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A psicanálise no divã

Cada vez mais pessoas estão trocando o analista por medicamentos, novos tratamentos psicológicos e terapias alternativas para aliviar o sofrimento da mente. Será que as idéias de Freud estão morrendo?

Por Rodrigo Cavalcante
Atualizado em 31 out 2016, 18h25 - Publicado em 30 set 2002, 22h00

Freud explica” é um dos grandes clichês do século XX. Mesmo quem nunca leu sequer um parágrafo dos mais de 20 livros do fundador da psicanálise já esbarrou com termos como complexo de Édipo, desejos reprimidos, inveja do pênis, símbolos fálicos, ego, id e superego. A figura do gênio de cabelos grisalhos, barba bem aparada, com seu sugestivo charuto e um olhar que parece penetrar nas profundezas da alma humana faz parte do inconsciente de nossa época. Aliás, a própria noção do inconsciente está para Freud como a Teoria da Relatividade para Einstein ou a evolução para Darwin. Ainda hoje, pessoas em todo o mundo se submetem ao mesmo ritual que ele desenvolveu para tratar dos males da mente: vão a um especialista, sentam-se num móvel acolchoado e começam a falar.

Apesar de tão popular, a psicanálise (nome que Freud deu a esse método, em 1896), nunca foi alvo de tantas críticas como nos últimos anos. Neurologistas e estudiosos da mente dizem que boa parte dela está mais próxima da ficção do que da ciência e que as obras de Freud hoje não passam de boa literatura (ele escrevia muito bem). Psicólogos sociais acusam a ênfase dada por Freud às relações familiares e à sexualidade como modelos limitados de interpretação do sofrimento psíquico, propondo novos caminhos para cuidar dos problemas existenciais. Contribuindo para esvaziar ainda mais os consultórios dos psicanalistas, milhares de pessoas procuram alívio para o sofrimento da alma em psicoterapias não-freudianas e até mesmo na filosofia oriental e na redescoberta da própria espiritualidade.

“Só quem tem pouco bom senso levaria hoje a sério a maioria das idéias de Freud”, diz a psicóloga Sophie, professora da Faculdade Simmons, em Boston, nos Estados Unidos. Sua declaração seria mais uma dentre o coro de críticos de Freud, não fosse por um detalhe importante. O último nome de Sophie é Freud. Isso mesmo: a neta do fundador da psicanálise disse à Super que é bastante cética diante das teorias do avô e acha que pouca coisa de suas teses ainda pode ser considerada.

Não é a primeira vez que Sophie faz críticas à psicanálise. Em 1995, ela participou, junto com diversos críticos de Freud, nos Estados Unidos, de uma manifestação contra o tom “adulatório” de uma exposição sobre seu avô que seria inaugurada naquele ano, na Biblioteca do Congresso Americano. Além de ser adiada para 1998, quando finalmente foi aberta, a exposição incorporou uma “visão mais crítica de Freud” e foi um indício de que os ataques à psicanálise não iriam parar por aí.

Poucos desses críticos deixam de reconhecer, é claro, a genialidade e o pioneirismo do pensador austríaco. Mas isso não os impede de atingir em cheio a psicanálise ao contestarem sua validade atual como tratamento clínico da mente. “Não há nenhuma prova de que os seus resultados sejam eficazes”, diz a neta de Freud. “A psicanálise se tornou uma espécie de religião.” Como o tratamento pode ser prolongado por anos, exigindo sessões semanais, ela ainda teria o inconveniente de ser uma religião muito cara.

Afinal, vale ou não a pena pagar por anos de análise? Os psicanalistas afirmam que sim e rebatem as críticas dizendo que elas são típicas de uma época em que as pessoas querem resolver seus problemas existenciais na farmácia, como se fosse possível encontrar a felicidade em cartelas de antidepressivos, como o Prozac. O problema com as drogas é que elas atuariam nos sintomas e não nas causas do sofrimento psíquico. Passado o efeito do medicamento, todas as insatisfações voltariam porque seus nós não teriam sido desatados. “Ninguém tem dúvidas de que muitas das novas drogas podem aliviar os sintomas de diversas doenças da mente”, diz Peter Gay, psicanalista, historiador, professor emérito da Universidade de Yale e autor da famosa biografia Freud: Uma Vida para o Nosso Tempo. “Mas elas não podem curar ninguém. A técnica do tratamento pela fala, criação de Freud, é e permanecerá essencial.” (Veja as principais idéias de Freud e suas críticas na página ao lado.)

Talvez seja cedo para afirmar se, no futuro, Freud será mais lembrado como o médico que inventou um tratamento revolucionário para as doenças mentais ou como um dos 26 autores mais importantes da literatura, na seleção que o crítico literário Harold Bloom fez em seu livro O Cânone Ocidental.

