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Ciência

Paradoxo do avô, buracos de minhoca e o gato: entenda a ciência de Dark

Como a série alemã usou a física para construir um enredo de torrar os neurônios – e se tornou a série nerd mais relevante do século 21.

Texto: Bruno Carbinatto | Design: Juliana Krauss | Ilustração: Wendell Araujo | Edição: Bruno Vaiano

E

m maio, o site Rotten Tomatoes realizou uma votação para eleger a melhor série original da Netflix. Nomes de peso, como The Crown e Stranger Things, eram apostas seguras. Mas uma produção alemã outsider venceu o páreo: Dark. Com reviravoltas constantes, enredo complexo, enigmas que se abrem com mais frequência do que se resolvem, pitadas de filosofia e uso abundante de recursos da ficção científica, Dark foi lançada sem alarde em 2017. Em três anos, transcendeu a barreira linguística e encerrou sua terceira e última temporada sob aclamação universal.

Na trama, a cidadezinha fictícia de Winden é palco de uma intriga que envolve quatro famílias ao longo de quatro gerações. Usando um buraco de minhoca, os personagens viajam pelo tempo e descobrem que suas biografias estão amarradas em um nó cego. Nas próximas páginas, vamos mergulhar (com muitos spoilers) no ingrediente mais bem-sucedido de Dark: as referências à física do século 20. E explicar a ciência de verdade por trás da ficção.

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Einstein na área

Ele partiu deste mundo estranho um pouco antes de mim. Isso não significa nada. Para aqueles de nós que acreditam na física, a distinção entre passado, presente e futuro é só uma persistente ilusão.” Essa famosa citação – que serve de epígrafe a Dark – está nas condolências enviadas por Einstein à família de seu amigo Michele Besso, morto em 1955. Um mês depois de pôr a carta no correio, o próprio Albert se foi.

Em sua dor, Einstein resumiu de forma poética a conclusão mais estonteante da Teoria da Relatividade Especial – obra dele próprio meio século antes, em 1905: o tempo não é absoluto. O relógio gira mais devagar conforme uma coisa se move mais rápido. Nas velocidades com que lidamos no cotidiano, essa diferença é insignificante. O passageiro de um ônibus que viaja por uma hora a 60 km/h chega ao destino 0,0000051 segundo mais jovem que alguém que passou essa mesma hora parado.

Porém, conforme nos aproximamos da velocidade máxima permitida no Universo – a velocidade da luz, que é 299 mil quilômetros por segundo (km/s) –, a distorção se torna perceptível. Viaje uma hora em uma nave a 96% da velocidade da luz e, quando você voltar à Terra, quatro horas terão se passado para quem ficou no planeta.

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Em 1915, Einstein dá um passo além e publica sua teoria da gravitação, a Relatividade Geral. Ele explica ali como o espaço e o tempo, juntos, formam um palco onde se desenrolam os acontecimentos do cosmos. O Universo, então, teria quatro dimensões: as três de espaço que conhecemos e uma quarta, temporal. É um palco maleável; as coisas apoiadas nele o distorcem. Para entender, pense em um lençol esticado. Se você colocar algumas bolinhas de gude sobre o lençol, ele vai afundar um pouco sob o peso delas, mas não muito. Agora, se você colocar uma bola de boliche no lençol, ele afunda bastante – e faz todas as bolinhas de gude escorregarem em sua direção.

As bolinhas, no nosso exemplo, são como os planetas. A bolona é o Sol. E o afundamento que o Sol produz no tecido do lençol é a gravidade. Ou seja: segundo Einstein, o que gera a atração entre corpos no Universo é a deformação das três dimensões do espaço ao seu redor. O problema é que o tempo também faz parte do tecido, lembra? Isso significa que o relógio também passa mais devagar – que o tempo também dilata – sob influência da gravidade. Na vizinhança de objetos maciços como buracos negros ou estrelas de nêutrons, meras horas podem equivaler a anos aqui na Terra.

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Viagens no tempo

A

 explicação acima demonstra que viajar para o futuro é possível. Basta afundar o pé em uma nave rápida o suficiente, ou ficar um tempinho na vizinhança de um buraco negro, que o ano 2100 estará lá, esperando por você (em Dark, várias viagens para o futuro acontecem – parte da série se passa em um 2053 pós-apocalíptico).

