Para Freud, um sonho é o choque entre um desejo inconsciente que quer se manifestar e uma censura que quer poupar a gente de um trauma. O resultado é arte surrealista.
Texto: Alexandre Carvalho | Edição de arte: Estúdio Nono | Design: Andy Faria | Imagens: Getty Images
Foi na casa da atriz Jane Asher, sua namorada na época, que Paul McCartney teve um sonho que entraria para a história da música pop. O ano era 1964. Em vez de sonhar que havia saído de casa pelado ou que voava sobre Liverpool – sonhos típicos, como você verá a seguir –, o beatle sonhou com uma melodia. E não qualquer melodia. Era uma música tão doce e delicada que Paul tratou de não esquecer – o que acontece com a maioria dos sonhos pouco depois que abrimos os olhos. Já que havia um piano ao lado da cama, começou a tocar e ligou o gravador.
Então, para sua surpresa, percebeu que havia sonhado com a melodia completa de uma canção. Pensou que deveria ter ouvido a música em algum lugar, mas, por mais que tentasse, não conseguia lembrar onde ou quando. No livro The Beatles – A história por trás de todas as canções, Paul recorda: “Por cerca de um mês fui atrás das pessoas no mercado musical e perguntei se já tinham ouvido a música antes. Acabou sendo como entregar algo à polícia. Achei que, se ninguém desse falta em algumas semanas, eu poderia ficar com ela”. E ficou. A melodia era original mesmo.
A música ouvida num sonho enfim ganharia letra definitiva, e Yesterday se tornaria uma das canções mais populares de todos os tempos, a mais tocada e regravada da história segundo o Guinness Book – com versões cantadas por artistas tão diferentes quanto Elvis Presley, Elis Regina, Frank Sinatra e Katy Perry.
Sigmund Freud não estranharia o fenômeno onírico que deu de bandeja a Paul McCartney sua obra mais conhecida. “Tendemos por demais a superestimar o caráter consciente da produção intelectual e artística”, ele afirmou, ainda na virada do século 19 para o 20. Segundo o pai da psicanálise, não é que os sonhos fossem uma fábrica de novidades. As ideias – sejam para canções pop, projetos de vida ou burradas colossais – vêm da labuta diária do inconsciente, cujo turno é sempre no esquema 24 horas.
Para quem estuda o assunto hoje em dia, essas afirmações de Freud fazem sentido, e a ciência já sabe que o sonho não sai jogando ideias geniais para o alto sem critério. Se você é engenheiro automotivo ou designer de joias, é muito improvável que acorde de um sonho com uma música pronta na cabeça. Talvez surja uma ótima ideia para um carro-conceito ou para um par de brincos digno de um casamento real.
“O sonho – tal como outras formas de pensamento desordenado – pode ajudar no processo de indução de uma ideia original, mas somente sobre a base firme de um grande conhecimento daquilo em que se pretende ser criativo”, explica o argentino Mariano Sigman, diretor do Human Brain Project e autor do livro A Vida Secreta da Mente. Ou seja, para sonhar com um novo tipo de rede social que vá torná-lo milionário, será preciso antes ser um gênio da programação como Mark Zuckerberg, o criador do Facebook.
Entre essas descobertas recentes da ciência, também estão detalhes sobre os mecanismos do sono, com uma especificidade que Freud não tinha como suspeitar mais de um século atrás. Por exemplo, já é possível entender como a criatividade se relaciona com o período em que estamos babando no travesseiro.
Quando você adormece, há uma primeira fase em que a consciência vai se dissipando, ativando no cérebro um processo de consolidação da memória. Já na fase seguinte, a REM (rapid eye movement, “movimento rápido dos olhos”), a atividade cerebral é mais complexa, parecida com a que temos quando estamos acordados, e é quando sonhamos. Nessa fase, são gerados padrões mais variáveis entre os neurônios, com a capacidade de recombinar circuitos existentes. Isso é o cérebro sendo criativo.
