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Pulsão de morte – Você contra a sociedade

Para Freud, estamos condenados à infelicidade por viver numa cultura que reprime nossos impulsos primitivos, capazes do suicídio ou de explodir o planeta. É o que ele chamou de “mal-estar na civilização”.

Texto: Alexandre Carvalho | Edição de arte: Estúdio Nono | Design: Andy Faria | Imagens: Getty Images


O ano era 1932. Albert Einstein (1879-1955) foi convidado pela recém-criada Comissão Permanente de Letras e Artes da Liga das Nações para debater com um interlocutor escolhido por ele sobre algum tema de interesse geral do planeta. O físico quis tratar das razões que levam os países a conflitos armados e escolheu Sigmund Freud para trocar cartas sobre o assunto. Falar a respeito da paz mundial, aliás, fazia todo o sentido na época – não era só papo-furado de Miss Universo. A Primeira Guerra, aquela que os mais otimistas achavam que seria “a guerra para acabar com todas as guerras” havia terminado só 14 anos antes, deixando cerca de 18 milhões de mortos. Naquele mesmo 1932, o Partido Nazista elegeria 230 deputados e se tornaria o segundo com maior representação no Parlamento alemão. No começo do ano seguinte, Hitler se tornaria chanceler da Alemanha.

Foi nesse cenário de ódio e instabilidade internacional que Einstein – pacifista declarado – tomou a iniciativa de escrever para Freud. O teor da mensagem era justamente um pedido de “esclarecimento psicológico” sobre o que seria possível fazer a favor da paz. Mas a resposta não foi bem o que o físico esperava. “Vigora no homem uma necessidade de odiar e aniquilar”, escreveu Freud. “Tal predisposição, em tempos normais, apresenta-se em estado latente e só vem à tona no anormal. Mas ela pode ser despertada com uma relativa facilidade e se intensificar em psicose de massa.”

Diante de uma declaração que mais parecia argumentar a favor da guerra – como uma extensão inevitável da natureza humana –, o pai da relatividade pediu mais explicações ao pai da psicanálise. A nova resposta veio, então, em forma de um manifesto político, intitulado Warum Krieg? (“Por que a guerra?”).

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Nesse texto, bem mais extenso do que a carta de três páginas com que Einstein tinha começado o debate, Freud não chegou a negar o que já havia dito, pelo contrário: “Não há perspectiva de abolir as tendências agressivas do ser humano”. O que passa perto de ser otimista na carta de Sigmund Freud a Albert Einstein é justamente a ideia que, se temos uma energia mental voltada à destruição, ela tem uma contrapartida que busca a autoconservação e a união dos povos. Para Freud, um caminho possível para se evitar a guerra, então, passaria por manter internalizada essa energia destrutiva e dar espaço para que as pessoas externem um impulso que ele associou a Eros, o deus do amor. Quando estamos na base do All You Need is Love, formamos laços emocionais com as pessoas e desenvolvemos a empatia, dois importantes antídotos contra a guerra.

Freud diz ainda que o desenvolvimento da cultura ou da civilização, ao colocar obstáculos aos nossos impulsos destrutivos – afinal, não dá para viver em sociedade sendo um cão raivoso o tempo todo –, é o que dá melhor resultado na prevenção de grandes conflitos. Até que conclui a carta torcendo para que, num futuro indeterminado, diversas circunstâncias contribuam para o fim definitivo das guerras entre países – ainda que, pelo tom, dê para perceber que ele mesmo não acredite muito nisso.

“Quanto tempo teremos de esperar até que os outros também se tornem pacifistas? Não há como dizer, mas pode ser uma esperança utópica que a influência desses dois fatores, da atitude cultural e do justificado medo das consequências de uma guerra futura, venha a terminar com as guerras num tempo não muito distante. Por quais meios ou rodeios, não chego a perceber.”

Essas passagens na carta de Freud sobre pulsões amorosas e destruidoras, e a vida em sociedade agindo contra os impulsos que existem no inconsciente de cada indivíduo, são uma extensão das teorias que, na época, ele já tinha explicado em duas obras: Além do Princípio do Prazer (1920) e seu maior best-seller, O Mal-Estar na Civilização (1930).

