A partir do tratamento de mulheres histéricas, Freud desenvolveu os pilares de uma terapia revolucionária. Também explicou que é ok ser reprimido – a alternativa seria a psicose.
Texto: Alexandre Carvalho | Edição de arte: Estúdio Nono | Design: Andy Faria | Imagens: Getty Images
Anna O. era uma garota de brilho próprio: bondosa, gente fina e com uma inteligência acima da média. Vivesse nos dias de hoje, talvez brigasse pelos direitos das minorias, fosse dos Médicos sem Fronteira ou tivesse uma banda – no mínimo, faria sucesso com um canal só dela no YouTube. Mas Anna O. foi jovem na segunda metade do século 19, em Viena, nascida e criada numa família da burguesia judaica ortodoxa – ambiente nada acolhedor para meninas fora do padrão espera-marido. Um exemplo: apegada aos livros, queixava-se de ter oportunidades medíocres de estudo, enquanto um irmão, sem a mesma vocação, tinha todo o incentivo – e os investimentos – dos pais. Para ela sobravam o bordado e o piano.
Aos 22 anos, sem nunca ter tido um namorado, amava incondicionalmente o pai e obedecia, sem entusiasmo, às ordens da mãe severa, com quem não se dava bem. Toda uma juventude que poderia ter sido plena de experiência, trancada numa mente sem via de expressão.
Essa história tinha tudo para ser só mais uma entre as de tantas vidas opacas, naquela cidade e naquela época. Mas, a partir de julho de 1880, a trajetória de Anna O. deixou de ser só mais uma. Começou quando seu pai, um rico comerciante de cereais, teve um abscesso relacionado à tuberculose e ficou de cama por quase um ano. Até que morreu.
Desde os primeiros sintomas dessa doença, Anna O. instalou-se ao lado do pai, dia e noite. Estava obstinada em ser a melhor enfermeira que alguém pudesse ter. Mas, à medida que o estado dele só piorava, a filha foi tomando consciência da realidade dos fatos: a única pessoa que ela amava estava indo embora.
Foi justamente nesse período de agravamento da situação que começaram a surgir em Anna sintomas tão estranhos quanto inexplicáveis. Primeiro, foi uma tosse nervosa, sem motivo físico. Depois a moça ficou estrábica de uma hora para outra. E daí em diante só piorou, a ponto de a afastarem de perto do pai: paralisias no braço e na perna do lado direito, insensibilidade no cotovelo, estreitamento da visão (em um buquê de flores, só enxergava uma flor de cada vez). Também começou a repudiar qualquer alimento, mesmo sentindo fome, e a ter episódios de fúria e alucinações (via serpentes negras no lugar dos cabelos). Chegou ao extremo de esquecer a própria língua (durante um período, essa menina austríaca só conseguia se expressar em inglês). Também tentou o suicídio.
Outra família talvez tivesse trancado Anna O. num manicômio, que era o que a maioria fazia nessas condições, mas a dela decidiu apostar nos cuidados do fisiologista Josef Breuer (1842-1925). Uma decisão acertada. O médico logo reparou que a paciente tinha apagões ao longo do dia, quando parecia estar em outro mundo. E que, nesse estado, ela pronunciava palavras soltas de quando em quando, como se fizessem parte de uma história que Anna estivesse contando a si mesma. Até que, num desses apagões, alguém por perto mencionou, totalmente por acaso, uma das palavras que ela tinha dito.
Ao ouvir o som da palavra sendo repetida, Anna O. imediatamente começou a contar uma história, a história que continha aquela palavra – uma narrativa que, até então, estava apenas nos seus pensamentos. E o mais incrível: conforme falava, alguns de seus sintomas diminuíam, e ela parecia ir se acalmando… até que despertou do apagão, num estado muito melhor.
Breuer, claro, foi alertado. Então, para aprimorar esse sistema e conseguir provocar as narrativas a qualquer momento, o médico começou a hipnotizá-la. No meio dos transes, pedia novas histórias, e solicitava também que ela falasse sobre situações do dia anterior que a teriam perturbado. A conexão entre a melhora da garota e o falatório ficou tão evidente que, se numa determinada noite não houvesse sessão de hipnose, Anna O. precisava falar o dobro do tempo com Breuer na manhã seguinte para conseguir melhorar.
A sensação do médico era de que, nessas sessões, a paciente conseguia descarregar todas as angústias que ia acumulando ao longo do dia. (Como se um computador cheio de vírus precisasse ser formatado uma vez por dia para funcionar direito.) E a própria Anna O. teve essa impressão. Em seus momentos de lucidez, que iam aumentando cada vez mais, reconheceu que melhorava graças ao processo. Ainda se expressando em inglês, ela mesma batizou o tratamento de talking cure – cura pela fala –, associando essa descarga de emoções negativas a uma chimney sweeping – limpeza de chaminé.