Associar o sonho com o estado REM não é novidade. Mas um estudo divulgado em abril de 2017, pela Universidade de Wiscosin-Madison, nos Estados Unidos, revelou que sonhamos também fora dessa etapa e fez uma descoberta ainda mais importante: identificou quais partes do cérebro são ativadas durante os sonhos. Isso mostrou que, para a nossa mente, sonhar tem muita semelhança com estar acordado. “Os sonhos são uma forma de consciência que acontece durante o sono”, explicou o professor de psiquiatria Giulio Tononi, autor do estudo. Um de seus experimentos, que colocou 46 voluntários para dormir, mostrou que, estando ou não o dorminhoco na fase REM, sonhos só surgem quando regiões corticais posteriores do cérebro são ativadas.
Para Sigmund Freud, mais que a criatividade capaz de surgir nas noites inquietas, interessava o papel desse processo noturno na manifestação de desejos inconscientes. Por isso, o que há de revolucionário e permanente naquele que talvez seja o livro mais importante de Freud, A Interpretação dos Sonhos, não é sua tentativa de traduzir psicanaliticamente sequências de imagens sonhadas – o que ele faz bastante ao longo da obra, diga-se –, e sim a relação que pode existir entre o sonho e a forma como a nossa mente funciona. “O sonho é a estrada real que conduz ao inconsciente”, ele escreveu.
Anotar os próprios sonhos era um dos hobbies de Freud, tanto que ele mantinha um diário com tudo o que lembrava de ter sonhado. Naquele período difícil de sua vida, em que fez autoanálise, Freud reuniu 160 sonhos para compor um livro – decisão tomada em 1897. Com a exceção de um sonho de infância, todos os outros tinham sido sonhados entre 1895 e 1899, quando ele já era quarentão. Dessa coletânea onírica, 70 foram contados por amigos e parentes – Freud evitava usar sonhos de pacientes porque achava que condições anormais da psique poderiam sabotar as interpretações.
A noção de que produzia ali uma obra magistral também o fez ver melhor, via autoanálise, o objetivo da coisa toda: o livro que o tornaria famoso era uma reação à morte recente de seu pai, o homem que um dia lhe disse, quando Sigmund era menino, que o pequeno nunca seria alguém na vida.
Do Egito Antigo à astrologia de internet
Interpretar sonhos, claro, não foi invenção de Freud. A prática de achar que o sonho significa alguma coisa, e tentar dar sentido a ele, é tão antiga quanto o Homo sapiens. Foram egípcios e assírios os primeiros a registrar por escrito essas interpretações. Para os antigos, o sonho era uma forma de comunicação com os deuses, e prevalecia o caráter premonitório. Reis chegavam a contratar tradutores de sonho para saber como seria uma batalha ou se o país teria dificuldades econômicas em breve. O livro do Gênesis, na Bíblia, traz uma passagem que exemplifica bem essa preocupação dos nossos antepassados com sonhos e pesadelos: é a história de José no Egito.
Bisneto de Abraão – o primeiro dos patriarcas bíblicos –, José é convocado para interpretar um sonho esquisitão do faraó do Egito: ele sonha que sete vacas magras e feias devoram outras sete, gordas e bonitas. E também que sete espigas de milho miúdas e queimadas devoram outras sete, muito mais apetitosas. Então José mata a charada. Viriam sete anos de fartura seguidos de sete anos de terra infértil. Aconselha o faraó a economizar na riqueza para não faltar na hora da miséria.
Coisa de gente primitiva, né? De um tempo em que um raio era encarado como um sinal divino, etc. etc. etc. Não é bem assim. A ideia de que um sonho pode ser uma antevisão do futuro permanece forte até hoje – ainda que seja algo tão científico quanto os malefícios de misturar manga com leite.
Quem nunca ouviu que sonhar com dente é sinal de morte na família? Para o astrólogo brasileiro João Bidu, que explica os significados de todo tipo de sonho em sua página na internet, só é morte se o dente estiver apodrecido. Se aparecer bonito e sadio, significa prosperidade financeira à vista. Já perder um dente no sonho, segundo o esotérico midiático, é sinal de que o homem vai perder outra coisa: sua potência sexual. Todo o conhecimento científico que nos separa do Egito Antigo não nos poupou da crença de que os sonhos usam dentes perfeitos ou cariados para expressar seu poder de oráculo.
Já Sigmund Freud, com a pretensão de estabelecer uma análise do sonho que pudesse incorporar à sua “ciência da mente”, afastou-se das interpretações premonitórias e dos misticismos. Mas concordou com os antigos egípcios em uma coisa: os sonhos faziam sentido, sim. E podiam ser interpretados.