sido traduzidos para a nova arquitetura, o laptop acionava um emulador: software que simulava a existência do Windows comum, x86. Isso deixava o computador ainda mais lento, detonava a bateria – e, em muitos casos, os programas simplesmente não funcionavam. Como os notebooks ARM eram ruins, eles vendiam pouco, e os desenvolvedores de software não convertiam seus programas (preferiam ficar no x86), fazendo com que os notebooks ARM continuassem ruins. É esse círculo vicioso que, agora, a Apple conseguiu romper.

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Os novos MacBook Air, MacBook Pro e Mac mini vêm equipados com um processador de arquitetura ARM: o Apple M1. Ele gasta muito menos energia do que os chips x86, e isso permite um salto revolucionário. Nos nossos testes com o novo MacBook Pro, a bateria aguentou 16 a 18 horas de uso intenso (navegando via Wi-Fi, usando Google Docs e outros webapps, instalando e rodando softwares diversos). É o dobro, ou o triplo, da autonomia alcançada pelos notebooks tradicionais.

Quando você fecha o laptop, o M1 “dorme” e entra num modo de consumo ultrabaixo: nos nossos testes, ele só gastou 1% a 2% da bateria durante a noite. Isso significa que, na prática, você não precisa mais ligar e desligar o laptop. Pode deixá-lo ligado o tempo todo, com o sistema e os programas carregados, e simplesmente abrir ou fechar a tela. Como se fosse um smartphone. É uma mudança profunda, que transforma a relação com o computador.

Os três computadores usam o mesmo chip, com oito núcleos de processamento trabalhando a até 3,2 GHz. A diferença é que o MacBook Air não tem cooler (ventoinha interna), e nele o processamento de vídeo (que é feito pelo chip M1) é menos potente [veja infográfico abaixo]. Na prática, a consequência disso é que o Air é um pouco menos capaz de rodar games (o que não chega a ser relevante, já que pouquíssimos jogos têm versão para Mac). E, após dez minutos com a CPU trabalhando a 100% da capacidade, o Air pode desacelerar em 10% a 15% para evitar superaquecimento. Isso só se manifesta em tarefas intensas, como exportar vídeo e renderizar objetos 3D – para as quais existe o MacBook Pro (que, graças ao cooler, roda a 100% de forma contínua).

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(Apple/Montagem sobre reprodução)
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Ao contrário do que aconteceu no mundo Windows, em que pouquíssimos softwares foram migrados para ARM, a Apple conseguiu convencer os desenvolvedores a trabalhar: os navegadores Chrome, Safari e Firefox, o pacote Microsoft Office, o Photoshop e o Lightroom e os editores de vídeo Premiere, Final Cut e Da Vinci já ganharam versões adaptadas. Nós testamos todos, que funcionaram muito bem: dá para abrir trocentas abas do navegador, rodar planilhas cheias de macros, trabalhar em fotos com dezenas de layers ou editar vídeos em 4K, e ficar com tudo aberto ao mesmo tempo, sem que o computador dê o mínimo sinal de ficar lento. O Apple M1 é 10% a 40% mais rápido que os chips Intel presentes nos Macbooks da geração passada. Mas gasta dez vezes menos energia – e é por isso que os novos laptops da Apple têm até 18h de bateria.

O chip também permite rodar aplicativos do iOS, de iPhone e iPad, no Mac. É só baixar, pela App Store, e usar. Isso tem um potencial enorme. Nos últimos dez anos, a indústria de software concentrou seus esforços nos apps mobile, e agora eles podem ser usados também no computador. Mas, na prática, há alguns poréns. O Mac não é touchscreen, o que complica um pouco o uso dos aplicativos de iOS. Eles rodam numa janela bem pequena, que não pode ser ampliada. E nem todos os apps foram liberados para o Mac (o Netflix para iOS, que permite baixar conteúdo para ver offline, não foi). A compatibilidade entre macOS e iOS só deve render frutos daqui a um tempo – quando os desenvolvedores começarem a fazer versões unificadas dos softwares, cobrindo todas as plataformas da Apple (que, somadas, totalizam 1,6 bilhão de smartphones, laptops e desktops).

Por enquanto, o verdadeiro pulo do gato do chip M1 está nos softwares tradicionais, x86, que ainda não foram convertidos para a nova arquitetura. Quando você tenta rodar um deles, o sistema operacional macOS aciona um mecanismo chamado Rosetta (referência à Pedra de Roseta, rocha que foi descoberta em 1799 e traz inscrições que permitiram decifrar os hieroglifos egípcios). Ele não é um emulador; é um tradutor que analisa e converte o software, substituindo as instruções x86 contidas naquele programa por instruções ARM. O processo leva poucos segundos, é automático e só precisa ser feito uma vez. Em geral, os softwares x86 funcionam muito bem (em alguns casos, até mais rápido do que nos chips Intel). Isso significa que, se você precisar de algum programa que ainda não foi convertido – como o Spotify, o Skype ou o Zoom – , poderá rodá-lo numa boa. 

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(Apple/Montagem sobre reprodução)
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O Rosetta não é uma panaceia. Nos nossos testes, o Premiere adaptado para o chip M1 se saiu muito bem. Mas resolvemos instalar sua versão antiga, x86, para ver como ela se sairia. Não foi bem. Mesmo usando um MacBook Pro com chip M1, solid state disk (SSD) e 16 gigabytes de memória RAM, o Premiere antigo teve dificuldades na edição de vídeos 4K, com engasgos frequentes. Isso não é um problema real – afinal, o Premiere já ganhou uma versão ARM, e ela é ótima –, mas mostra que nem sempre o Rosetta faz milagre (há relatos de problemas com o Illustrator e o InDesign). Softwares mais pesados, como os da Adobe, terão sim de ser adaptados por seus criadores. Boa parte já foi ou está sendo.

