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Qualquer forma vale a pena

Mães solteiras, mulheres chefes de família, casais sem filhos... Como a humanidade está reinventando o universo dos relacionamentos – e exercendo um poder de escolha inédito na história.

Texto: Maurício Horta | Edição de Arte: Estúdio Nono | Design: Andy Faria

J

á passavam 40 minutos desde a meia-noite de 16 de junho de 1977 quando o último – e decisivo – voto aprovou no Congresso Nacional a emenda constitucional que tornava o Brasil o 128º de 133 países-membros da ONU a legalizar o divórcio. Ao ouvir um “sim”, as 1.600 pessoas que acompanhavam a votação nas galerias da Câmara gritavam pelo nome do autor da emenda, o senador Nélson Carneiro.

A votação, que começara de manhã, tinha sido incendiada por declarações como a do deputado Padre Nobre – para quem o Congresso perdia “um tempo precioso com propostas inócuas” –, a do deputado Antônio Bresolin – que chamou o divórcio de “mercado de carne humana” e “fabricação de menores abandonados” – e por uma ameaça de agresão do deputado Nina Ribeiro contra o senador Benedito Ferreira – que o chamara de “moleque, moleque, moleque”. Foi necessária a intervenção de parlamentares e funcionários para que os dois não se pegassem.

Isso não quer dizer que não houvesse separações. Casamentos podiam ser anulados diante de uma condição: se o marido descobrisse que a mulher escondeu que não era virgem antes de se casarem. Sim, isso era previsto num artigo do Código Civil de 1916, que só foi revogado em 2003. Em outras situações, um casal podia no máximo se “desquitar”, sem poder casar-se novamente.

Passados 34 anos desde a lei do divórcio, o Supremo Tribunal Federal brasileiro votou a favor do reconhecimento da união civil de homossexuais como análoga à da família. Algo tem mudado muito rápido na forma como as pessoas se relacionam afetivamente. E a razão para isso não está em nossos genes. A evolução pode influenciar tudo, mas não está sozinha.

Cada ato nosso é resultado de uma interação entre nossos genes, a anatomia do cérebro, seu estado bioquímico, a educação recebida da família, os estímulos específicos que a pessoa recebe – e a interação do indivíduo com a sociedade. E sociedades podem mudar rapidamente.
“Nos últimos cem anos, o casamento mudou mais do que nos 10 mil anteriores”, afirma Helen Fisher, “e pode mudar ainda mais nos próximos 20 anos do que nos últimos cem”.

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<strong>Uma lei de 1916 dizia que um casamento podia ser anulado se o marido descobrisse que a mulher não era virgem. Isso durou até 2003.</strong>
Uma lei de 1916 dizia que um casamento podia ser anulado se o marido descobrisse que a mulher não era virgem. Isso durou até 2003. (ilbusca/Getty Images)

Nas sociedades nômades, mulheres eram responsáveis por uma parte muito importante das provisões – os vegetais –, enquanto homens caçavam. Por conta disso e da constante mobilidade, raramente casais podiam manter mais do que dois filhos.

Uma mulher que precisasse dar de mamar a um filho não teria condições de ter outro – precisaria esperar até que sua criança tivesse idade suficiente para andar com as próprias pernas. Isso justifica por que de 15% a 50% dos bebês nascidos antes do desenvolvimento da agricultura eram mortos, segundo estudo de 1968 do antropólogo da Universidade da Califórnia Joseph Birdsell. Mesmo hoje, o infanticídio acontece entre mães sob influência do estado mental logo após o parto – razão pela qual o Código Penal brasileiro prevê ao infanticídio uma pena reduzida em relação ao homicídio.

CASAIS RURAIS E URBANOS

As relações entre homem, mulher e seus filhos mudaram muito quando passamos para sociedades agrícolas. Fixados ao solo, casais passaram a ver em batalhões de filhos homens a ajuda para produzir mais e mais no campo. Mulheres se recolheram em casa e filhas se tornaram moeda de troca para alianças entre famílias, por meio de casamentos arranjados. Isso não quer dizer que o amor tinha deixado de existir. Mas ele passou a competir com os interesses das famílias.

Quando nos mudamos para sociedades urbanas, casamentos arranjados deixaram de fazer sentido, conforme as famílias estendidas deram espaço para famílias nucleares. Filhos deixaram de ser mais um braço para ajudar na produção, e se tornaram um custo enorme – enquanto um menino de 7 anos na savana atingia certa independência dos pais, na era industrial ele apenas ingressava no longo período de educação formal, que se estende até o começo da idade adulta, no mínimo.

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Mesmo em culturas que valorizam a reprodução, como a muçulmana, as taxas de natalidade baixam tremendamente conforme sua sociedade se industrializa. É o caso do Irã – de sete filhos por mulher em 1984, caiu para 1,9 em 2006, e 1,5 na capital, Teerã. Já no Egito, a fertilidade caiu de 5,9 filhos em 1970 para 2,7 em 2010.

