Quando o tráfico de pessoas e o banditismo formavam a base da economia brasileira.
Texto: Tiago Cordeiro | Edição de Arte: Estúdio Nono | Design: Andy Faria
OBrasil começou sua vida econômica vendendo matéria-prima para a fabricação de tinta vermelha. Era essa a função primordial do pau-brasil, o tipo de madeira que deu nome ao País. O termo “brasil”, aliás, já existia antes do Brasil. Era o nome de uma tintura cor de brasa, que os franceses já chamavam de brésil antes de 1500.
A coroa portuguesa fazia expedições constantes para vir buscar pau-brasil, e revender à indústria de tintura. Só tinha um detalhe: como um reino miúdo como Portugal controlaria o comércio no enorme litoral brasileiro? Não havia como. O que grassava por estas terras, então, era o comércio de pau-brasil debaixo dos panos, longe dos olhos da coroa portuguesa. E ao comércio furtivo dá-se o nome de “tráfico”.
Os traficantes, no caso, eram franceses, holandeses, espanhóis e ingleses que aprenderam a negociar com os índios e compravam cargas de pau-brasil diretamente com eles. Em geral, evitavam conflitos e buscavam estabelecer boas relações comerciais, o que significava não cometer abusos, como levar embora mulheres como escravas. Outra opção, para os corsários profissionais, era abordar navios lusitanos já carregados.
Essa árvore, que chega a ter 12 m de altura, era cortada geralmente pelos próprios índios, em pedaços de 1,5 m e 30 kg cada. Ficavam armazenadas em feitorias, cercadas por paliçadas e protegidas por dois ou três europeus que passavam meses seguidos na função de guardiões. Carregadas e levadas para a Europa, as toras podiam ser utilizadas para fabricar embarcações, móveis e estruturas para casas. Mas o mais comum era mesmo serem moídas e transformadas em corante vermelho.
Aguardente
A era do pau-brasil começou a acabar em 1532, quando os portugueses introduziram por aqui um vegetal nativo da Ásia: a cana-de-açúcar.
E a era da cana, na prática, não acabou nunca. Somos até hoje o maior exportador de açúcar do mundo, com vendas anuais em torno de US$ 6 bilhões – mais do que o segundo e o terceiro colocados nesse ranking (Tailândia e Índia) juntos.
Com o desenvolvimento dos engenhos de açúcar, porém, surgiu um outro comércio por aqui: o de cachaça. Resultado da fermentação da borra que sobrava na produção do melaço, ela se tornou, rapidamente, o entorpecente mais consumido do País.
Apreciadores empolgados começaram a levar a cachaça consigo nas viagens, até que surgiu um público consumidor razoável nos pontos da África que vendiam escravos para o lado de cá do Atlântico, em especial Angola, onde era possível trocar garrafões de aguardente por seres humanos. A cachaça virou moeda de troca também dentro da colônia. E o decreto real de 1649 proibindo sua fabricação em solo nacional foi solenemente ignorado.
Quem tentou fazer valer a lei, no caso os vereadores do Rio de Janeiro, não se saiu bem: o cerco aos alambiques deu início à Revolta da Cachaça, que tomou a cidade por longos cinco meses, até que conseguiu a revogação do decreto real. A partir de 1661, a produção voltou a ser oficialmente liberada, desde que os fabricantes pagassem impostos.
Enquanto Pernambuco enriquecia com o açúcar e Salvador se firmava como a capital e cidade mais importante da colônia, em outras regiões traficar madeira ou cachaça não era uma opção tão interessante quanto escravizar indígenas. Foi o que fizeram os exploradores do interior, em especial os bandeirantes paulistas.
Bandeirantes
Existe uma maneira prática de suportar dezenas de quilômetros de caminhada todos os dias: andar com as pernas levemente dobradas, com os joelhos apontando para o centro. Os bandeirantes aprenderam isso com os índios. Também falavam como eles – muitos eram filhos e maridos de índias. Quando chegavam às grandes cidades do Nordeste, mais europeias, simplesmente não eram compreendidos.
Foi o caso de Domingos Jorge Velho, quando apareceu em Olinda para destruir o Quilombo dos Palmares. Para espanto dos pernambucanos, ele só falava tupi. Os bandeirantes andavam descalços, carregavam armas de fogo (geralmente mosquetões com 1,75 m de comprimento, que precisavam de duas pessoas para carregar e de um tripé para atirar), mas também arcos e flechas, e usavam camisas de algodão, acrescidas de coletes de couro de anta.
