A brasileirinha de 11 500 anos
Crânio escavado em Minas Gerais, com caracteristicas de população negróide, desafia velhas teorias sobre a ocupação do continente americano
Lia Hama
Até há pouco tempo, acreditava-se que todos os povos indígenas encontrados pelos europeus no continente americano descendiam de mongolóides vindos da Ásia. Mas um estudo apresentado em 1998 pelo pesquisador Walter Neves, da Universidade de São Paulo (USP), colocou em xeque essa teoria. Ao analisar o crânio de “Luzia” – nome dado à brasileira mais antiga de que se tem notícia até hoje –, a equipe do cientista descobriu que ela não pertencia ao grupo mongolóide. Os pesquisadores mediram 45 diferentes características do crânio e o compararam com espécimes de outras partes do mundo correspondentes a populações atuais. Conclusão: Luzia apresentava características muito mais próximas das de habitantes de algumas regiões da África e da Oceania que as dos mongolóides.
A hipótese foi reforçada posteriormente por um trabalho feito na Universidade de Manchester, na Inglaterra. Com a ajuda de computadores, cientistas ingleses reconstituíram a fisionomia de Luzia, que apresentava feições nitidamente negróides, de nariz largo, olhos arredondados, queixo e lábios salientes. A descoberta representou uma revolução nas teorias sobre o povoamento das Américas. A hipótese de Neves é que, antes da chegada dos grupos mongolóides da Ásia, uma leva migratória de povos negróides teria ocupado as Américas há mais de 11 000 ou 12 000 anos atrás. Esses povos foram batizados de “paleoíndios” por Neves e por seu principal colaborador, o arqueólogo André Prous, da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Luzia é o crânio humano mais antigo já encontrado no continente americano. O esqueleto, de 11 500 anos, fora descoberto nos anos 70 no sítio arqueológico da Lapa Vermelha, em Lagoa Santa, na região metropolitana de Belo Horizonte, e levado para o Museu Nacional do Rio de Janeiro. Estima-se que a ossada tenha pertencido a uma mulher baixa, com 1,50 metro de altura. À época de sua morte, ela teria entre 20 e 25 anos.
A nova tese sobre a ocupação das Américas ganhou força com a descoberta de outros crânios humanos em diversos pontos do continente, com características não compatíveis com as dos mongolóides. É o caso do homem de Kennewick e de Spirit Caveman, encontrados na América do Norte e datados de cerca de 9 000 anos. As mesmas configurações cranianas de Luzia foram descobertas em fósseis de 9 000 anos, perto da cidade colombiana de Tequendama e na Terra do Fogo, nos confins da América do Sul.
Por que Luzia?
O que os Beatles têm a ver com isso?
O nome Luzia foi dado por analogia com Lucy, a mais famosa ancestral humana, de 3,2 milhões de anos, encontrada na África. Um repórter perguntou ao pesquisador Walter Neves se o fóssil seria a versão americana de Lucy. Neves respondeu que, devido à procedência brasileira, a descoberta estava mais para Luzia do que para Lucy. Fêmea de Australopitecus afarensis, uma das espécies ancestrais do homem moderno, Lucy foi encontrada pelo antropólogo americano Donald Johanson em 30 de novembro de 1974, na Etiópia. Na mesma noite, a equipe de Johanson festejou a grande descoberta com muita bebida e dança ao som dos Beatles. A música “Lucy in the Sky with Diamonds” embalava a festa e, de tanto ser tocada, acabou dando nome ao esqueleto.
Luzia, por sua vez, ganhou notoriedade internacional após a publicação do trabalho de Neves na prestigiosa revista americana Science. A repercussão do trabalho dos cientistas brasileiros foi tanta que a rede de televisão inglesa BBC fez um documentário sobre Luzia e encomendou a reconstituição de sua face, feita com argila, após um minucioso trabalho de pesquisa que incluiu exames do crânio por meio de tomografias computadorizadas.
O impacto da descoberta
A análise do crânio de Luzia dá força a uma nova teoria segundo a qual, antes da chegada de grupos mongolóides da Ásia – ancestrais dos índios atuais –, uma leva migratória de povos negróides teria ocupado as Américas há mais de 11 000 ou 12 000 anos