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Terapia lacaniana: você é o que você escolhe

Lacan começou defendendo um “retorno a Freud” e acabou sugerindo uma nova terapia, que explora o inconsciente não para escavar o passado, mas para propor novas formas de viver o futuro.

Texto: Agência de Conteúdo | Edição de Arte: Verúcio Ferraz | Design: Andy Faria

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eguidor de Sigmund Freud, o francês Jacques Lacan desenvolveu uma abordagem que trazia nova ideias para a psicanálise, mas, ao mesmo tempo, propunha o que os lacanianos chamam de “retorno a Freud”. No início da carreira, Freud estava intrigado com coisas que fazemos aparentemente de maneira aleatória, mas que podem revelar uma intenção ou compreensão escondida fora da consciência. É o que se chama de ato falho – como quando você não quer voltar da viagem de férias e percebe que esqueceu o documento de identidade no hotel só quando está na frente do balcão da companhia aérea.

Lacan focou seus estudos na manifestação do inconsciente, que Freud abordou em textos como A Interpretação dos Sonhos, Sobre a PsicoPatologia da Vida Cotidiana e Os Chistes e sua Relação com o Inconsciente, publicados entre o fim do século 19 e o começo do século 20. Para Lacan, o jeito de o inconsciente se mostrar é pregando peças – como trocando o nome do marido pelo do ex-namorado. E a culpa não é sua: os lacanianos dizem que as pessoas não têm noção de tudo que fazem ou sentem em função da existência do inconsciente.

Os lacanianos acreditam que o inconsciente se forma de rupturas traumáticas do curso normal das ações. Isso costuma ocorrer quando alguém não entende, racionalmente, algum acontecimento de sua vida. Um exemplo são as primeiras sensações de excitação sexual que acontecem na infância. O bebê experimenta o prazer, mas a mente não compreende exatamente o que se passa no corpo.

Os cuidados de mãe que podem causar essa excitação – amamentar, embalar, trocar fralda levam a criança inconscientemente a se imaginar como objeto de desejo daquela mulher. Quando o bebê enxerga o pai, o coloca como um limite ao desejo da mãe – e com o tempo encontrando o caminho da mediação entre o desejo e as leis sociais, que servem para todo mundo.

Esse é o primeiro sinal de que, nessa vida, não dá para fazer tudo que dá na telha. A vontade de ser o objeto de desejo da mãe sucumbe à compreensão de que, no mundo, existem regras e autoridades. E tudo que é julgado como fora das regras vai para o inconsciente.

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<strong>Profundezas – O emaranhado do inconsciente se revela com sonhos e atos falhos.</strong>
Profundezas – O emaranhado do inconsciente se revela com sonhos e atos falhos. (Photus/Shutterstock)

É aí que nos dividimos em dois: uma metade movida a desejo, incitada pelo inconsciente, e outra que administra as barreiras a esses impulsos primordiais. Essa cisão também é fundamental para a formação da subjetividade e da personalidade de cada um de nós. Essa divisão entre o que se quer e o que se pode querer é que instala os problemas que levam o sujeito a procurar uma terapia como a psicanálise lacaniana, que se volta à exploração do inconsciente para tentar destravar essa relação angustiante.

O simbólico, o real e o imaginário

Como o id, o ego e o superego de Freud, Lacan também cunhou seu três conceitos sobre o que forma nossa parte psicológica. O simbólico é a realidade externa, com os valores de o que é certo e o que é errado que recebemos de fora e que temos que processar. O imaginário é como gostamos de definir as pessoas e situações que cercam nosso convívio, é o que guarda nossa ideia de mãe ideal ou mulher bonita, por exemplo. Já o real de Lacan é o impulso que dá vida aos nossos desejos submetidos à censura do simbólico.

O psicanalista lacaniano inicia o processo com um conjunto de entrevistas com o objetivo de avaliar se a pessoa tem, de fato, um problema que pode ser tratado pela psicanálise. Segundo a psicanalista Claudia Riolfi, diretora do Instituto da Psicanálise Lacaniana (Ipla), não há uma frequência padrão para as sessões. O número semanal de encontros é estipulado em entrevistas preliminares, que vão indicar o nível de angústia do cliente e a necessidade de fazer um tratamento mais acelerado ou mais lento.

Cumprindo essas etapas, o analista evita iniciar o tratamento com quem não tem indicação para esse tipo de terapia. Freud dizia que a psicanálise não era indicada para pessoas não inteligentes, psicóticos ou quem vivia situações de urgência, inaugurando uma lista que até hoje passa por modificações. Lacan chegou a dizer que a sua terapia não era adequada para católicos praticantes, pessoas que nunca se sentiam culpadas, milionários, canalhas e quem não tivesse desejo.

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Como o objetivo de explorar o inconsciente, a abordagem funciona de um jeito parecido com a psicanálise de Freud, por livre associação: o paciente deve falar abertamente, sem amarras, de tudo que lhe passar pela cabeça durante as sessões. Os consultórios lacanianos normalmente também têm o divã para, do mesmo jeito que os freudianos, permitir que o cliente relaxe e fique de costas para o analista.