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O próprio Freud, em alguns de seus textos, aventou a possibilidade de que um dia a psicanálise talvez fosse deixada para trás, substituída por um novo tratamento. A única coisa certa é que, para continuar mantendo seu grau de influência, ela terá que responder aos seus principais concorrentes do início do século XXI.

Freud x neurociência

Pouca gente sabe, mas antes de criar a psicanálise o próprio Freud passou anos de sua vida tentando entender o funcionamento da fisiologia do cérebro e como ele poderia desencadear os distúrbios mentais, igualzinho a qualquer neurocientista moderno. Entre 1882 e 1885, Freud trabalhou com pacientes que sofriam de lesão cerebral no Hospital Geral de Viena, já tendo pesquisado o sistema nervoso de lampréias e lagostins. Então por que boa parte dos neurocientistas atuais vive criticando suas idéias?

“Não se trata de uma crítica a Freud, trata-se de reconhecer que os modelos da psicanálise não se encaixam com o que sabemos hoje sobre o funcionamento do cérebro”, diz o neurocientista Ivan Izquierdo, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. “Sabe-se hoje que doenças como a esquizofrenia, que no passado era relacionada a um trauma psicológico, têm origem orgânica.” Izquierdo diz que diversos estudos revelam que os pacientes esquizofrênicos têm um déficit anatômico na região do nosso cérebro que fica logo abaixo da testa, conhecida como córtex pré-frontal.

Esse déficit geraria uma falha na chamada memória de trabalho (a memória usada para nos orientar no aqui e agora), fazendo com que o esquizofrênico perceba a realidade como alucinação. “Para controlar os mecanismos que disparam essas alucinações, a medicação é fundamental”, diz o neurocientista. “Utilizar o modelo freudiano para tentar curar alguns desses distúrbios pode ser tão inútil quanto tentar encontrar um erro num programa de computador quando a base do problema está na máquina.”

Máquina? Não seria uma simplificação comparar um homem a um computador, traçando uma linha clara entre um hardware, formado pelo cérebro e suas interações químicas, e um software, constituído por nossas emoções, pensamentos e experiências de vida? Izquierdo diz que é claro que a divisão não é tão simples e há uma série de interações entre as predisposições orgânicas e história de vida. “Se você tem uma tendência para a depressão, por exemplo, é óbvio que ela vai estar associada a algumas passagens de sua vida”, diz Izquierdo. “Mas a predisposição já estava lá, enquanto outras pessoas, com experiências semelhantes, reagem de outra forma apenas por não terem a mesma tendência.”

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Ele diz que isso não significa que um evento como a perda de uma pessoa querida ou um trauma de guerra não possa causar um distúrbio numa pessoa normal. “É claro que pode”, diz Izquierdo. Mas mesmo nesses casos, conhecidos como síndrome pós-trauma, ele diz que a psicanálise freudiana nem sempre é útil e às vezes pode até ter efeito negativo. “Trabalhar com a memória nesses casos pode despertar sensações terríveis que agravam o estado do paciente”, diz.

“É claro que é fundamental fazer algum tratamento psicológico, mas outras terapias não-freudianas podem ser mais indicadas.”

Apesar de reconhecer a importância do legado de Freud com a criação do tratamento pela fala – disseminado em quase todas as terapias –, Izquierdo diz que usar conceitos como o de complexo de Édipo para entender a psique é quase tão gratuito como era, no tempo de Jesus, dizer que um epilético estava possuído pelo demônio. “A psicanálise está cheia de metáforas que podem até ser úteis para descrever algumas condições humanas”, diz Izquierdo. “Mas útil não quer dizer verdadeiro.” Então como explicar o depoimento de milhares de pessoas que atestam que a análise freudiana mudou suas vidas para melhor?

O neurocientista Renato Sabattini, da Unicamp, diz ter a resposta para essa pergunta: “A psicanálise funciona, sim. Mas não pela validade de suas teorias, e sim pelo efeito placebo que a fala tem no tratamento de distúrbios da mente”. Sabattini diz que em casos de depressão e ansiedade esse efeito pode ter resultados favoráveis de até 40%.

Já em casos em que a origem orgânica seria mais evidente, como na esquizofrenia, os resultados seriam menores, cerca de 20%. “Não se trata de negar o óbvio benefício que ouvir o paciente pode trazer”, diz

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Sabattini. “Trata-se de reconhecer que não há nenhuma base científica que sustente a psicanálise.”

