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Piratas chineses: a frota pesqueira que ameaça nossa biodiversidade

Uma armada de 400 barcos vindos da China fica o ano todo pescando na América Latina. Eles desligam os transmissores, invadem áreas proibidas e devastam a população de várias espécies marinhas. São ajudados por uma frota de navios cargueiros – e, por isso, não precisam ir embora nunca.

Texto Eduardo Campos Lima e Bruno Garattoni
Ilustração Estevan SilveiraDesign Juliana Briani

Era o oitavo dia no mar. O capitão Carlos Derlando Brandão conduzia o Oceano Pesca I, com dez tripulantes, em uma jornada para pescar atum na costa do Rio Grande do Norte. Esse peixe só costuma ser encontrado em alto-mar, bem longe do litoral. Por isso, o barco tinha atravessado a zona econômica exclusiva, uma faixa de água com 360 km que pertence ao Brasil (e onde navios de outros países não podem pescar) e já estava em águas internacionais, a 600 km da costa. Tudo normal, sem sustos.

Até que às 11h30 da manhã daquele dia, 22 de novembro de 2018, Brandão foi “içar o espinhel”: puxar a rede usada para pegar atum. Avistou um pesqueiro chinês, o que não era incomum naquela região. Mas estranhou sua aproximação exagerada – e percebeu que os tripulantes no convés faziam gestos ameaçadores. “Eles chegaram muito perto de nós e jogaram parafusos no nosso barco. Faziam sinal de que iam nos afundar”, conta. Experiente, o capitão manobrou para sair da rota de colisão.

Mas o Chang Rong 4, um barco de 40 metros (o dobro do tamanho do Oceano Pesca), pertencente à empresa China National Fisheries Corporation, não desistiu. Abalroou o navio brasileiro, fazendo dois furos em seu casco, e passou 40 minutos tentando terminar o serviço – e afundar o Oceano Pesca I.

“Só conseguimos trazer o barco de volta para o porto porque ele era novo e feito de aço. A maior parte da frota brasileira de pesca de atum é de madeira e tem certa idade, ou seja, teria afundado”, diz o capitão. O Oceano Pesca e sua tripulação sobreviveram, não sem traumas – um marinheiro recém-contratado desistiu da profissão depois daquele dia. “Eu ainda fico muito nervoso. Quando vejo que tem barco chinês por perto, saio da área”, conta Brandão.

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Conflitos como esse (que foi causado, aparentemente, porque as redes de pesca dos chineses e dos brasileiros se engancharam) são cada vez mais comuns na América do Sul: onde uma frota de 400 barcos chineses passa o ano todo pescando atum, polvo, lula, tubarão, arraia, merluza, moluscos e outras espécies, muitas vezes de forma predatória e ilegal. Além dos chineses, há embarcações taiwanesas, coreanas e algumas espanholas e portuguesas. No total, são cerca de 550 barcos estrangeiros pescando na região. “Há duas décadas, havia no máximo 200”, conta o argentino Milko Schvartzman, da ONG Círculo de Políticas Ambientales, que monitora a questão.

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(Ilustração: Estevan Silveira/Superinteressante)

A maioria dos pesqueiros, 70%, é chinesa. Eles têm chamado a atenção pela agressividade – e não só contra outros navios. Em julho do ano passado, o governo do Equador detectou uma armada de 260 barcos chineses bem na fronteira da sua zona econômica exclusiva. Duas semanas depois, já eram 342. Em sua maioria, adeptos da chamada “pesca de arrasto”, um método que é proibido na própria China e consiste em usar grandes redes com correntes, que descem para o fundo do mar e vão pegando tudo o que encontram, sem distinção de espécie.

Então a frota se aproximou das Ilhas Galápagos, uma área de proteção ambiental, e o massacre começou. Ao longo de um mês, a armada chinesa realizou o equivalente a 73 mil horas de pesca, devastando a população local de lulas – e deixando as focas e os tubarões, entre outras espécies locais, sem ter o que comer. Uma análise realizada pela ONG americana Oceana, que monitorou a região com  imagens de satélite, constatou que os chineses foram responsáveis por 99% de toda a pesca na região durante o período.

E tentaram fazer isso escondidos. Os barcos que navegam em águas internacionais precisam usar o Automatic Identification System (AIS), um sistema que transmite a localização e o nome do navio em tempo real. Mas os pesqueiros chineses têm o costume de desligar o AIS para ficar “invisíveis”. Na incursão em Galápagos, fizeram isso 43 vezes, segundo a Oceana. Um deles passou 17 dias consecutivos com o AIS desligado. Acredita-se que estivesse realizando outra prática questionável: a transferência de carga.

Ao contrário dos pesqueiros tradicionais, que retornam para o porto quando estão cheios, a armada chinesa tem a capacidade de operar o ano inteiro, sem precisar voltar para casa. Isso porque ela é apoiada por navios cargueiros, que trazem combustível e mantimentos e levam embora os peixes, já congelados, para a China. Além do Equador, ela opera no Peru, no Chile, na Argentina e no Brasil [veja quadro abaixo].