Um pouco mais adiante, Breuer decidiu pedir, durante a hipnose, que Anna O. falasse também sobre as emoções que tivera na época em que os sintomas começaram. E ficou espantado quando, por causa de uma fala a respeito desse período, um dos transtornos sumiu – justo um associado à história que ela contou. Foi o seguinte: Anna O., durante um tempo, sentia repulsa a qualquer tipo de líquido. Mesmo passando sede, só conseguia ingerir a água presente em alimentos, como nos melões. Isso durou até esse dia em que, sob hipnose, falou ao médico sobre uma dama de companhia, uma mulher de quem não gostava. Contou especificamente de uma ocasião em que, morrendo de nojo, viu o cachorrinho dessa empregada bebendo água direto de um copo. Ao descrever a lembrança, ainda hipnotizada, acabou pedindo a Breuer um pouco de água, e despertou do transe em meio aos goles. Mal acreditou que estava bebendo de novo, agora sem nojo nenhum. Estava curada – pelo menos desse problema.
O fisiologista imediatamente percebeu a relação de causa e efeito: a descrição de uma emoção incômoda, antiga, que não era lembrada conscientemente, fez com que um sintoma fosse removido. Breuer achou tão bom que tentou de novo e de novo – voltou a pedir que ela descrevesse situações traumáticas do passado. Logo, uma contratura da perna, que tinha surgido sem motivo físico, acabou desaparecendo. E assim também médico e paciente descobriram juntos a origem da tosse nervosa: numa hipnose, Anna O. disse que o problema tinha aparecido do nada quando, ainda na época em que cuidava do pai, ela ouviu música dançante numa casa vizinha. Naquele momento, a moça tinha desejado, ainda que só por um instante, também estar naquela festa – em vez de trancada em casa cuidando de um doente. Constatou então que a tosse voltava sempre que ouvia qualquer música mais agitada: uma autocensura pelo desejo impróprio. Relatada a situação original desse sentimento de culpa, a tosse desapareceu.
“A partir dessas descobertas – de que os fenômenos em Anna O. desapareciam logo que o episódio que provocara o sintoma era reproduzido na hipnose –, desenvolveu-se um procedimento técnico terapêutico”, explica o próprio Josef Breuer no livro Estudos sobre a Histeria (1895), que contava essa história pioneira de tratamento pela fala e do qual foi coautor ao lado de um amigo neurologista: Sigmund Freud. Dos tratamentos de oito mulheres descritos na obra pelos dois médicos, o de Anna O. – todas aparecem com nomes fictícios para preservar a identidade das pacientes – é o de maior importância histórica.
Estava ali, na catarse pela fala transformada em processo terapêutico, a gênese da psicanálise – termo que só surgiria um ano depois da publicação do livro. A grande invenção de Freud é uma adaptação confessa da descoberta do colega fisiologista – Josef Breuer, um nome que a maioria das pessoas que passam por sessões de psicanálise ignora.
Histeria
Anna O. era uma histérica. Mas não pense na ideia que fazemos hoje em dia de pessoa histérica, gente com reações descontroladas e irracionais por coisas à toa – como a criança que se joga no chão e tem um “ataque histérico” na loja do shopping, porque os pais lhe negam um brinquedo, ou a pessoa que grita como se fosse morrer por ter visto uma barata. O conceito de histeria no século 19 era outra coisa – e coisa de mulher. Pelo menos era o que se pensava na época.
A palavra “histeria” vem do termo grego hystera, que significa “útero”. Essa ideia veio da Antiguidade: o grego Hipócrates, considerado o “pai da medicina”, achava que a histeria era uma doença orgânica, provocada por uma circulação irregular do sangue, saindo do útero da mulher e indo para o cérebro. Ou seja, os homens estariam imunes, claro. Já nos tempos de Freud, era considerada histérica a pessoa – geralmente mulheres, mas não só elas – que tinha quadros clínicos variados sem um motivo físico aparente – como as paralisias de Anna O. Valiam também algum tipo de cegueira, um problema respiratório, vertigens, desmaios etc. Era um diagnóstico tão vago quanto o de “virose” hoje em dia, mas mais perigoso: qualquer probleminha que um médico fosse incapaz de identificar – o que acontecia muito naqueles tempos – podia render uma internação forçada em hospitais e manicômios, levando mulheres sadias ao encarceramento.
