Texto: Bruno Vaiano | Reportagem: Bruno Carbinatto e Guilherme Eler | Ilustração: Otávio Silveira | Design: Carlos Hara
O Tierra é um programa de computador com 80 linhas de código-fonte. É pouco: um app de celular pode alcançar 500 mil; a versão mais recente do Photoshop tem 4,5 milhões. Esse software minúsculo foi criado em 1990, no PC do biólogo Thomas Ray da Universidade de Delaware, nos EUA. A única função de Tierra é criar cópias de si mesmo. Essas cópias vão fazendo mais cópias, até a memória do computador ficar lotada.
Às vezes, durante a clonagem, um dos “filhotes” tem uma linha de código duplicada, alterada ou deletada aleatoriamente. A maior parte dessas mutações impede o Tierra afetado de continuar a se reproduzir. Mas algumas melhoram o desempenho, e ele passa a preencher o HD mais rápido. Isso é seleção natural. Nesse experimento distópico, os Tierras são uma vida artificial que evolui, no sentido darwiniano da coisa.
Alguns Tierras se tornam mais complexos e eficazes após algumas gerações. Outros, porém, ficam mais simples. Vão abandonando linhas de código, até não conseguirem mais se copiar sozinhos: as linhas que restam, por si só, não contêm todas as instruções necessárias para gerar um conjunto igual de linhas. A solução para esses Tierras preguiçosos é parasitar Tierras inocentes, pegando linhas emprestadas para se reproduzir. Assim, às custas dos outros, eles se multiplicam. O nome disso é vírus. De computador, nesse caso.
Há uns 3,5 bilhões de anos, algo parecido aconteceu na Terra. Nessa época, os primeiros seres vivos, bactérias rudimentares, se multiplicavam nos oceanos. Algumas se tornavam mais complexas: graças a uma mexidinha no DNA aqui, outra ali, ganhavam genes novos e, com eles, habilidades bioquímicas inéditas. Outras foram abandonando genes, até ficarem tão simples que começaram a sequestrar o maquinário de bactérias normais para se reproduzir. Essa é uma de várias hipóteses para a origem dos vírus: eles seriam ex-bactérias que se tornaram cada vez mais rudimentares.
O vírus que está desenhado na capa desta edição parece vindo da ficção científica, mas é das antigas. Se chama bacteriófago, ou seja: é um especialista em atacar bactérias (fagós é “comer” em grego). Não existe outro parasita tão letal na Terra, porque suas vítimas, até hoje, são as mais numerosas. O número de bactérias no oceano tem 28 zeros. Isso significa que, para cada estrela do Universo visível, há 10 milhões de bactérias na água. O número de vírus que ganham a vida se aproveitando dessas bactérias tem 31 zeros, de modo que o número de infecções virais que ocorrem no oceano por segundo tem 23 zeros. 40% do total de bactérias dos oceanos morrem por causa de vírus a cada 24 horas. Para uma bactéria, todo dia é dia de pandemia.
A vida, é claro, se tornou mais complexa que um duelo entre bactérias e vírus (ainda que eles continuem reinando absolutos sobre os ecossistemas da Terra). Ao longo de bilhões de anos de história, as bactérias uniram forças para formar seres multicelulares, como plantas, fungos e animais. Os vírus foram atrás, sempre evoluindo para se aproveitar da complexidade crescente. O que nos leva ao maior problema de saúde pública do século 21: o coronavírus Sars-CoV-2, causador da doença Covid-19, que, até o fechamento desta edição, havia causado 8,7 mil mortes. Nos próximos parágrafos, você lerá um dossiê sobre os vírus: o que eles são, do que são feitos, como invadem nossas células e como mudam nossas vidas desde que nossa espécie se entende por gente. Começando pelo básico:

Agradecimento: Armando Morais Ventura, especialista em virologia molecular do Instituto de Ciências Biomédicas (ICB) da USP; Fontes: livro The Red Queen, de Mark Ridley; livro A História da Humanidade Contada pelos Vírus, de Stefan Cunha Ujvari; livro-texto universitário Biologia de Campbell, 10º edição; artigo “The Origins of Viruses”, disponível online em Nature Scitable.