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Neste último, aliás, Freud faz menção ao antissemitismo nazista que culminaria na Segunda Guerra, nove anos depois, e seria a razão pela qual ele seria obrigado, quase no fim da vida, a deixar Viena em busca de um abrigo seguro em Londres, distante da polícia política de Hitler. “O Diabo seria o melhor expediente para desculpar Deus, teria a mesma função de descarga que têm os judeus no mundo do ideal ariano.”

Mas vamos começar essa investigação das origens do ódio, segundo Sigmund Freud, pelas energias conflitantes que respondem pelos nossos ímpetos de fazer amor e fazer chacinas – às vezes, ao mesmo tempo. As pulsões de vida e de morte.

Pulsão de vida

Como o próprio nome diz, é um impulso do bem. A pulsão de vida pode ser representada pelas ligações amorosas que estabelecemos com outras pessoas e conosco mesmo. A ideia, derivada das teorias da sexualidade de Freud, é unir para construir: fazer ligações para constituir unidades cada vez maiores e mantê-las. Ter filhos e cuidar desses descendentes, que você precisa ver sempre saudáveis e com boas notas na escola, faz todo o sentido. Mas é só um exemplo. No extremo do pensamento freudiano, um corpo multiplica suas células e as une para manter um organismo vivo graças à energia orgânica da pulsão de vida.

Essa pulsão traz em si impulsos eróticos e de autoconservação. Foi por causa dos primeiros que Freud relacionou a pulsão de vida à figura de Eros, o deus grego do amor. Já quando você tem impulsos voltados a se desviar de perigos – reais ou imaginários –, é a sua pulsão de vida trabalhando para salvar a sua pele.

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Pulsão de morte

Freud percebeu, ao longo de sua prática clínica, que muita gente gosta de repetir experiências dolorosas – pessoas que toda hora se colocam em situações nas quais, elas sabem, vão acabar se dando mal. Uma mulher que só escolhe namorados cafajestes – vai trocando de companheiro, mas sempre acaba traída e sofrendo. Ou um homem que se envolve nos piores empreendimentos do mundo, negócios que não podem dar certo… Parecia a Freud que as pessoas gostam de dar murro em ponta de faca – procuram irracionalmente repetir uma vivência negativa.

O pai da psicanálise identificou nesse comportamento uma compulsão à repetição, que sobrepuja o princípio do prazer. Freud logo relacionou essa vontade irresistível com uma tendência autodestrutiva do ser humano. E foi aí que passou a teorizar aquilo a que chamou de pulsão de morte. Ele concluiu que as pulsões orgânicas são voltadas para o restabelecimento de algo anterior – para uma repetição. “Seria contrário à natureza conservadora das pulsões que o objetivo de vida fosse um estado nunca antes alcançado”, escreveu em Além do Princípio do Prazer. “Terá de ser, isto sim, um velho estado inicial, que o vivente abandonou certa vez e ao qual ele se esforça por voltar.”

A partir desse raciocínio, Freud constatou que o ponto mais radical do retorno a experiências anteriores é aquele lá atrás, no qual ainda nem estávamos vivos, já que “o inanimado existia antes do vivente”. A primeira pressão das nossas pulsões como seres vivos teria sido uma volta a esse estado de inércia. Uma marcha à ré da vida para a ausência de vida: uma pulsão de morte.

De certa forma, esse impulso é uma revolta do nosso organismo a toda a tensão do dia a dia. É ambicionar um estado do corpo e da mente sem ansiedades, sem pressões, sem nada. Um paraíso sem segundas-feiras, sem ter de pagar o seguro do carro, sem reclamações do cônjuge… Quem nunca pensou nisso? A pulsão de morte está por trás da prática de esportes radicais, de gente que dirige a 180 por hora nas rodovias, de pessoas que gostam de desafiar a polícia. Só não nos matamos porque o id que leva à satisfação desses impulsos vive em conflito com as censuras do superego. Quando o id de alguém com pulsão de morte está dominando a mente, é a hora em que a pessoa brinca de roleta-russa.

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<strong>“Vigora no homem uma necessidade de odiar e aniquilar. Ela pode ser despertada e se intensificar em psicose de massa.”</strong>
“Vigora no homem uma necessidade de odiar e aniquilar. Ela pode ser despertada e se intensificar em psicose de massa.” (Hulton Archive/Getty Images)

Mas não é só contra nós mesmos que a pulsão de morte age. Assim como ela contempla um impulso de autodestruição, ela pode deslocar sua energia para o exterior, transformando-a em agressividade e destruição. É quando nosso ego empurra a pulsão de morte para fora de si graças à influência do que a nossa mente tem de narcisista, desviando esse impulso para outra coisa ou alguém – afinal, quando é você mesmo quem está no alto do pódio dos seus afetos, é preferível que outro seja exterminado no seu lugar.