Comiam uma mistura fria de farinha de milho, feijão e toucinho, mas, se precisassem, cozinhavam animais que caçassem no caminho, incluindo macacos. As expedições em busca de índios se aceleraram a partir da segunda década do século 17.
Em 1627, Antônio Raposo Tavares atacou aldeias de indígenas, gerenciadas por jesuítas a mando da coroa espanhola. Ele partiu de São Paulo com 900 homens brancos e 3 mil locais. Aprisionou 2 mil índios que viviam em missões jesuíticas em áreas dos atuais Mato Grosso, Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul.
Para se locomover, utilizou o Peabiru, a rede de trilhas criada por populações indígenas que partia de diferentes pontos do litoral de São Paulo, Paraná e Santa Catarina e seguia até o Paraguai. Eram caminhos amplos, com mais de 1,5 metro de largura e mato batido.
Na época de Raposo Tavares, já não eram comuns as expedições em busca de ouro e prata, que no século anterior haviam se mostrado mais perigosas do que lucrativas. Mas o regime econômico dos bandeirantes teve vida curta. Quanto mais para o interior eles entravam em busca de índios, mais demoradas e perigosas eram as viagens, e mais preparados estavam os locais para reagir.
Enquanto isso, porém, a descoberta de ouro em Minas, na virada do século 17 para o 18, gerou uma enorme demanda por mão de obra. Foi quando disparou o tráfico de negros.
O embarque de escravizados ao Brasil tinha começado bem antes, ainda na década de 1530, com a chegada de um grupo de africanos da Guiné, na mesma embarcação que trouxe Martim Afonso de Souza. Eram grupos formados por poucas dezenas de homens e mulheres comprados durante as paradas que os colonizadores faziam nos portos africanos. A maior parte dos escravizados foi para os engenhos de açúcar de Pernambuco.
Essa situação começou a mudar quando o governador do Rio de Janeiro, Salvador Correia de Sá, contratou por escrito um fornecedor de negros, chamado João Gutierrez Valério, em 1568. A partir de então, cruzar o Atlântico para comprar e revender africanos passou a ser um negócio dos mais rentáveis. Em geral, essa era uma atividade bem aceita. Os traficantes de gente eram vistos como empreendedores que construíam grandes redes logísticas.
A operação era complexa e contava com vários participantes. Na área da costa da África de onde mais partiram escravos para o Brasil, Angola e a Costa da Mina, era necessário manter, ou alugar, entrepostos, com galpões, onde os prisioneiros eram colocados antes de partir. Eles podiam aguardar até semanas em abrigos lotados – alguns desses postos tinham capacidade para até 5 mil pessoas.
Para chegar até a costa da África, o comprador de escravos costumava levantar o investimento com credores, que dividiam os riscos, mas também os lucros. Seria preciso adquirir os produtos que seriam trocados por pessoas, principalmente armas, pólvora, tecidos, azeite de dendê, açúcar, cachaça e rolos de fumo – ou seja: na ida para África, todo navio negreiro era um cargueiro.
E na volta era uma fábrica de cadáveres. Boa parte dos africanos que embarcavam morria ao longo do trajeto. Morria de fome, morria por doenças e morria por depressão – aquilo que ficou popularmente conhecido no Brasil como “banzo”, e que nada mais é do que a perda completa da vontade de viver depois de ver a própria vida destruída, e o corpo convertido em mercadoria.
Morta, a pessoa era lançada ao mar. Laurentino Gomes, autor do livro Escravidão, resumiu em uma entrevista recente à revista Exame: “Saíram da África 12,5 milhões de seres humanos. Chegaram 10,7 milhões. Morreram na travessia 1,8 milhão. Se você dividir esse número pelos dias, vai dar 14 cadáveres, em média, lançados ao mar todos os dias ao longo de 350 anos. A ponto de haver relatos, na época, de que isso mudou o comportamento dos cardumes de tubarões no Atlântico, que passaram a seguir os navios negreiros”.
Do ponto de vista do comerciante de gente, essas mortes eram só um risco inerente ao negócio. Para administrar tais riscos, as empreitadas escravagistas eram companhias de “capital intensivo”: contavam com o dinheiro de multidões de investidores.
Uma boa dose de diplomacia também era necessária, a ponto de muitos dos traficantes morarem na África, ou ao menos passarem boa parte do ano lá. À medida que reis africanos mudavam e outros grupos políticos saltavam ao poder, diferentes comerciantes ganhavam espaço – havia uma competição aberta entre portugueses, holandeses, dinamarqueses e ingleses pelo bom relacionamento com os líderes locais.