Já a viagem para o passado, ainda mais comum na série alemã, é outra história. O primeiro passo é estabelecer se tal feito é possível segundo a teoria de Einstein. Nossa melhor resposta é “altamente improvável, mas ainda impossível de descartar”. Isso porque algumas soluções das equações da relatividade sugerem, sim, meios de viajar ao passado. A mais popular delas é chamada de buraco de minhoca: um túnel que serviria de atalho entre dois pontos do espaço-tempo.

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(Wendell Araujo/Superinteressante)

Para manter o túnel aberto e estável por um tempo razoável, porém, precisaríamos lançar mão de uma coisa bizarra chamada massa negativa. Imagine um objeto de -1 kg, cuja gravidade repele coisas em vez de atraí-las. Esse é um típico exemplo de piração possível em equações, mas que ninguém jamais verificou na natureza. Não, ninguém nunca detectou um buraco de minhoca. Eles são apenas uma hipótese aberta pela matemática. Buracos negros, porém, também eram – e hoje sabe-se que eles existem no mundo real.

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Uma vez aberto o buraco de minhoca – boa sorte com isso –, ainda há um passo antes de concluir a máquina do tempo: pegar uma das saídas do buraco, colocá-la em uma nave e acelerar essa nave rumo ao futuro. Lembre-se: quanto mais rápido você se desloca, mais devagar o tempo passa. Estamos de volta ao conceito mais básico da relatividade especial. Após algum tempo, as duas saídas do buraco de minhoca estariam conectando não só lugares distintos, mas tempos distintos. O buraco de minhoca de Dark liga os anos de 2019, 1986 e 1953. É um erro. Uma viagem no tempo via buraco de minhoca só pode acontecer do momento da abertura do buraco em diante. Como a abertura acontece em 1986, a ligação com 1953 não é física, é imaginação solta.

Esse é o único método de viagem no tempo plausível empregado pelos personagens de Dark. Um outro artifício, recorrente na série, envolve estabilizar uma massa preta disforme com energia elétrica, de maneira a torná-la, temporariamente, uma esfera lisa que serve de portal. A esfera é chamada pelos personagens de bóson de Higgs, ou partícula de Deus, e o material que a compõe é uma certa matéria escura.

As únicas semelhanças desse troço com a matéria escura e o bóson de Higgs do mundo real são os nomes. Matéria escura é um conceito da astronomia: um tipo de matéria cuja natureza é desconhecida, mas que deve existir porque sua influência gravitacional é verificável na rotação das galáxias. Já o bóson de Higgs é objeto de estudo da teoria quântica de campos. Ele é uma evidência de que existe algo chamado “campo de Higgs” – a coisa que confere massa às partículas de energia. Sem o campo de Higgs, você seria um raio de luz. É isso. Não tem nada a ver com viagens no tempo.

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Vai um paradoxo aí?

O

segundo problema de teorizar viagens ao passado é lidar com os paradoxos que elas podem gerar. Os mais famosos são os paradoxos de consistência, cujo exemplo mais típico é o paradoxo do avô: se eu voltar o tempo e matar meu avô, eu nunca terei nascido. Mas se eu não nasci, quem o matou? As duas primeiras temporadas de Dark ilustram de forma exemplar uma das saídas dos paradoxos de consistência, chamada princípio de autoconsistência de Novikov.

Vamos entendê-la: na série, uma criança chamada Mads desaparece em 1986 nas mãos de um certo Helge, um personagem com uma enorme cicatriz na cabeça. O irmão de Mads, Ulrich, não supera a perda. Em 2019, já um quarentão, ele viaja para 1953 e dá pedradas na cabeça de Helge, que na época é uma criança. A idéia é matá-lo antes que ele cresça e dê sumiço em Mads, em 1986. Mas as pedradas não matam Helge. Na verdade, elas criam a cicatriz que ele já tem. Na tentativa de mudar o passado, Ulrich cria o passado que já conhece. Não há livre-arbítrio. Cada frame do filme da vida já está escrito. Se você volta algumas décadas e tenta alterar os acontecimentos, acaba contribuindo para que tudo aconteça exatamente como aconteceu. Eis a autoconsistência de Novikov. 