Como exemplo, ele cita o papel que Freud deu aos sonhos em seu livro

A Interpretação dos Sonhos, um marco na história da psicanálise, escrito em 1900. Para Freud, o conteúdo do sonho, por mais absurdo que possa parecer ao senso comum, estaria repleto de desejos inconscientes que poderiam ser identificados pela interpretação do analista. “Se você sonhasse com alguns objetos fálicos, isso poderia significar desejos sexuais implícitos, o que era típico da sociedade em que ele viveu”, diz Sabattini. “Hoje, se um sujeito passa muito tempo sem um contato sexual, ele não sonha com objetos que lembram órgãos sexuais. Ele sonha com sexo explícito.” Sabattini diz que a neurociência pode mostrar apenas que o sonho funciona como uma espécie de organizador do cérebro e diz que animais que são privados de entrar no estado de sono REM, responsável pelo sonho, passam a ter inúmeros problemas, como déficit de aprendizado.

“É claro que, se você procurar, pode encontrar no seu sonho padrões e significados para o que quiser”, diz Sabattini. “Da mesma forma que você pode dar inúmeros significados a um quadro abstrato numa exposição de arte moderna.” Mas isso é ciência?

“Não”, responde Adolf Grünbaum, considerado um dos mais ferrenhos críticos da psicanálise no mundo. Professor de Psiquiatria e chefe do departamento de Filosofia da Ciência da Universidade de Pittsburgh, Estados Unidos, ele espinafra a validade do método inventado por Freud em seus livros The Foundations of Psychoanalysis: A Philosophical Critique (Os Fundamentos da Psicanálise: Uma Crítica Filosófica, inédito no Brasil) e Validation in the Clinical Theory of Psychoanalysis (Validade na Teoria Clínica da Psicanálise, também inédito aqui). “Está claro que ela já está morrendo em países como a Alemanha, a Suíça e os Estados Unidos”, diz Grünbaum. “Talvez ela tenha uma sobrevida maior na França, Itália e Argentina, mas basta observar o decrescente número de psiquiatras que estudam para ser psicanalistas para constatar sua decadência.” Ele diz que essa tendência deve se manter graças a três fatores.

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O primeiro seria a falta de evidências de que o tratamento psicanalítico tem uma boa relação custo/benefício – para ele, há tratamentos mais rápidos e baratos, e ninguém conseguiu provar que a psicanálise é mais eficiente do que esses tratamentos. A segunda razão seria a ascensão dos novos medicamentos. Aliadas a psicoterapias de curto prazo, as novas drogas estariam tomando o lugar da psicanálise.

E o terceiro e mais controverso fator seria a falta de critérios para o credenciamento de psicanalistas, ao menos nos Estados Unidos. “Há todo um sistema corrompido e arbitrário, já que não existem pré-requisitos sólidos para alguém ser considerado um psicanalista”, diz o psiquiatra.

Para Grünbaum, um dos traços marcantes que comprovaria a falta de fundamento científico da psicanálise estaria em sua quase infinita capacidade para rebater qualquer dado que contradiga suas teorias. Costuma-se ilustrar esse traço com a história de um analista que, baseado nas palavras de um adolescente, interpreta que o garoto apresenta uma clássica síndrome de Édipo: quer matar seu pai e copular com sua mãe. Se o rapaz concordar com a interpretação, ótimo. Se a rejeitar, sua negação é uma forte prova de que ele está reprimindo seus impulsos. Essa estratégia é conhecida pelos detratores da psicanálise como “cara eu ganho, coroa você perde”, e teria sido usada por Freud e seus seguidores. “Não é à toa que nas principais universidades americanas as idéias de Freud estão saindo dos departamentos de medicina e psicologia e sobrevivem apenas nos cursos de literatura.”

Será mesmo? Pelo menos no Departamento de Neurologia da Faculdade de Medicina da Universidade de Iowa, há um neurocientista bem mais cauteloso em suas críticas à psicanálise. Conhecido no Brasil por seus livros O Erro de Descartes e O Mistério da Consciência, o neurologista António Damásio diz que, mesmo reconhecendo as limitações da psicanálise, é preciso admitir que Freud estava correto em vários aspectos sobre o cérebro. “O problema central da psicanálise não está em Freud”, diz Damásio. “Está num imenso número de psicanalistas que se fecharam ao mundo exterior, apegando-se a teorias como se fossem dogmas religiosos.”

Freud X Psicologia Social

Não deixa de ser uma ironia, mas enquanto a neurociência critica o método freudiano pela falta de objetividade, uma corrente da psicologia contemporânea diz que a psicanálise não pode ajudar o homem moderno exatamente pelo motivo oposto: ela estaria excessivamente fechada num modelo de indivíduo do tempo de Freud, não levando em consideração que há uma infinidade de outras causas que podem ser responsáveis pelos distúrbios mentais.

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Ou seja: uma acusação é de falta de solidez científica; a outra é de excesso de rigidez e cientificismo na hora de lidar com o comportamento humano. “Não adianta ficar procurando a origem do sofrimento psíquico apenas no inconsciente, como faz a psicanálise, ou numa origem orgânica, como fazem os neurocientistas”, diz Luis Antônio Baptista, professor de Psicologia Social da Universidade Federal Fluminense (UFF). “Há outros fatores no mundo real, como viver numa cidade violenta ou o medo de perder o emprego, que podem, por exemplo, levar alguém à depressão.”