No campo das perversões sexuais, de que Freud tanto se ocupa, um masoquista atenderia a uma pulsão de morte autodestrutiva, enquanto um sádico estaria satisfazendo uma pulsão de morte destrutiva. No ambiente de trabalho, uma pulsão autodestrutiva leva a interromper o chefe a todo momento numa reunião – comportamento suicida do ponto de vista dos holerites –, enquanto uma pulsão destrutiva leva à sabotagem do projeto de um colega.

Já a guerra é um coquetel fatal, porque une os dois lados da pulsão de morte: você ataca sabendo que vai ser atacado, misturando impulsos autodestrutivos com agressivos. Daí Freud entender que a guerra, a iniciativa mais estúpida do ser humano, é quase inevitável – por ser uma válvula de escape perfeita de pulsões permanentes, que um dia poderão levar a existência na Terra àquele estado anterior à vida. O nada absoluto. Tente provocar um país com arsenal nuclear para ver no que dá.

Assim como no id, ego e superego, as pulsões de vida e de morte estariam em constante conflito na nossa mente. Peguemos o sadismo, por exemplo – e pense em sadismo para além da fantasia de sexo não convencional, com chicotinhos e beliscões nos mamilos; ou seja, quando você tem algum prazer, mesmo inconsciente, em fazer alguém sofrer. O ato sádico seria uma pulsão de morte, autodestrutiva, que a sua pulsão de vida, voltada à autoconservação, desviou para um objeto externo – possivelmente o coitado do seu irmão caçula. Já num salto de paraquedas, há o gostinho de flertar com a morte, refreado por um impulso de vida que o leva a abrir a bolsa com o equipamento até antes da hora indicada pelo instrutor.

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A Origem das Vontades

Pulsão é um impulso interno, a carga de energia que nos faz levantar da cama pela manhã, procurar comida, um beijo ou uma transa para começar bem o dia; que nos faz chutar uma bola e escrever textão no Facebook.

Está na origem da atividade motora do organismo e do funcionamento mental do ser humano. E – isso é importante – está no nosso inconsciente, o que torna a coisa toda difícil de controlar – não é à toa que falamos nas dificuldades de “dominar nossos impulsos”. As pulsões, para Freud, podem ser de vida e de morte. Mas, independentemente da sua natureza, têm quatro características básicas. São as seguintes:

• Sua fonte é o nosso próprio corpo
Uma pulsão é a vontade do nosso organismo exigindo uma resposta da mente.

• Pressão constante
A pulsão exerce uma excitação que nunca termina. Repare na diferença entre a pulsão e a necessidade. Se você tem sede, bebe um copo de água, e essa necessidade acaba. Já a pulsão é uma busca eterna por gratificação – ela não tem fim. Se você tem uma pulsão relacionada a ser amado, por mais que receba declarações da sua alma gêmea nas mídias sociais, a pulsão permanece – ela nunca é completamente satisfeita.

Ou seja, é um desejo que vai além da mera necessidade. Um bebê pode sugar o leite da mãe porque tem a necessidade de alimento, mas pede a chupeta – ou o peito de novo – movido por uma pulsão, uma pressão voltada para o prazer. Troque a chupeta por um copo de cerveja, que você leva à boca 50 vezes numa noite sem ter sede, e a coisa fica mais visível.

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• Seu objetivo é encontrar satisfação
Mesmo que não vá satisfazer algo que será positivo para nós. Agredir um segurança de shopping pode acabar mal para a pessoa, mas o impulso de agressividade naquele momento estará aliviado.

• É direcionada a um objeto
Já ouviu falar em “objeto de desejo”? Mas não precisa ser um objeto físico – pode ser tanto um Jaguar quanto “virar a garota mais popular do YouTube”. O que não muda é a pressão. Um impulso consumista, por exemplo, não vai parar no Jaguar. O objeto – o carro, nesse caso – vai mudar para uma mansão em Mônaco, um jatinho particular ou uma mecha do cabelo do John Lennon (que foi leiloada em 2016 por 35 mil dólares).