Há casos em que os pacientes preferem ficar sentados em uma poltrona lateral e outros em que o psicanalista avalia que é melhor ficar frente a frente com ele. Também é a análise individual que pode levar à conclusão sobre a necessidade de sessões de 45 a 50 minutos ou sessões mais curtas ou mais demoradas, que podem ultrapassar duas horas de duração.

Ao ouvir os relatos do cliente, o terapeuta busca identificar as manifestações do inconsciente nas narrativas de sonhos, detalhamento dos sintomas, chistes e atos falhos. Depois de pescar essas expressões no mar de conteúdo gerado pelas sessões, o desafio do analista e do paciente é escarafunchar cada uma delas e analisá-las para descobrir o que significam e, assim, livrar a pessoa de seu sofrimento psicológico.

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A presença de conceitos da linguística são constantes na terapia lacaniana. Na mesma época que Lacan investigava o ato falho de Freud, o linguista russo Roman Jakobson afirmava que a linguagem era uma fonte com grande potencial criativo. Fazendo pequenas trocas de fonemas em uma palavra, é possível mudar todo o sentido de uma frase. Imagine que você trabalha em um escritório onde cada dia alguém leva um lanche para os demais matarem a fome.

Certo dia, você pega um café e vai ver o que trouxeram. Veio bolo de milho, que você detesta. Querendo saber quem é o responsável, pensa em perguntar “quem trouxe esse lanche?”, mas o que sai é “quem trouxe esse lixo?” Alterar tanto o sentido com uma pequena mudança acontece por causa da estrutura da linguagem estudada pelo russo. E Lacan entendia que o inconsciente se organiza da mesma maneira.

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Os lacanianos tomaram emprestados outros conceitos de Jakobson. Para eles, os elementos que estão no inconsciente não aparecem de forma literal, e sim por meio de figuras de linguagem como a metáfora e metonímia. Na metáfora, um elemento entra no lugar do outro.

Assim, um personagem de um sonho pode ser a representação de outra pessoa do passado ou do presente do paciente: sonhar com o chefe exigente pode ser, na verdade, um encontro com o pai. Já na metonímia, um elemento é colocado do lado de outro para ganhar um novo sentido: se você passar o sonho todo em busca de um batom, ele pode representar uma mulher por quem você é apaixonado, por exemplo.

“Os elementos do sonho nunca vêm como uma leitura prévia, como se fossem uma carta de tarô. Eles precisam ser lidos, considerando que, por ser estruturado como uma linguagem, o inconsciente de cada pessoa tem sua chave de leitura diferente”, diz a psicanalista Claudia Riolfi. No desenrolar do tratamento, o terapeuta pode ir ajudando o cliente na direção de um insight, de uma nova elaboração de seus problemas que o permita reencontrar o equilíbrio.

O objetivo é que o sujeito reconheça onde as coisas vão mal com base na própria fala, assumindo um novo jeito de se comportar e também a responsabilidade do que ocorreu até então. Ou seja, nada de culpar os outros ou o seu próprio inconsciente: para Lacan, temos de admitir nosso papel na geração dos nossos sofrimentos.

As clínicas

Lacan passou por duas fases em seus estudos sobre a psicanálise, chamadas de clínicas. Na primeira delas, entre as décadas de 1950 e 1960, a análise lacaniana era mais voltada aos conceitos de imaginário e simbólico. A partir dos anos 1970 e até o fim da vida, em 1981, ele direcionou seus estudos para a segunda clínica, voltada ao real. É uma característica dessa segunda fase a meta de levar o paciente a eliminar seus problemas sem a necessidade de anos de terapia.

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Isso porque o foco está na correção de rota, e não na compreensão prévia das causas. Nesses casos, o paciente até pode discutir com o terapeuta a possibilidade de encaminhar o fim do tratamento ou de manter as sessões, aí, sim, com objetivo de ir além da cura, buscando autoconhecimento e a explicação para os sintomas que tinha antes de procurar a psicoterapia.

Quem aplica a segunda clínica crê em um tratamento cuja prioridade não seja remexer no passado. O alvo é o que o presidente do Ipla, Jorge Forbes, chama de invenção do futuro. A nova elaboração alcançada na terapia é voltada para a retomada de uma vida sem sofrimentos psíquicos desnecessários ou tomados de empréstimo.

<strong>Os elementos que estão no inconsciente não aparecem de forma literal, e sim por meio de figuras de linguagem como a metáfora e metonímia.</strong>
Os elementos que estão no inconsciente não aparecem de forma literal, e sim por meio de figuras de linguagem como a metáfora e metonímia. ((/)/Superinteressante)

Os lacanianos consideram os preceitos da segunda clínica mais adequados para os problemas psíquicos típicos do mundo contemporâneo. É que, na época em que Freud idealizou teorias ligadas ao complexo de Édipo (aquele dos desejos infantis ligados aos pais) e o complexo de castração (a sensação de ameaça quando as crianças percebem as diferenças entre os sexos), que também inspiraram as clínicas de Lacan, vivia-se em uma sociedade vertical – pobres seriam pobres sempre, mulheres teriam papéis determinados na sociedade etc.

