Os romanos absorveram a mitologia e muitos dos ideais helenos depois que conquistaram todo o Mar Egeu. E ajudaram a preservar a cultura grega para o futuro.
Texto: Agência Fronteira | Edição de Arte: Juliana Vidigal | Design: Andy Faria | Ilustrações: Caco Neves
Com a morte de Alexandre, em 323 a.C., o Império Macedônico foi fatiado em seis pedaços. Seus comandantes entraram em conflito e, por décadas, a região viveu batalhas pelo poder entre si e contra inimigos externos. Mas, mesmo em meio às guerras, muitas cidades gregas continuavam a florescer. O domínio militar helênico estava no fim, mas o legado cultural já estava espalhado por grande parte da Europa, norte da África, Oriente Médio e Ásia. Era o início do período helenístico, quando a influência grega na literatura, mitologia, filosofia, ciência e artes foi disseminada – e preservada até os dias de hoje.
No final do século
3 a.C., a Macedônia e duas novas forças dos mares Mediterrâneo e Egeu disputavam o controle do comércio naval: Roma e Cartago. Os vizinhos da Península Itálica (a famosa bota europeia) e a cidade fenícia, localizada no norte da África (atual Tunísia), vinham se enfrentando havia um século nas Guerras Púnicas. Nesse arranca-rabo da Antiguidade, os romanos também declararam guerra à Macedônia em 200 a.C. e apoiaram uma aliança de cidades gregas, a Liga Etólia, contra os sucessores de Alexandre. A Batalha de Cinoscéfalos, em 197 a.C., finalmente libertou os helenos do controle macedônico, que vigorava desde os tempos do pai de Alexandre, Filipe 2˚.
Roma estava em expansão, e a Grécia, instável. Em 146 a.C., o exército da bota finalmente superou as forças de Cartago do lendário general Aníbal – cujas avançadas táticas de guerra continuam sendo estudadas até hoje. A conquista de Cartago agregou ao Império Romano uma poderosa força naval. No mesmo ano, os romanos avançaram sobre a cidade grega de Corinto. Mais uma vitória. Por volta de 133 a.C., praticamente todas as regiões gregas no litoral do Egeu haviam se tornado províncias romanas.
A conquista do mundo helenístico acelerou transformações em Roma. Mas, em vez de tentar apagar a cultura dos conquistados, Roma decidiu agregar sua herança. A estratégia era a mesma adotada por Alexandre na Pérsia: ao incorporar as tradições dos povos dominados, os romanos promoviam a estabilidade social nas províncias. Os principais impactos foram sentidos na religião romana, transformada em uma mistura inusitada.
Do Egito veio o culto a Ísis e Osíris; da Frígia, onde hoje fica a Turquia, foram trazidos a adoração à Deusa-Mãe, os sacerdotes eunucos e as orgias selvagens. Mas foi da Grécia Antiga, de onde a aproximação geográfica já havia facilitado o intercâmbio, que vieram as principais influências. “Tal como a grega, a religião romana não possuía dogmas, sacramentos ou qualquer crença em recompensas e punições numa vida futura”, assinala o americano Edward McNall Burns no livro História da Civilização Ocidental.
Os gregos tiveram desde cedo um panteão bem estruturado. Os romanos, no entanto, adaptaram sua escalação divina várias vezes. A primeira tríade divina era formada pelo senhor do Universo, Júpiter, o deus da guerra, Marte, e o mítico fundador de Roma, Rômulo, na figura de Quirino. Dos etruscos, povo que precedeu os romanos na ocupação da Península Itálica, vieram Minerva, a deusa da sabedoria, e Juno, rainha do céu e esposa de Júpiter. Os etruscos serviram de ponte entre as culturas grega e romana. Foi assim com a própria Minerva, que era uma adaptação da deusa grega Atena.
Essa “absorção espiritual” não era uma simples coincidência. Os romanos faziam um esforço genuíno para compreender outras crenças e culturas. Esse processo ficou conhecido como interpretatio graeca – em bom latim, tradução grega –, e incluía a busca de equivalências entre os deuses romanos com os povos conquistados. Em alguns casos era óbvio, como no caso de Júpiter, que teve sua imagem modificada nos moldes de Zeus.
Em outros casos era um pouco mais complicado. Ambos deuses da guerra, Marte e Ares tinham pouca semelhança em termos de prestígio nas duas culturas. Marte era um dos pais do povo romano, enquanto Ares era uma figura relativamente menor no Olimpo. Ou seja, os romanos não copiaram a mitologia grega com xerox, como muitos pensam.
Há outra diferença significativa: na mitologia romana, o envolvimento dos deuses com humanos, ou até mesmo as batalhas envolvendo as duas espécies, conforme os relatos de Homero, eram inconcebíveis.