Dark apresenta uma outra categoria de paradoxos, os de bootstrap. Na série, um livro escrito pelo personagem H. G. Tannhaus volta no tempo e chega nas mãos do próprio Tannhaus jovem, que ainda não havia escrito o livro. Ele copia e publica. Quando o livro foi escrito? Nunca. Ele sempre existiu, não precisou ser criado. 

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O mesmo se aplica à personagem Charlotte. Ela é mãe de uma menina chamada Elisabeth. Elisabeth cresce e tem uma bebê, que volta no tempo e se torna… Charlotte. A mãe deu a luz à filha, que depois dá a luz à própria mãe. Isso significa que a informação genética de nenhuma das duas jamais foi criada. O que torna os paradoxos de bootstrap malucos é que eles não violam o princípio de autoconsistência de Novikov. Você não pode matar seu avô porque isso impede seu próprio nascimento e muda o presente. Porém, nada impede você de voltar a 1830 e fornecer a Darwin a ideia da seleção natural, que ele ainda não teve, por isso não muda a história da humanidade. Pelo contrário: garante o acontecimento de algo que nós sabemos que aconteceu.

Até aqui, não dissemos que há uma outra forma, menos ortodoxa, de se resolver o paradoxo do avô: supor que, quando você mata o velhinho, surgem dois mundos – um em que isso acontece, um em que não acontece. Nas próximas linhas, você vai descobrir que essa opção, na verdade, é até plausível.

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Miau quântico

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(Wendell Araujo/Superinteressante)
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penúltimo episódio de Dark começa com uma aula sobre o gato de Schrödinger – um experimento imaginário idealizado pelo físico austríaco Erwin Schrödinger, em 1935. Esse felino, que sequer existiu, é o item mais pop e menos compreendido da física do século 20. Para entendê-lo, precisamos mergulhar no mundo das partículas subatômicas, cujo comportamento é previsto pelas equações da mecânica quântica. Ela é bem diferente da relatividade de Einstein – que só funciona no mundo das coisas grandes, como pessoas e planetas, e dá bug quando encontra algo pequenino como um elétron. Prepare-se. Nosso Universo, em escala microscópica, é um lugar bizarro. 

Vamos começar: pegue um papel e recorte dois buracos retangulares paralelos nele. Assim: II. Agora, acenda uma luz na frente do papel. A luz só vai passar onde há buracos, certo? Então, a tendência é que, na parede atrás do papel, você veja duas faixas de luz: II. Pois é, o problema é que isso não acontece. A parede lá atrás fica com várias faixas, assim: IIIII.

Tal fenômeno ocorre porque a luz é feita de ondas eletromagnéticas. Quando o feixe de ondas passa pelas fendas, se divide em dois. Ao se reencontrarem do outro lado, as ondas interferem uma na outra, gerando várias faixas em vez de apenas duas. Esse IIIII na parede é chamado pelos físicos de padrão de interferência. O experimento da dupla fenda foi realizado por Thomas Young no século 19 e confirmava as lendárias equações de Maxwell: a luz é uma onda. Até que chegou Einstein, em 1905, e concluiu irrefutavelmente que não: a luz, na verdade, é feita de partículas chamadas fótons. E aí? 

Para agonia geral, por volta de 1930 já estava claro que na verdade o comportamento da luz era meio onda, meio partícula, mas não só uma coisa ou outra. Como assim? Vamos explicar modificando o experimento de Young. Pegue um canhão de fótons (as partículas de luz) e atire um por um, ora numa fenda, ora na outra. É de se esperar que cada fóton atravesse só a fenda em que você mirou – e que, na parede lá atrás, você veja algo assim: II.

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Mas não. Os danadinhos sabem que precisam se comportar como ondas. Com o tempo, o desenho fica assim: IIIIII. Bizarro. Mas e se você tentar descobrir por qual fenda passou cada fóton – posicionando um detector exatamente na fenda? Aí eles desistem. Ao realizar uma medição, você obriga os fótons a parar de agir como ondas. Eles passam a agir como partículas. E o desenho na parede fica assim: II.  