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A frota chinesa é a maior do mundo – e grande parte dela atua predatoriamente em outros continentes, em situações parecidas com a de Galápagos. Um estudo publicado pela ONG inglesa Overseas Development Institute estima que a “frota de águas distantes” da China seja composta por quase 17 mil barcos, cinco vezes mais do que se acreditava anteriormente.

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(Design: Juliana Briani/Superinteressante)

A prática de ir pescar em outros países, bem longe de casa, surgiu nos anos 1980. Naquele momento, a sobrepesca no Hemisfério Norte levou os estoques das espécies mais procuradas ao limite, e os governos da Europa e dos EUA começaram a impor regulações mais restritivas à indústria pesqueira. Alguns anos depois, a mesma coisa aconteceu na Ásia. “Mas a capacidade de pesca de vários países continuou a crescer. Então eles decidem subsidiar suas frotas, que  passam a atuar nas costas da África, na Polinésia e na América do Sul, onde há pouca fiscalização”, diz Schvartzman. Hoje, a China é responsável por 38% da chamada “pesca em águas distantes”, segundo estimativa da ONG Global Fishing Watch. É seguida por Taiwan (21,5%), pelo Japão (10%), Espanha e EUA (9,9% cada).

Alguns desses navios usam mão de obra barata – ou semiescrava. Os navios chineses costumam empregar trabalhadores indonésios, filipinos ou de países africanos. O recrutamento muitas vezes envolve falsas promessas, como a de que o trabalho será em um cruzeiro. Em 2014, um grupo de 28 africanos, quatro de Gana e 24 de Serra Leoa, desceu de um barco chinês em Montevidéu (porto sul-americano onde navios chineses costumam atracar quando é absolutamente necessário) e se recusou a voltar.

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Eles estavam havia seis meses no navio e não tinham recebido o salário prometido, de US$ 500 mensais. Sua alimentação resumia-se a um prato de arroz diário. Eles também disseram que trabalhavam acorrentados dentro do barco e eram espancados com frequência. Alguns estavam com tuberculose. “Em vários desses barcos, o capitão usa armas e cães para controlar a tripulação”, diz Schvartzman. Frequentemente, segundo ele, navios chineses descarregam o cadáver de algum marinheiro no porto de Montevidéu. Às vezes, no entanto, o tratamento dado aos mortos é ainda pior.

Em julho do ano passado, a polícia indonésia prendeu seis diretores de agências de emprego, que haviam fornecido 22 trabalhadores do país para dois pesqueiros chineses. Os barcos deixaram a Ásia em dezembro de 2019 para pescar lula na Argentina. Em julho, ao regressarem para a Indonésia, a polícia os parou para uma investigação, motivada por uma denúncia. Foi quando os agentes descobriram o corpo de Hasan Afriandi, um indonésio de 20 anos que falecera a bordo, congelado em um freezer. A investigação descobriu que os corpos de três indonésios, que haviam morrido em outro navio chinês, foram simplesmente jogados ao mar.

Se a preocupação da frota pirata com sua tripulação é pequena, com o ambiente ela é nula. Os barcos chineses lançam lixo no mar, sobretudo óleo, redes de pesca e esgoto. Também ignoram os períodos de defeso, em que a pesca é proibida para que os peixes tenham tempo de se reproduzir, e caçam espécies ameaçadas de extinção.

No final de 2020, a ONG argentina Círculo de Políticas Ambientales denunciou a captura de um elefante-marinho da Patagônia por um navio chinês (uma embarcação, aliás, que já havia deixado os cadáveres de dois tripulantes no porto de Montevidéu). As imagens de um marinheiro içando pela extremidade do dorso o animal, que ainda era jovem, chocaram ambientalistas ao redor do mundo.

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A frota pirata também causa danos econômicos. Veja o caso da Argentina, por exemplo. Ela tem um setor pesqueiro importante, que responde por 3,4% do PIB do país. Entre janeiro de 2018 e abril de 2021, segundo a ONG Global Fishing Watch, 145 navios argentinos pescaram por 9.269 horas nas águas do país. Nesse mesmo período, 400 embarcações chinesas passaram por lá – e realizaram mais de 600 mil horas de atividade pesqueira.

No Chile, dois terços das espécies pescadas são exploradas de forma insustentável – em grande parte devido à pesca ilegal, inclusive a chinesa, com a qual o país perde US$ 300 milhões anuais. No Peru, a produtividade média dos barcos pesqueiros caiu 70% em cinco anos – pois os chineses capturam boa parte das 300 mil toneladas de lula-gigante pescadas anualmente. “Isso significa cerca de US$ 500 milhões”, diz Alfonso Miranda, diretor da Calamasur, uma associação de empresas de pesca locais.