Ave, Grécia
Sob a tutela romana, diversas cidades gregas seguiram com grande influência na região – Atenas, afinal, existe até hoje e é a principal cidade da Grécia. No Egito, Alexandria foi um dos mais importantes polos culturais do mundo. Cientistas e pensadores foram estimulados a se mudar para lá entre os séculos 4 a.C. e 3 a.C., onde formaram uma pujante comunidade intelectual. Nesse período, nasceu a Biblioteca de Alexandria, a mais completa da Antiguidade.
O grego era o inglês da época: era a língua usada quando povos diferentes precisavam se comunicar. O faraó Ptolomeu 2˚, do Egito, por exemplo, encomendou uma tradução de antigos livros religiosos hebraicos para o grego. O trabalho permitiu que a primeira versão em grego do Antigo Testamento circulasse pela região no início do século 2 a.C., um passo fundamental para a proliferação do judaísmo e, mais tarde, do cristianismo.
Ginásios e teatros, duas construções tipicamente helênicas, também eram encontradas em cidades distantes do Egeu, como na região da Báctria (que fica entre os atuais Afeganistão, Uzbequistão e Tajiquistão). Mitos gregos também entraram para a literatura egípcia.
Talvez o maior legado deixado pela Grécia seja sua tradição filosófica. Nos últimos dois séculos da República romana, que teve fim em 27 a.C., houve um florescimento da atividade intelectual, em grande parte com inspiração grega. No entanto, duas escolas da Grécia, o epicurismo e o estoicismo, exerceram um papel crucial no desenvolvimento cultural de Roma.
Lucrécio, que viveu no século 1 a.C., mais famoso expoente romano da filosofia epicurista, escreveu Da Natureza das Coisas animado pelo desejo de explicar o Universo. Seu objetivo era libertar o homem do medo do sobrenatural, um dos obstáculos à paz de espírito, segundo o autor. Já a filosofia estoicista foi introduzida em Roma por Panécio de Rodes, e teve como adeptos inúmeros romanos influentes na vida pública, como Cícero, famoso orador e estadista do século 1 a.C.
Cícero acreditava que bastava a virtude para se atingir a felicidade, e que o mais alto bem que o homem poderia alcançar era a tranquilidade de espírito. Concebia como homem ideal aquele que, orientado pela razão, chegou à indiferença em relação à tristeza e à dor. Em seus escritos, estabeleceu a ideia de uma lei de justiça eterna, colocada acima dos estatutos e decretos do governo, produto da ordem natural das coisas que poderia ser descoberto pela razão. Essa doutrina, também herdada dos gregos, viria a influenciar consideravelmente o desenvolvimento do direito romano.
Vida greco-romana
A certa altura, havia se tornado moda entre as altas classes de Roma aprender grego e tentar replicar em latim algumas das mais populares formas da literatura helenística. Os mais notáveis resultados foram as comédias de Plauto e Terêncio, que imitaram a Comédia nova de Menandro, principal autor do gênero no drama ateniense, lido e admirado por pagãos e cristãos desde o Egito até os confins ocidentais do Império Romano.
Célebre admirador da cultura helênica, o poeta Virgílio, outro expoente do século 1 a.C., trazia em suas Églogas o ideal epicurista do prazer tranquilo – embora fosse, antes de tudo, um estoico. A mais famosa obra de Virgílio, a Eneida, é uma epopeia imperial, contando os trabalhos e os triunfos da fundação do Estado, suas tradições gloriosas, seu destino magnífico – e, segundo alguns autores, uma tentativa de estabelecer para os romanos uma descendência própria, mais distante dos gregos.
Alexandre havia se tornado uma lenda. Histórias sobre os seus feitos eram disseminadas pelo mundo todo – algumas absolutamente fantasiosas. O general romano Júlio César tinha admiração pelo imperador macedônico. Ao menos é o que conta Plutarco, que viveu no século 1.
Em seu Vidas Paralelas, compilação de biografias de homens ilustres da Grécia e de Roma, o grego afirma que Júlio César não estava satisfeito com os rumos que tomara sua carreira militar. Ao ler sobre os feitos do macedônico, caiu em lágrimas: “Não vos parece ser digno de tristeza que, na minha idade, Alexandre já era rei de tantos povos, enquanto eu ainda não consegui nenhum sucesso tão brilhante?”. Em 46 a.C., o ambicioso Júlio César se tornou ditador do Império Romano.
O período em que governou o império foi curto (ele foi assassinado no Senado Romano dois anos depois), mas suficiente para deixar marcas profundas em Roma – e para pintar seu nome na história da humanidade. Era corriqueiro que políticos romanos buscassem ajuda dos intelectuais gregos para resolver problemas. Júlio César, por exemplo, recorreu aos vizinhos do Egeu para reformar o calendário.
Criado por Rômulo na fundação de Roma, o sistema oficial era baseado nos ciclos da Lua e tinha 304 dias. Com a ajuda do astrônomo grego Sosígenes, de Alexandria, César adaptou o calendário romano para harmonizá-lo ao egípcio, baseado no Sol e com 365 dias, com um dia a mais adicionado a cada quatro anos. César também decidiu reconstruir Corinto, a cidade helena que seus conterrâneos haviam destruído cem anos antes.