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Máquina de Moer Gente

Confortos da tecnologia, avanços da medicina… Mesmo com isso, haveria mais motivos para ser infeliz do que feliz. na sociedade moderna.

Com a publicação de O Mal-Estar na Civilização, seu livro campeão de vendas e talvez o mais acessível para o público leigo, Sigmund Freud estendeu seu interesse pela mente dos indivíduos para os aspectos neuróticos de toda a sociedade. Essas novas ideias, reunidas num trabalho bastante pessimista, foram influenciadas pela experiência avassaladora da Primeira Guerra e num tempo em que o planeta enxergava o fundo do poço com a quebra da Bolsa de Nova York e a ascensão do Partido Nazista na Alemanha. O que não faltava era inspiração para que Freud apontasse seu charuto para as origens da infelicidade.

Antes, só mais uma observação sobre as diversas traduções de Freud: o título original desse livro é Das Unbehagen in der Kultur (literalmente, “O Mal-Estar na Cultura”), e suas primeiras versões para o inglês e o francês ganharam os títulos de Civilization and its Discontents (“Civilização e seus Desgostos”, numa tradução livre) e Malaise dan la Civilisation (“Mal-Estar na Civilização”). No Brasil, você encontra tanto “na Cultura” quanto “na Civilização”. Como esta última tem sido a mais usada, e Freud não diferencia muito cultura e civilização, é com ela que vamos seguir.

Continuando, então. Nesse livro, Freud diz que é mais fácil achar um venusiano montado num unicórnio que um ser humano feliz de verdade num centro urbano. Bom, ele não usa essas palavras exatas, mas é isso o que ele quer dizer. Por conta de todas as circunstâncias da nossa vida, os objetivos do princípio do prazer e de evitar a dor não são atingidos, a não ser temporariamente. “Aquilo que chamamos ‘felicidade’, no sentido mais estrito, vem da satisfação repentina de necessidades altamente represadas, e por sua natureza é possível apenas como fenômeno episódico.”

Já no outro lado da moeda, a infelicidade tem três caminhos muito eficazes para se instalar nos nossos corações e mentes: os sofrimentos do corpo (a doença, o envelhecimento), a hostilidade do mundo externo (no passado, grandes predadores; no presente, todas as desgraças que você lê no noticiário) e as relações humanas em todo o seu potencial de frustração (como as redes sociais deixam bem claro).

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Segundo Freud, isso é tão óbvio para o indivíduo que a maioria desiste da felicidade utópica e concentra seus esforços na redução de danos, quer dizer, dos sofrimentos. E isso acontece pelas seguintes vias: a neurose, a intoxicação – vamos beber para esquecer – e a psicose. Ou pela religião também, que reúne um pouco de cada uma dessas saídas, rebaixando o status da vida na Terra, fazendo com que a pessoa troque o raciocínio pela fé e também propondo um mundo de fantasia, onde tudo é dogma, em substituição às incertezas do mundo real. “A este preço, pela veemente fixação de um infantilismo psíquico e inserção num delírio de massa, a religião consegue poupar a muitos homens a neurose individual. Mas pouco mais que isso”, afirma.

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Daqueles três caminhos para a infelicidade, Freud coloca seu foco na insatisfação que vem das relações humanas – mais especificamente no âmbito da formação da civilização. Ao combinar suas teorias do inconsciente com teses sociais, o pai da psicanálise lança aqui mais uma de suas ideias mais significativas e duradouras: a de que, por maiores que sejam os avanços tecnológicos e científicos, voltados para a melhoria da qualidade de vida da população, há uma divergência inconciliável entre a civilização que trouxe todo esse progresso e as nossas pulsões mais primitivas.

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Embora essa evolução nos tenha dado remédios contra os males do corpo, uma certa segurança contra as hostilidades do mundo externo e também uma regulamentação dos vínculos entre as pessoas, o processo civilizador exige em troca um sacrifício daquilo que temos de mais humano. A saber: sexo e violência. Por isso, é impossível ser feliz vivendo numa sociedade moderna. Nesse aspecto, as comunidades da Pré-História davam um banho na gente.