Ouro de minas
De volta a Minas Gerais. A expressão “santo do pau oco” surgiu lá, no auge da corrida por fortuna. Ela faz referência ao suposto uso de imagens sacras, escavadas por dentro, para contrabandear ouro em pó. Não é certeza de que os religiosos tivessem, de fato, escondido riquezas dentro de imagens. Mas é fato que eles se envolviam com a mineração de maneira bem pouco cristã. Como descreve o jornalista português Pedro Almeida Vieira no livro Assim se Pariu o Brasil, muitos dos religiosos que viviam na região deixavam de lado os afazeres clericais para entrar nas minas. Outros nem se davam a esse trabalho.
“Homens como Jácomo de Grado Forte, João de Faria Fialho, João Sousa Pereira, Pedro do Rosário e José de Godoy Moreira, que se encheram de ouro, apesar da batina, ficaram célebres, não pelas melhores razões”, ele descreve. “Outros clérigos eram especializados em contrabando, tráfico de escravos ou mesmo falsificação de cunhos para contornar o imposto dos quintos.
Dentre estes, destacou-se o frei Francisco de Menezes – conhecido como Frade Satânico – que, antes, no Rio de Janeiro, causara infinitos escândalos no comércio de tabaco. Em Minas Gerais, negociava carne, o que significava também que contrabandeava ouro, porque uma coisa levava à outra; e vice-versa.”
Por que carne e ouro andavam juntos? Acontece que a região enriqueceu demais com a mineração, sem antes ter erguido qualquer tipo de infraestrutura. “Se Minas Gerais tinha ouro, queria carne sem ter pastos; quem tinha carne, queria ouro sem garimpar”, continua o autor. “Isso resultou em uma incontrolável especulação nos preços dos mais diversos víveres.” O Frade Satânico chegaria a conquistar, por algum tempo, o monopólio sobre a distribuição de carne – carne vendida a preço de ouro.
O bandeirante Manuel de Borba Gato, genro de Fernão Dias Pais, foi chamado para fazer a segurança da região. Mas ele contava com poucos homens. Aliás, militares de carreira, de diferentes regiões do Brasil, largavam seus postos e corriam para o chamado País do Ouro – foi o caso, por exemplo, do capitão-mor de Parati, Miguel Teles Costa. Se nem os responsáveis pela ordem obedeciam a qualquer noção de hierarquia em nome do enriquecimento rápido, é de se imaginar o caos que reinava na região.
Não seriam os padres que iriam se manter fora dessa busca por fortuna. Num primeiro momento, o ouro era tanto que ninguém queria plantar ou criar gado. Por isso, muitas vezes era possível ter uma fortuna no bolso e ainda assim não ter o que comer. “Para escapar da fome, os mineiros aprenderam ligeiro a engolir qualquer coisa: cães, gatos, ratos, raízes de paus, insetos, cobras e lagartos”, escrevem as autoras de Brasil: Uma Biografia, Lilia Moritz Schwarcz e Heloisa Maria Murgel Starling.
A saca de farinha (30 quilos) custava 600 réis em São Paulo. Se levada a Minas, custaria 43 mil réis. Nesse sentido, os comerciantes ganhavam mais do que os garimpeiros. E lucravam duas vezes: ao cobrar caro e ao pedir o pagamento em pó de ouro, sem pagar o imposto real. As Minas Gerais da época eram um bom lugar para pessoas violentas.
Dizia-se de Manuel Nunes Viana, português que havia feito fortuna vendendo gado e, depois, comprando minas, que seus inimigos e seus escravos rebeldes acabavam lançados a um lago de sua propriedade. Ali os corpos eram devorados por piranhas, que ele fazia questão de alimentar com carne humana.
Também surgiram no século 18 verdadeiras organizações criminosas, com contatos infiltrados no governo. Elas montaram companhias bem estruturadas, dedicadas a fraudar o pagamento de impostos sobre a extração de metais preciosos.
Algumas quadrilhas surgiam dentro de quilombos mineiros. A Picada de Goiás, uma estrada construída pela coroa para escoar a produção das minas, era alvo fácil para o Quilombo do Ambrósio, o maior de Minas na época. Comboios de viajantes, carregando tapeçarias, gado, escravos ou sal, eram frequentemente atacados. Esses comboios geralmente tinham vários escravos – que eram poupados para se juntarem ao quilombo.
