Sabor medieval
Hoje, a Rua Pescherie Vecchie – viela no centro medieval de Bolonha onde, em outros tempos, concentravam-se os peixeiros – é um playground para glutões. Há quitandas, açougues, pastifícios, mercadinhos e até uma unidade da Eataly, loja de departamentos gastronômica que a Itália exportou para o mundo (e que faz sucesso no Brasil).
Foi lá que encontrei Davide Simoni, em uma manhã escaldante de sábado. A poucos passos de seu empório, na esquina com a Via Drappiere, fica a loja de seus pais, uma instituição bolonhesa. Na Salumeria Simoni, uma multidão majoritariamente italiana se acotovela com senha em mãos, à espera de delícias regionais: tortellini, tagliatelle, presunto cru, queijo parmesão, conservas, molhos, vinagres envelhecidos e, claro, mortadela.
Davide me mostra um quadro pendurado na parede: é um fac-símile de um decreto de 24 de outubro de 1661, assinado pelo cardeal Girolamo Farnese, representante do papa Alexandre 7º. O documento normatiza a produção e a venda de mortadela. É a segunda regulamentação de alimentos mais antiga no Ocidente – mais velha, só a reinheitsgebot, lei bávara da pureza da cerveja, de 1516.
O ato do cardeal Farnese impunha penas draconianas a quem fraudasse a mortadela: multa de 200 escudos de ouro e um certo tratto di corda. Esse é o nome italiano de uma modalidade de tortura que pendura a vítima numa corda amarrada aos pulsos, com os braços virados para trás. Quem tem ombros consegue imaginar a dor.
Além disso, o infrator perdia a licença para fabricar e/ou vender embutidos. Era, provavelmente, a mais dura das punições: naquela época, cerca de 1/3 dos 30 mil habitantes de Bolonha trabalhava direta ou indiretamente com mortadela e salame.
A importância da mortadela para os bolonheses vem dos tempos do Império Romano, pelo menos. No Museu Cívico Arqueológico de Bolonha, há duas lápides antigas, uma de cada lado da porta principal. Com cerca de 2 mil anos de idade estimada, as pedras mostram cenas do cotidiano de então. A da esquerda mostra um homem tocando uma vara de porcos; à direita, um indivíduo amassando alguma coisa com um pilão enorme.
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Os pesquisadores do museu supõem que as lápides pertenciam ao túmulo de um produtor de mortadela. O pilão servia para triturar os temperos e as carnes. Já a tigela de pedra em que se pilam os temperos, em italiano, chama-se mortaio – essa é a hipótese
mais aceita para a origem do nome do alimento.
O processo de produção mudou muito e a bula do cardeal caducou, mas a mortadela segue no radar das leis europeias. O produto rotulado como mortadella di Bologna tem a chancela de um selo IGP – sigla de Indicação Geográfica Protegida –, que estipula a procedência, a composição e os procedimentos na fabricação do embutido.
Para receber o selo IGP de mortadela “oficial”, a mortadella bologna não precisa ter sido produzida, necessariamente, na região, mas só pode conter carne suína proveniente de porcos italianos. Não é permitido usar carne de outros animais nem porcos de outros países.
Davide Simoni aprendeu a fazer mortadela com Ennio Pasquini, já morto, a maior autoridade no embutido de Bolonha – e, consequentemente, do mundo. Ele não faz segredo com a sua receita. As carnes são resfriadas a zero grau para otimizar a moagem; depois misturam-se cubos de gordura e as especiarias; a mistura é ensacada numa pele de bexiga suína ou bovina, a depender do tamanho da mortadela. A bexiga é amarrada com barbante e cozinha no vapor a 75 ºC por 20 horas. Eccola! Mangia la mortadella!
Os ingredientes são poucos. Carne do ombro e tripas de porco. Gordura da papada, que só derrete em temperaturas altas. Alho, pimenta branca e semente de coentro. Por último, mas não menos importante, sal. É com o sal que a história da mortadela começa.

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