Sob pressão dessa entidade e de outras associações empresariais, o governo peruano decidiu agir. Agora, as embarcações estrangeiras que atracarem em portos do país são obrigadas a instalar dispositivos de rastreamento via satélite que possam ser monitorados pelas autoridades peruanas. “Esses barcos costumam usar os portos de Callao e Chimbote para manutenção. Com a nova regra, o país terá acesso aos dados relativos à sua navegação nos seis meses anteriores”, diz Miranda. Isso, claro, se eles não desligarem os transmissores.

Na Argentina, o governo tem anunciado avanços nas medidas de fiscalização. As perseguições de navios da guarda costeira a barcos chineses ficaram célebres sobretudo após 2016, quando o pesqueiro Lu Yan Yuan Yu 010 foi alvejado, após ser visto operando em águas argentinas, e afundou. Todos os tripulantes foram resgatados com vida.

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Equador, Peru, Chile, Argentina e Colômbia anunciaram, no começo deste ano, que irão trabalhar em conjunto para tentar detectar e policiar a pesca chinesa. Mas será difícil chegar a uma solução mais firme. Isso porque, para criar uma lei de controle da pesca que cobrisse todo o continente, seria necessário incluir a Inglaterra na lista de participantes – pois ela detém o controle das Ilhas Malvinas/Falklands. Mas a Argentina, que reinvindica a posse das Malvinas (e chegou a invadi-las em 1982), não quer isso. “A Argentina não aceita a eventual participação do Reino Unido como Estado costeiro. Ao mesmo tempo, não propõe nenhuma solução. Temos um vazio jurídico na região”, afirma Schvartzman.

Não por acaso, é perto da costa argentina que a frota chinesa se concentra em maior número, em uma estreita franja marítima de 600 km de extensão por 50 km de largura, capturando desenfreadamente a lula argentina – um dos principais elos da cadeia alimentar da área, predada por peixes, aves e mamíferos marinhos.

Existe alguma pressão internacional contra a pesca predatória. A União Europeia só tem comprado pescados de origem documentada, o que dificulta o trabalho dos barcos piratas. Em maio, os EUA proibiram a importação dos peixes colhidos por 32 pesqueiros chineses, que são acusados de usar trabalho escravo. No ano passado, o governo chinês reagiu anunciando a suspensão temporária da pesca em águas distantes. Isso não teve grande resultado prático (pois a interrupção, de alguns meses, coincidiu com um período em que já não se pesca lula), mas foi visto como um sinal de que a China pode estar começando a ensaiar mudanças. Em 2017, o país havia prometido limitar sua frota a 3 mil barcos até 2020 – o que não ocorreu.

E o Brasil? O mercado brasileiro compra uma pequena parte das exportações pesqueiras chinesas. Pode, portanto, estar consumindo peixe e frutos do mar capturados pela frota clandestina. Perto da nossa costa, há um número menor de barcos piratas, que Milko Schvartzman estima em no máximo 100. Mas a presença deles está crescendo – sem que o Brasil consiga reagir. “Temos observado o aumento de barcos chineses. Cheguei a presenciar alguns deles dentro das águas nacionais. Já comunicamos a Marinha algumas vezes, mas em geral não dá tempo de chegar um avião ou uma corveta, pois eles fogem antes”, afirma o capitão Carlos Derlando Brandão.

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Ele se diz preocupado com o futuro. “Nós passamos alguns dias no mar pescando, voltamos ao porto e esperamos mais alguns dias até uma nova viagem. Eles pescam noite e dia, sem parar. Não é sustentável”, afirma. “A classe média chinesa enriqueceu e demanda mais peixe. É preciso uma solução de Estado antes que surja um conflito maior”, diz Schvartzman. Enquanto isso não acontece, a frota pirata deve continuar aumentando sua presença na América do Sul – deixando para trás um oceano de fome, pobreza e extinção.

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(Ilustração: Estevan Silveira/Superinteressante)

Mortos de fome
Nos últimos cinco anos, dezenas de pesqueiros norte-coreanos apareceram no Japão. Com um detalhe macabro: a tripulação estava morta.

Esses navios pesqueiros são conhecidos como “barcos fantasmas”, pois não se sabe como foram parar no Japão – já que os tripulantes estavam mortos. Acredita-se que tenham morrido de fome, após longos períodos no mar tentando pegar polvo. E isso também tem a ver com a frota pesqueira chinesa. A Coreia do Norte está sob sanções econômicas internacionais, e uma maneira de tentar compensar isso é vender licenças de pesca a navios chineses, para que eles possam operar em águas norte-coreanas. A partir de 2017, Pyongyang aumentou drasticamente o número de licenças vendidas, que subiu de 900 para 3 mil por ano. Elas rendem cerca de US$ 220 milhões anuais ao país, mas também levaram a uma exploração desenfreada, que está reduzindo as populações marinhas – e impede que os pescadores norte-coreanos consigam sobreviver. 

 

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