Outro grupo famoso que vivia de assaltar as estradas reais era a Quadrilha da Mantiqueira, especializada nos caminhos que levavam de São João del-Rei a Vila Rica. Seu líder, um sujeito alto e forte, respondia pela alcunha de Montanha. O grupo se distribuía em locais altos na mata, de onde observava a movimentação dos viajantes e estudava o melhor ponto para atacar.
Em 1783, moradores da região encontraram uma cova com três corpos. Perceberam que eles haviam sido degolados e esfaqueados. Perto dali havia uma cabana com dez camas. Foi quando começou a caçada aos bandidos de Montanha. Quem bancou a perseguição foi um fazendeiro da região, o coronel José Aires. As investigações foram conduzidas por um oficial, um certo alferes chamado Joaquim José da Silva Xavier.
Os agentes encontraram mais um corpo, o do morador José Antonio de Andrade, morto com um tiro na testa. Outra cova, essa com 12 corpos, foi encontrada, e algumas prisões, efetuadas. Ao fim da investigação, oito membros do grupo acabaram na cadeia, e a Quadrilha da Mantiqueira se dispersava em definitivo.
Mas combater o banditismo ali era enxugar gelo. O ouro, o dinheiro e o volume de produtos que circulava pelas estradas reais era tamanho que, na mesma medida em que alguns bandos eram dissolvidos, surgiam outros. A Serra de Santo Antonio de Itacambiruçu, em Minas, foi sede da quadrilha de José Costa, que liderava dezenas de homens entre 1781 e 1786, até ser denunciado pela amante, Margarida Felicidade. Caçado pelos militares, teve que fugir da região.
Na mesma área atuava o grupo dos Vira Saias, conduzido por um casal, João Nunes Giraldes e Mariana de Jesus Mendonça. Dizia-se que ela era muito mais cruel do que ele. Com o tempo, os Vira Saias passaram a saquear não só estradas, mas também fazendas às margens do Rio São Francisco.
Só seriam desmantelados no século 19. O século 19, aliás, foi marcado por transformações profundas no Brasil. Em 1800, éramos colônia de Portugal, com mão de obra baseada no trabalho escravo. Em 1900, havíamos abolido a escravidão e proclamado a República. Ao longo desse tempo, entre crises econômicas e golpes políticos, nosso país foi palco de outras façanhas extraordinárias, também realizadas por pessoas comuns. Mas essas histórias ficam para uma outra edição.
Relações internacionais
Traficantes brasileiros, alguns deles ex-escravos, alcançaram fortuna e poder na África.
Do ponto de vista de boa parte das lideranças africanas, havia um grande interesse em estabelecer boas relações comerciais com os traficantes de pessoas escravizadas. Por três vezes, em 1750, 1795 e 1805, a cidade de Salvador recebeu enviados de Daomé (hoje parte do território do Benin, vizinho da Nigéria).
Entre 1795 e 1810, o rei de Daomé em pessoa, Adandozan, trocou correspondências e presentes com o monarca português Dom João, aquele que, em 1808, se instalou no Brasil.
O intercâmbio abria portas para os brasileiros na África. As lideranças em Angola, por exemplo, mantinham uma relação íntima com os comerciantes brasileiros – desde o século 17, Luanda era influenciada, comercialmente e culturalmente, pelo Brasil.
Acontecia de ex-escravos nascidos aqui se tornarem traficantes prósperos, com propriedades na África. Antonio Vaz Coelho, por exemplo, comprou sua alforria na Bahia e depois se estabeleceu em Daomé. Tornou-se um comerciante poderoso, conhecido pela segurança de suas entregas, garantidas pelo uso de navios militares, armados com canhões, para transportar mercadorias e pessoas.
Na Nigéria, Domingos José Martins controlou por anos o tráfego partindo de Lagos, e outro brasileiro, João José de Lima, foi o maior vendedor de pessoas de Lomé, no Togo. Ainda mais hegemônico, o português Carvalho Alvarenga deixou um império para seu filho, Honório Pereira Barreto, que comprou uma ilha inteira na Guiné Portuguesa para sustentar seus negócios – manter prisioneiros, enquanto aguardavam a chegada dos navios negreiros para levá-los aos centros consumidores: Estados Unidos, Cuba, Rio de Janeiro, Recife, Salvador. Dos 12,5 milhões de africanos escravizados, 4,9 milhões tiveram como destino o Brasil. Seus descendentes diretos formam a maior parte dos 210 milhões de brasileiros vivos hoje.