Texto Bruno Garattoni e Eduardo Szklarz | Foto: Studio Oz | Design: Juliana Krauss
Oglifosato é um herbicida, ou seja, mata plantas. Ele bloqueia a ação de uma enzima, chamada EPSP, sem a qual os vegetais não conseguem sintetizar três aminoácidos essenciais: tirosina, triptofano e fenilalanina. Algumas semanas após a aplicação do produto, as plantas param de crescer, começam a definhar e morrem. O problema, por assim dizer, é que o glifosato é eficiente demais: tende a matar todas as plantas, não só as ervas daninhas que os agricultores querem combater. Por isso esse agrotóxico, que foi lançado em 1974, só era usado para “limpar” o solo antes do plantio. Mas a coisa mudou em 1996, quando a Monsanto, inventora do produto, apresentou ao mundo um novo tipo de vegetal, a soja transgênica. Essa planta continha um gene, extraído da bactéria Agrobacterium tumefaciens, que dava a ela um superpoder: imunidade ao glifosato.
É que essa bactéria, como algumas outras, também produz a enzima EPSP, só que numa variação um pouco diferente, resistente ao glifosato. Graças ao gene da bactéria, a planta da Monsanto também adquiriu essa característica. Pela primeira vez, era possível usar o glifosato durante o plantio de soja. Foi uma revolução. Ele se tornou o agrotóxico mais utilizado do mundo – e a ciência desenvolveu versões transgênicas do milho e do algodão, também compatíveis com o produto. Mas, junto com o sucesso, também surgiram más notícias.
Como animais não produzem a enzima EPSP, o glifosato sempre foi considerado inofensivo para eles. Mas, ao longo das décadas, estudos foram mostrando que doses altas do produto podiam provocar efeitos negativos em cobaias, e em 2015 a Agência Internacional de Pesquisa em Câncer, um órgão da OMS, classificou o glifosato como “provavelmente cancerígeno em humanos” (1). (Ela inseriu o produto na categoria 2A, que reúne substâncias obviamente venenosas, como gás mostarda e nitrotolueno, mas também coisas triviais, como carne vermelha e chás muito quentes, acima de 65 graus.) Nos anos seguintes, começaram a surgir casos de agricultores e jardineiros que tiveram câncer, atribuíram isso ao glifosato e foram à Justiça. Em 2020 a Bayer, dona da Monsanto, aceitou pagar US$ 10 bilhões em indenizações nos EUA. O glifosato continua no mercado – e seu fabricante sustenta que, se utilizado de forma correta, ele é seguro.
Mas o produto e as lavouras transgênicas viriam a sofrer um revés muito maior. Em 2011, começaram a aparecer as primeiras pragas resistentes ao glifosato. O uso maciço dele estava acelerando a evolução das ervas daninhas – que, pelo processo de seleção natural, foram se tornando imunes. Hoje, há pelo menos 38 espécies de praga resistentes ao glifosato, que já foram encontradas em lavouras de mais de 30 países (2)
E isso não está acontecendo só com as plantas transgênicas. Nas últimas décadas, ao menos 262 espécies de ervas daninhas, em 70 países, desenvolveram resistência a herbicidas (3). No Brasil, pragas como o azevém e o caruru-palmeri geram perdas anuais de R$ 9 bilhões aos produtores de soja (4). Isso é normal e, até certo ponto, inevitável. Da mesma forma que bactérias criam resistência a antibióticos, as pragas tendem a ir derrotando os pesticidas. Mas, enquanto a medicina reage inventando antibióticos, a agroindústria vai por outro caminho. Em vez de desenvolver agrotóxicos, aposta na engenharia genética.
A Bayer está pedindo autorização dos EUA e da Europa para lançar o milho MON 87429, o primeiro supertransgênico. Ele é, de longe, a coisa mais sofisticada que a agroindústria já criou, pois contém material genético de cinco organismos: o DNA do milho em si salpicado com genes de quatro bactérias [veja quadro abaixo]. Graças a isso, é capaz de suportar o uso de cinco herbicidas: dicamba, glufosinato, quizalofop e 2,4-D, além do glifosato. Todos são antigos, estão há décadas no mercado, mas não podiam ser aplicados diretamente sobre o milho, pois eram tóxicos demais. O MON 87429 resiste a esses produtos, permitindo que sejam usados durante o plantio. “Nosso produto oferecerá o pacote de tolerância a herbicidas mais completo do mercado”, afirma a fabricante.
A Bayer diz que os plantadores poderão escolher entre os cinco herbicidas e, assim, controlar as pragas. Mas há quem discorde. “Os agricultores vão gastar mais dinheiro para usar herbicidas, novamente de forma excessiva, jogando mais substâncias tóxicas no ambiente”, diz o agrônomo Franklin Egan, que trabalhou no USDA (Ministério da Agricultura dos EUA) e hoje dirige a Pasa, uma ONG de agricultura sustentável. Segundo ele, as plantas daninhas acabarão desenvolvendo resistência a todos os cinco herbicidas, levando os agricultores a ir aumentando as doses e depois recorrer a outros agrotóxicos. Seria o novo capítulo do pesticide treadmill (“esteira de pesticidas”), um fenômeno ao qual a agricultura está presa faz tempo [veja quadro abaixo].
Isso sem falar numa eventual combinação de herbicidas, que poderiam reagir entre si. “A aplicação de coquetéis não testados poderia ter graves impactos no solo e na saúde humana”, diz a bióloga Marcia Ishii-Eiteman, doutora pela Universidade Cornell e cientista sênior da ONG Pesticide Action Network. “Sozinhos, o 2,4-D e o glifosato têm sido vinculados, na literatura médica, a câncer e efeitos sobre a reprodução. Não há informações sobre os impactos à saúde humana quando eles são misturados”, afirma.
A Bayer diz que, além de cumprir as normas das autoridades regulatórias, que são bastante rigorosas, também realizou seus próprios estudos de segurança (5) com o MON 87429. Segundo a empresa, o produto existe para dar opções aos agricultores (se um dos herbicidas falhar, será possível tentar outro), e não para que eles apliquem vários pesticidas ao mesmo tempo. Na prática, os lavradores nem sempre obedecem às instruções de uso dos agrotóxicos – o que, como ilustrou uma onda que varreu metade dos EUA em 2017 e 2018, pode ter consequências devastadoras. E as plantações brasileiras têm uma característica que torna o MON 87429 especialmente controverso (mais sobre isso daqui a pouco).
Por outro lado, o avanço das pragas é um problema sério, que está cada vez mais difícil de combater e ilustra como a agrociência, em que pesem todos os seus avanços tecnológicos, continua à mercê da natureza. Inclusive ao desenvolver suas ferramentas mais sofisticadas – uma das quais foi descoberta, por acaso, em volta de uma fábrica de agrotóxico.