Naquela época, a medicina caracterizava uma doença pelo tipo de lesão que a provocava – e podia ser lesão no cérebro também, o que geralmente era a primeira suposição dos médicos quando esbarravam num transtorno mental. Sem lesão, sem doença. Daí o fato de muitos especialistas acharem que as histéricas eram mentirosas, que fingiam seus problemas – o que não era o caso – para chamar atenção dos outros. Outros doutores simplesmente se viam impotentes diante de um quadro clínico que não conseguiam explicar.
A Viena de um século e meio atrás era o cenário perfeito para a histeria, por todo um aspecto cultural que se encaixava nessas manifestações. Diferentemente dos dias de hoje, quando as pessoas têm ansiedades pela combinação indigesta entre vazio existencial e excesso – de comunicação, de exposição, de entretenimento, de informações –, no século 19 as pessoas eram muito reprimidas, tanto na sua sexualidade quanto na sua liberdade de expressão. E a coisa era muito pior para as mulheres. Inclusive para as da burguesia, porque um sinal de status econômico do vienense era justamente ter mulheres ociosas. Sim, se o maridão mantinha uma esposa e filhas olhando para o teto em casa, sem nada para fazer, isso significava que ele podia pagar quem fizesse: a criadagem.
Dessa situação de cidadã de segunda classe, figurante da personalidade do marido, obediente e quietinha no seu canto, reprimida em todos os seus desejos, é que vinha esse distúrbio: um transtorno na mente que se desenvolve em sintomas físicos e psíquicos, mas sem causa orgânica. “Para exprimir sua aspiração à liberdade, as mulheres não tinham outro recurso senão a exibição de um corpo atormentado”, afirmou a historiadora e psicanalista francesa Elisabeth Roudinesco, biógrafa de Freud.
Acha que é frescura? Tente passar uma semana, um mês, um ano da sua vida dentro de casa… sem TV nem internet. A história da psicanálise começa justamente com Sigmund Freud levando a sério a “frescura” dessas mulheres reprimidas, e encontrando ferramentas para tratá-las. Mas ele só começou a achar que isso fosse possível depois que conheceu o trabalho de um médico francês genial, descobridor do aneurisma e das causas das hemorragias cerebrais: o neurologista Jean-Martin Charcot (1825-1893).
Psicossomáticas
Charcot chamou atenção no Hospital Salpêtrière, em Paris, por fazer demonstrações com pessoas histéricas sob efeito de hipnose. Durante o transe, ele conseguia remover completamente o sintoma do paciente: fazia alguém com paralisia nas pernas voltar a andar, ou um suposto cego enxergar novamente. Mas ele não curava a histeria – passado o transe, os sintomas voltavam.
O importante dessas experiências é que Charcot conseguiu comprovar hipóteses fundamentais para que os transtornos viessem a ter um tratamento adequado no futuro. Ele provou ao mesmo tempo que a histeria não era caso de possessão demoníaca, como acreditavam os medievais, nem era provocada por uma lesão física – não há hipnose que faça um paralítico andar ou um cego voltar a ver. (De quebra, ele ainda expôs à comunidade médica que homens também podiam ser histéricos, para a revolta de muitos colegas.)
O que existia por trás do sofrimento dessas pacientes só podia ser uma doença de caráter neurótico: um conflito mental que algum mecanismo misterioso transformava em problema físico. E isso fascinou um dos ouvintes mais atentos das apresentações de Charcot no Salpêtrière. Freud, óbvio – que passou uma temporada em Paris para buscar os insights que não encontrava entre a classe médica vienense.
A identificação de Freud com Charcot foi imediata. No ápice de sua fama, o cientista francês foi chamado de “Napoleão das neuroses”, já que era uma autoridade em alterações patológicas do organismo com origem psíquica – no conceito que se fez das neuroses naquela época, além da histeria, encaixaram-se o comportamento obsessivo e as fobias… sempre transtornos relacionados com ansiedade.
Charcot, aliás, foi acusado de falta de ética por atentar contra a dignidade dos pacientes nessas apresentações. E os acusadores tinham razão: o francês não estava tratando a histeria das pessoas, apenas usando-as como cobaias para provar suas teorias. Para Freud, no entanto, isso pouco importava. As palestras de Charcot haviam fornecido uma iluminação: se a hipnose, que causa uma alteração no estado de vigília, permitia que um médico eliminasse sintomas histéricos, é porque esses problemas têm origem numa outra parte da mente, muito além da nossa consciência. Sinal de que, além de uma realidade material, palpável, com a qual a gente lida racionalmente, existe uma realidade psíquica fora do nosso alcance.
Você já viu aqui que a morada dessa outra realidade é o inconsciente. Restava a Freud descobrir como acessá-lo. Até que a experiência de Josef Breuer com a histérica Anna O. abriu uma porta que jamais seria fechada.