Também era um período de regras sociais rígidas e claras, com a figura do líder paterno reproduzida no trabalho (chefe) e no país (Estado). Os padrões de comportamento também eram estáveis, o que facilitava a interpretação dos símbolos articulados pelo inconsciente. O repertório de sonhos era muito menor.

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Agora vive-se sob os efeitos da chamada revolução do laço social, com a consolidação de relações horizontais, em rede, diferentes das anteriores, verticais e hierárquicas. Mudaram as relações de trabalho, multiplicaram-se os modelos de família e, baseado nisso, mudaram também as fontes dos sintomas que levam as pessoas a buscar terapia.

A angústia das escolhas

As queixas resultantes das tais castrações dos desejos que eram comuns no passado aos poucos vão perdendo espaço para outro tipo de reclamação, tão conhecida entre os nossos pares: o não ter vontade de fazer nada, não conseguir dar grande valor a coisa alguma.

Essa mudança está ligada a uma nova organização social, que é cheia de opções de futuro. Em vez de um caminho natural, as pessoas têm muito mais opções para se organizar como família, para conduzir a vida profissional e para manter seus relacionamentos. Mas esse leque de opções, que é bom, também gera sofrimento.

Afinal, ao escolher uma entre dez opções se está renunciando aos benefícios das outras nove, o que gera um sentimento de desorientação. “A angústia predominante é pelo futuro, razão pela qual não enfatizamos mais a psicanálise do passado. Ele já não nos amarra tanto. O futuro assusta as pessoas”, diz o psiquiatra e psicanalista Jorge Forbes, presidente da Ipla, no livro Psicanálise, a Clínica do Real, que reúne uma série de textos sobre a análise lacaniana.

É na tentativa de domesticar esse futuro aparentemente indomável que os lacanianos de hoje preconizam a troca do surrado clichê “Freud explica” pelo “Freud implica”, ou melhor, causa. É que na psicanálise freudiana, e também na primeira clínica de Lacan, tudo que se buscava era a explicação dos sintomas por meio do resgate de informações do consciente.

Mas a proposta da segunda clínica é usar os sinais do inconsciente para direcionar os novos rumos psicológicos do indivíduo. Ou seja, as decisões da vida devem levar em conta o inconsciente para que o rumo escolhido leve seja adequado ao sujeito. Mas isso deve ser feito sem deixar de se responsabilizar pelas suas opções. Afinal, você é o resultado das suas escolhas.

Conceitos-chave

• Inconsciente estruturado como linguagem
Os dados do inconsciente têm estrutura semelhante à da linguagem. Por isso, as memórias e sentidos retidos por lá se expressam combinadas como figuras de linguagem por meio de piadas, sonhos e atos falhos.

• Real
É o tipo de registro que não pode ser expresso em palavras e imagens. Corresponde ao do desejo sexual em si.

• Simbólico
Registro que guarda os valores absorvidos com base na vida social, como os conceitos de belo, certo e errado.

• Imaginário
É o campo das imagens idealizadas que servem de base para as relações com o ambiente e a formação da personalidade. É no imaginário que está a ideia da mãe ideal, a mulher bonita, do velho sábio.

Os passos da terapia

Até a roupa e os gestos do cliente são analisados pelo terapeuta em busca de atalhos para o inconsciente.

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1 • Livre
A base da sessão é semelhante à pratica da psicanálise de Freud. Cliente no divã, de costas para o analista. Mas, conforme o caso, o analisado pode ficar sentado e até de frente para o profissional. A sessão segue o método da associação livre. Pede-se que o cliente fale do que lhe vem à cabeça, sem limites e temas prévios.

2 • Roupas
O terapeuta presta atenção às manifestações do inconsciente: sonhos, detalhamento dos sintomas e atos falhos. Também leva em conta aspectos como mudanças no vestuário, alterações no gestual e ocorrência de um rubor, que também são influenciados pelo inconsciente.

3 • Senhas
A partir da ideia de que o inconsciente é estruturado como a linguagem, o analista interpreta as senhas do inconsciente e contribui para que o cliente chegue a uma nova compreensão dos seus sintomas e reconheça sua implicação em seus sofrimentos.

4 • Vida nova
Na segunda clínica desenvolvida por Lacan, na última década de vida, não se trata de buscar as causas do sofrimento, mas de gerar um novo posicionamento que permita inventar um modo de vida agradável para a pessoa.

O que são a primeira e a segunda clínica de Lacan?
Ao longo de sua carreira, Lacan desenvolveu duas clínicas, que se diferenciam pela natureza dos objetivos do tratamento. A primeira, moldada entre 1953 e 1970, perseguia o resgate das razões do passado para o sofrimento do presente.

A segunda, idealizada entre 1970 e 1981 e lapidada por seguidores de Lacan, busca uma nova elaboração dos sentimentos buscando novas atitudes e uma nova compreensão da vida, sem, necessariamente, buscar justificativas na historia do cliente.

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