Repudiada nas Américas, a mortadela é motivo de reverência na Itália – onde sustentou fidalgos medievais e financiou a primeira universidade da Europa.
Reportagem Marcos Nogueira, em Bolonha, Itália | Ilustração Milton Nakata | Design Yasmin Ayumi | Edição Ana Carolina Leonardi
Mortadela, o filme, é uma comédia de costumes de 1971 em que a protagonista italiana – interpretada por Sophia Loren – desembarca em Nova York com um item proibido na bagagem. Uma mortadela, obviamente.
Após o previsível flagrante dos agentes aeroportuários, a heroína da trama vira notícia de costa a costa nos Estados Unidos. Ela se recusa a se separar de seu embutido, gerando um incidente diplomático escandaloso.
As razões para a apreensão da mortadela de Sophia eram sanitárias – todo país é chato na fronteira com alimentos de origem animal –, mas revelam um abismo cultural e gastronômico que separa Itália e Estados Unidos.
Para os americanos, mortadela é sinônimo da carne processada da pior qualidade possível, chamada de bologna ou baloney. O sanduíche da tal bologna aparece nas mais fuleiras cantinas escolares e bibocas afins.
Não é muito diferente no Brasil. Aqui, mortadela tem péssima reputação. Lendas urbanas dão conta de que ela é feita com cavalos velhos demais para puxar carroça. Como a salsicha, a mortadela é aquela carne-mistério que nem procuramos saber do que é feita.
Melhor não saber, mesmo. A mortadela da padaria leva o rebotalho da indústria frigorífica – carnes que não servem nem para serem vendidas frescas, nem para rechear linguiça. E mais um punhado de temperos e outros aditivos para tornar o produto final minimamente palatável.
O resultado é gastronomicamente pífio e muito questionável no que diz respeito à nutrição, mas imbatível no preço. Barata, a mortadela virou uma favorita das classes menos abonadas.
Na Itália, a situação se inverte. Principalmente na cidade de Bolonha, onde nasceu o embutido. Lá, a mortadela é reverenciada por sua história. Ela representa a riqueza de mercadores medievais e dos intelectuais que fizeram de Bolonha uma espécie de oásis pensante na idade das trevas.
A mortadela de Bolonha tem o mesmo jeitão da nossa, mas a semelhança é só visual. O sabor é suave, sem a agressividade de especiarias do embutido brasileiro. A cor é rosada, mais viva e mais clara do que o nosso magenta acinzentado.
Os ingredientes são escolhidos a dedo – não se usa a sobra da desossa de animais. Mas o que realmente importa é aquele toque secreto do reclame de Sazón: o amor. Os bolonheses são apaixonados por mortadela, com toda a carga de pieguice que uma paixão italiana possa ter.