Com a casa esvaziada de crianças, altos gastos domésticos e uma crescente necessidade de mão de obra, principalmente em tempos de guerra, a mulher tornou-se também provedora em casa. E uma mulher capaz de sustentar a si – e a seus filhos – pode preocupar-se menos em encontrar um bom partido e mais em satisfazer-se com um grande amor. Aquele amor que não sai em busca de características desejáveis como se vasculhasse tabelas comparativas na hora de comprar um automóvel, mas que foca nossa atenção e nossos sentimentos em uma pessoa única e intransferível.

O modelo de família continua a se transformar nas sociedades industrializadas. Agora, ele não é mais único. Um casal com filhos continua sendo uma família. Mas também o são o casal sem filhos, o casal com filhos adotados, o pai divorciado com filhos, a mãe solteira – e, em uma porção de países ocidentais, também os casais homossexuais, com ou sem filhos, adotados ou biológicos.

Outro ator também chegou ao mercado do amor: a terceira idade. A industrialização aumentou não só a expectativa de vida, como também criou artifícios que estimulam o desejo e a autoestima de pessoas que já passaram da menopausa e da andropausa: reposição hormonal, medicamentos para disfunções eréteis, cosméticos, cirurgias plásticas…

São muitas as formas de amar. E elas não são incompatíveis com nossos genes. Embora eles possam influenciar nossos desejos e comportamentos, os objetivos que cultivamos como indivíduos não se resumem a reproduzir a nossa genética. Steven Pinker, por exemplo, pode ser um dos grandes nomes da psicologia evolutiva, mas sua crença na evolução não o obrigou a ter filhos.

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Pelo contrário – ele não tem filhos seus, apenas duas enteadas, filhas de sua terceira mulher. Foi o mesmo caminho que seguiram Beethoven, Brahms, Newton, Wittgenstein, Virginia Woolf e Oprah Winfrey. No Brasil, a participação de casais com filhos no Brasil caiu de 56,6% para 48,9% de 1997 para 2007, segundo o IBGE. E os solteiros totalizam 42,8% dos brasileiros acima dos 15 anos de idade.

<strong>O amor não é mais como era na savana. Agora tem influência da Igreja, do Estado, dos sites de relacionamento e das redes sociais.</strong>
O amor não é mais como era na savana. Agora tem influência da Igreja, do Estado, dos sites de relacionamento e das redes sociais. (1602/Getty Images)

Evoluímos com mais tipos de satisfações além de nos reproduzir. Temos a satisfação de subir na hierarquia social, transferindo o foco da maternidade e da paternidade para o sucesso profissional.Temos a satisfação de explorar cidades e países, deixando para mais tarde os planos de ter um relacionamento para dedicar anos de nossa vida viajando pelo mundo, sem nenhum laço que nos prenda à casa. Temos a satisfação de explorar a consciência ou a espiritualidade, dedicando-nos à meditação, ao ascetismo, ao cumprimento de dogmas religiosos.

Não somos marionetes nas mãos de nossos genes, e somos muito bons em trapaceá-los. Temos a satisfação de deixar nossa presença no mundo não só pela propagação de trechos de nosso DNA, mas também pela perpetuação de nossas melhores ideias, de nossas palavras impressas em livros, entoadas em canções, moldadas em mármore ou em pinceladas de tinta a óleo.

Nossa mente é um complexo programa com inúmeras ferramentas – recursos que nos permitem também fazer coisas para as quais não foram criadas. Os dilemas dos seres humanos não se resumem à reprodução e à sobrevivência, e incluem conflitos com atores que não existiam na savana, como o Estado, a Igreja, a escola, as empresas, os sites de relacionamento e as redes sociais.

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É verdade que não podemos ignorar completamente nossos instintos. Em alguns casos, genes derrubam utopias. É o que aconteceu com o amor livre. Por mais que movimentos sociais tenham abraçado ao longo do século 20 o “ninguém é de ninguém”, eles não puderam ignorar impulsos como a ligação e a dupla amor/ciúme. É possível que uma pessoa sinta atração por vários parceiros sexuais e nutra ligação afetiva por outros. Isso é um fato.
Mas o amor é intransferível.

MENOS CRIANÇAS

As famílias contemporâneas não querem mais saber daquelas proles do passado. Resultado: haverá menos gente no mundo.

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A transformação dos modelos das famílias passa também pela redução drástica do número de filhos. É o que demonstrou um estudo da Universidade de Washington publicado em julho na revista científica The Lancet.

Confira os principais destaques da pesquisa

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• 23 países terão suas populações reduzidas pela metade em 2100.

• 2,1 é a Taxa de fecundidade considerada ideal – dois filhos para substituir os pais (o 0,1 é para compensar uma eventual morte antes de gerar descendentes).

• 48% Deve ser a queda da população da China – hoje o país mais populoso – até 2100. De 1,3 bilhão de chineses, a projeção é de que o número caia para 732 milhões no fim do século.

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