Em suma: a Apple conseguiu fazer o que a Microsoft e sua parceira Qualcomm (que domina o mercado de chips para smartphone) vinham tentando há um tempão: levou os computadores para a era ARM. Mas isso não aconteceu de um dia para o outro. É um projeto que vem sendo desenvolvido, discretamente, há mais de uma década.

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A China, o Brasil e o Windows

Em 2008, a Apple comprou a PA Semi (Palo Alto Semiconductor), uma empresa relativamente pequena que projetava chips para outras fabricantes. Isso começou a dar frutos em 2010, com o nascimento do A4: o primeiro processador criado pela empresa de Steve Jobs. Era o coração do iPhone 4 e do primeiro iPad, lançado naquele mesmo ano. A Apple foi desenvolvendo seus chips até dar outro salto no final de 2015, com o lançamento do iPad Pro – cujo chip, o A9X, era o primeiro com desempenho comparável ao dos processadores tradicionais, da arquitetura x86.

Como o A9X estava dentro de um tablet e rodava o sistema operacional iOS, que é leve e simples, isso não chamou muita atenção. Mas foi ali que, sem alarde, começou a virada de mesa. No começo, os chips da Apple eram fabricados pela Samsung. Mas o A9X era produzido por outra empresa: a chinesa TSMC (Taiwan Semiconductor Manufacturing Company). Foi uma cartada decisiva. A TSMC também faz os processadores da AMD, a arquirrival da Intel, e da nVidia, maior fabricante de placas de vídeo do mundo. Os chips do Xbox, do PlayStation 5 e do iPhone vêm de lá – e, agora, o M1 também.

Isso aconteceu porque, nos últimos anos, a TSMC conseguiu dar um salto tecnológico e dominar o processo de fabricação de cinco nanômetros. Isso permite fazer circuitos menores e mais velozes, que gastam menos energia [veja quadro acima].

Nos Estados Unidos, os novos Macs não são caros. O mini custa US$ 700, o MacBook Air sai por US$ 1.000, e você compra um Pro por US$ 1.300 (mesmo valor do salário mínimo de lá). No Brasil, como você deve ter imaginado, a coisa é diferente. E como. O Mac mini custa R$ 8.700, o Air sai por R$ 13 mil, e o Pro vale R$ 17.300. E esses valores são para as versões com 8 gigabytes de memória RAM. Se você quiser 16 GB de RAM, o que é recomendável (pois a memória fica dentro do chip M1, ou seja, não dá para fazer upgrade depois), pode adicionar mais R$ 2.500 ao preço – nos EUA, são US$ 200. Em suma: no Brasil, os novos Macs são artigos de luxo, a que pouquíssima gente terá acesso. Mesmo assim, eles devem ter enormes consequências por aqui.

Nos últimos 15 anos, que a Apple passou usando chips Intel, os Macs se tornaram parecidos com os PCs (só eram mais bonitos e tinham um sistema operacional diferente). Com o M1, deixa de ser assim. Os MacBooks passam a ter uma enorme vantagem de bateria – e isso irá obrigar a Microsoft a reagir, para evitar que o Windows seja varrido do mercado de laptops. No final de 2020, a agência Bloomberg afirmou que a empresa já está desenvolvendo seus próprios chips, de arquitetura ARM, para servidores e notebooks. Quando eles chegarem, os laptops Windows (que são 90% do mercado) poderão
entrar na nova era – oferecendo benefícios similares aos do Apple M1.

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(Lenovo/Montagem sobre reprodução)

E a gigante Intel, que domina 80% do mercado de notebooks, também já começou a reagir. No segundo semestre, ela irá apresentar uma nova geração de processadores x86, identificados pelo codinome Alder Lake. Eles serão híbridos: terão alguns núcleos de alta potência e outros de baixo consumo de energia, uma estratégia que é usada pelos chips ARM. A Intel já lançou um chip híbrido, o Lakefield, mas ele era pouco potente [veja quadro acima]. O Alder Lake promete resolver esse problema: rumores indicam que ele terá até 16 núcleos, sendo oito de baixo consumo e oito de alta performance, e também será capaz de executar novas instruções x86, que prometem mais desempenho. Segundo a Intel, o resultado disso é um nível inédito de “performance por watt”. Ou seja, o chip poderá rodar o sistema operacional e demais softwares gastando muito menos energia.

Se os esforços da Microsoft e da Intel derem certo, daqui a alguns anos até os notebooks mais básicos, na faixa de R$ 3 mil, serão ultravelozes e aguentarão 18 horas longe da tomada. Hoje isso pode parecer difícil de acreditar, mas algo do tipo já aconteceu. Em 1984, o primeiro Macintosh apresentou ao público o conceito de interface gráfica, com janelas, ícones e um mouse para você clicar nelas (até então só computadores profissionais, criados pela Xerox, tinham isso). No ano seguinte, a Microsoft lançou o Windows, levando essas coisas para os PCs. Ele era inferior ao Mac e tinha lá seus problemas, mas era bom. Bom o suficiente para dominar o mercado, conquistar o mundo e transformar a história. 

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