Em 1926, o austríaco Erwin Schrödinger bolou uma equação que descreve esse jeitinho onda de ser das partículas, e que prevê experimentos práticos com muita precisão. Porém, apesar das previsões corretas, ninguém sabia de que forma a equação corresponde à realidade. O que é essa onda? Do que ela é feita? O trabalho do alemão Max Born permitiu concluir que a tal onda não é uma onda como as ondas sonoras ou as ondas do mar. Essa onda, na verdade, indica a probabilidade de se encontrar a partícula em um dado lugar. Onde ela tem picos, é onde um fóton, por exemplo, tem uns 80% de chance de estar. Onde ela tem vales, o fóton com certeza não está. 

A partir daí, surgiu a chamada interpretação de Copenhagen. A ideia é, grosso modo, a seguinte: se você tem uma caixinha com um fóton, e a equação diz que há 80% de chance dele estar no canto direito e 20% no canto esquerdo, então, quando você abrir a caixa, a tal onda colapsa e o fóton “escolhe” uma das opções – 4 em 5 vezes, óbvio, ele vai escolher o canto dos 80%. Schrödinger e Einstein consideravam essa interpretação absurda (lembra da citação “Deus não joga dados?”). Afinal, o que conta como um observador? Quais entidades têm autorização para colapsar a função de onda e obrigar o fóton a escolher? Humanos podem? Um contador de fótons, talvez? Uma bactéria, que tal? Não há critério. 

É aqui que entra o gato. Imagine o seguinte: dentro de uma caixa com um gato, há um átomo com 50% de chance de emitir radiação. Se ele emitir, um detector aciona um martelo que quebra um pote de veneno, e o gato morre. Caso contrário, o bichano vive. Faz algum sentido dizer que, até você abrir a caixa, o gato está vivo e morto ao mesmo tempo? Schrödinger sabia que não. O detector acionaria o martelo ou não mesmo que todos os humanos da Terra fossem extintos e ninguém jamais abrisse a caixa. Foi por isso que ele cunhou esse exemplo.

Schrödinger queria dizer que qualquer interação de uma partícula com outra partícula já faz a função de onda colapsar. É por isso que nós, feitos de bilhões de bilhões de bilhões de partículas, estamos sempre em um lugar determinado (e não com 80% de chance de estar um um lugar). “Desde essa época, houve amplas evidências de que o colapso da função de onda não é causado só por observadores conscientes”, escreve Christopher Baird, físico da Universidade Texas A&M. 

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Agora vem, com o perdão do trocadilho, o pulo do gato. Em 1965, o físico Hugh Everett III propôs algo diferente em sua tese de doutorado: que, na verdade, precisamos esquecer essa história de colapso da função de onda. De maneira muito resumida: quando uma partícula tem uma determinada chance de fazer algo ou não, então formam-se vários universos paralelos – linhas do tempo alternativas em que cada alternativa se concretiza. Que existe um mundo em que o gato vive e um em que ele morre. Essa é a interpretação dos Muitos Mundos, que é bem menos popular que a de Copenhagen, mas não pode ser descartada porque sua matemática é sólida.

Em Dark, o gato de Schrödinger e a interpretação dos Muitos Mundos são citadas para explicar porque vemos diferentes versões de personagens como Martha e Jonas coexistindo. Na última cena da segunda temporada, ilustrada nesta página, a realidade se divide em duas: uma em que Jonas é salvo por uma Marta de franja (a Marta original não tem franja) que provém de um Universo paralelo, e outra em que Jonas se esconde no porão e ela é impedida de salvá-lo.

É como se Jonas e Marta fossem partículas – e quando eles optam por um desfecho, o desfecho alternativo passasse a existir outro cosmos. Se Schrödinger estivesse vivo, talvez ficasse angustiado com cena: seu seu gato ilustra justamente que a mecânica quântica não faz sentido aplicada a coisas grandes, como pessoas. Dark, porém, não é ciência. É ficção científica. Das boas, por sinal. Um quebra-cabeça que você não assiste: você resolve. 

Consultamos: Cecilia Chirenti, professora da UFABC e pesquisadora da Nasa; Rodrigo Nemmen da Silva, professor do IAG-USP; Juliano César Silva Neves, pesquisador da Unicamp; Livros A Realidade Oculta e O Tecido do Cosmo, de Brian Greene.

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