O homem é o lobo do homem

Até o ponto que é possível conhecer, não havia muita restrição cultural para o sexo entre os nossos ancestrais mais distantes. Uma pintura de cerca de 3 mil anos a.C., encontrada na Itália, descreve um homem transando com um asno. Já na Sibéria foram encontrados desenhos de homens copulando com alces. Como o surrealismo foi um movimento artístico que só surgiu milênios depois dessas imagens, tudo indica que elas representem situações que de fato aconteciam – os nossos antepassados recorrendo até a zoofilia para atender a suas pulsões.

Quanto à agressividade… bom, sem os freios da civilização, as aglomerações mais primitivas tinham um espaço e tanto para botar para fora sua pulsão de morte. Mesmo muito antes que espadas e escudos tivessem sido inventados, o indivíduo já tinha as principais ferramentas para destruir, ferir e suportar os piores golpes: seu próprio corpo.

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Como conta o jornalista Felipe van Deursen no livro 3 Mil Anos de Guerra (outra publicação da SUPER), estudos apontaram que nosso rosto é do jeito que é para aguentar socos. “Cientistas analisaram crânios de homens modernos e de australopitecos e concluíram que as partes que sofrem mais fraturas (mandíbula e as regiões próximas a olhos, nariz e bochechas) são as que desenvolveram mais resistência”, conta Van Deursen. “Ou seja, quanto mais se apanhava, mais os ossos fortes eram selecionados para serem passados adiante a cada geração, de modo a suportar mais pancadas.”

Para que sejamos cidadãos civilizados, pagadores de impostos, devemos negar as exigências mais fortes das nossas pulsões, que clamam por sexo sem-vergonha e agressão ao próximo – impulsos de vida e de morte que nos transformam nessa máquina bípede que você vê no espelho. O passo cultural decisivo seria a substituição do poder do indivíduo, “condenado como força bruta”, pelo da comunidade. E isso acontece estabelecendo limites às possibilidades de gratificação do homem – pela consolidação do Direito. Paradoxalmente, essa mesma comunidade cheia de proibições pode agir eventualmente como se fosse um indivíduo ultraviolento, atacando outros grupos em troca de territórios ou influência política. Mas nós, seres pequenininhos na nossa individualidade, não podemos.

Então, como não queremos que nossos filhos tenham de nos visitar na cadeia, nossas pulsões condenáveis buscam saída em atividades sublimadas – como ser viciado no game Grand Theft Auto em vez de sair atropelando pessoas, ou canalizar a sua energia sexual para um curso de cupcakes. “A sublimação torna possível que atividades psíquicas mais elevadas, científicas, artísticas, ideológicas, tenham papel tão significativo na vida civilizada”, afirma Freud. “É o destino imposto à pulsão pela civilização.” O problema é que essas realizações substitutas jamais conseguem o nível de satisfação do cumprimento do impulso original.

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E o ser humano, lá no fundo, sabe disso, apesar de passar a vida tentando se enganar. Assim, no caso extremo em que a pulsão de morte fala mais alto, e as censuras do superego não dão conta do cavalo selvagem do id, indivíduos se rebelam contra sua própria cultura com uma agressividade que excede bastante o nível da agressão originalmente suprimida, ameaçando a sociedade de desintegração. E o que vem em seguida pode ser um tiroteio dentro de um cinema ou um avião se chocando contra prédios cheios de civis.

Então vamos acabar nos matando?

Sigmund Freud também especula sobre como a civilização poderia controlar esses nossos demônios homicidas – para que tudo não acabe em cinzas. Ele logo rejeita a ideia de que o comunismo seria uma solução apaziguadora por reduzir o poder individual e promover um desfrute comunitário de todos os bens. “Nada mudamos no que toca às diferenças de poder ou de influência que a agressividade usa para os seus propósitos, e tampouco na sua natureza. Ela [a pulsão agressiva] não foi criada pela propriedade [privada].”

Um dos caminhos que ele aponta está no próprio conflito psíquico. A tensão entre ego e superego instala um “sentimento consciente de culpa”, manipulado pela civilização para que nem pensemos em atos condenáveis – já que nos culpamos até por pensar em coisa ruim. E a religião, segundo Freud, soube se aproveitar muito bem disso inventando um sinônimo para o sentimento de culpa: o pecado. É uma emoção que tem origem também no medo da autoridade, algo que surgiu lá na primeira infância, deslocada a partir da figura paterna, e que acaba lotando as igrejas de fiéis tementes a esse Pai, tão protetor quanto punitivo: Deus, é claro.

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