O que Luis Antônio e outros psicólogos sociais criticam no método psicanalítico é a ênfase de que existe uma clara fronteira entre o indivíduo, de um lado, e o mundo externo, do outro. Ou seja: sabe essa idéia que você tem de que de há um universo só seu, bem separado da vida social? Pois é. Para esses psicólogos, essa idéia de indivíduo não tem nada de natural. “Ela é um produto de uma época e, como tal, muda de tempo em tempo e pode até mesmo variar de cultura para cultura”, diz Silvia Carvalho, professora de psicologia social da UFF. Seria inútil, por exemplo, tentar adaptar alguns conceitos psicanalíticos para um membro da comunidade ianomâmi, que teria uma visão de indivíduo completamente diferente de quem vive numa sociedade capitalista competitiva. Da mesma forma, conceitos como o complexo de Édipo seriam produto da sociedade vienense no tempo de Freud, e não “eventos naturais” válidos em qualquer época.

Michel Foucault, Gilles Deleuze e Félix Guattari são os três filósofos franceses que serviram de base para esse questionamento da psicanálise. Em 1972, Guatarri e Deleuze escreveram juntos o livro O Anti-Édipo, criticando as idéias de Freud e seus seguidores por sempre buscarem um evento ou um trauma original para enquadrar o analisado numa certa categoria. Segundo os dois filósofos franceses, essa é uma visão extremamente reducionista do homem. O problema é: se já era complicado para um psicanalista vasculhar o mundo interior de uma pessoa, como lidar com o sofrimento pessoal de alguém alargando essas fronteiras para outras fatores como a política, a economia? Parece impossível na prática, não?

A médica e analista carioca Ana Rego Monteiro garante que é perfeitamente viável. Ela diz que, em vez de privilegiar, como na psicanálise, as relações familiares e a infância como uma das fontes mais importantes para o sofrimento de alguém, o analista tem que levar em conta que outras forças como a pressão no trabalho ou mesmo a exigência de se enquadrar num padrão de beleza não devem ter necessariamente um peso menor que aqueles fatores para desencadear uma depressão. “No lugar de classificar o paciente dentro de um quadro de doença psíquica, é preciso analisar as forças que estão atuando para produzir esse sofrimento”, diz a analista. Ela propõe, por exemplo, que o aumento de transtornos como a síndrome de pânico estaria ligado às mudanças econômicas, políticas e tecnológicas do mundo moderno. “É inútil querer curar alguém apenas com medicamentos ou tentando solucionar conflitos interiores”, afirma. “É preciso entender o conjunto de outras forças políticas que agem na mente dessa pessoa.”

Freud x Nova Era

Como um bom gastroenterologista, Wilhelm Kenzler cuidava com esmero do estômago de seus pacientes. Examinava, entubava, operava e indicava remédios para aliviar a dor. Até que um dia, quando fazia seu doutorado na Alemanha, na década de 1950, ele atendeu um homem com uma intrigante dor de estômago. Depois de um exame físico detalhado, o médico não achou absolutamente nada de anormal com o paciente – pelo menos até começar a conversar com ele. “Ele sentou e me contou sua história de vida”, diz Kenzler. “Quando me disse que queria largar sua mulher, 15 anos mais velha que ele, e que seu relacionamento com ela era típico de mãe e filho, percebi qual a verdadeira origem de sua dor de estômago.”

Depois disso, o médico decidiu estudar psicanálise para compreender melhor as chamadas doenças psicossomáticas – que produzem sintomas físicos mas têm origem na mente. “Me submeti a cinco anos de análise, fiz o curso na Sociedade Brasileira de Psicanálise, mas cheguei à conclusão de que o modelo freudiano era insuficiente como resposta às minhas inquietações”, diz Kenzler. Foi então que ele tomou uma decisão cada vez mais comum entre as pessoas que procuram alternativas para o divã: trocou Freud pela espiritualidade. “A psicanálise cuida apenas de uma dimensão do ser humano, mas há outras dimensões que precisam ser levadas em consideração”, diz.

Você já deve ter notado que esse tipo de crítica a Freud é totalmente diferente das feitas pelos neurocientistas ou por novas correntes da psicologia. Não se trata de acusar a psicanálise de falta de rigor científico ou de negligência diante do contexto social. Trata-se de criticá-la por ignorar a existência de outros estados transcendentais da mente que nem a teoria de Freud nem a psicologia ocidental e muito menos a psiquiatria levam em consideração.

“Ninguém tem dúvida de que a visão de Freud sobre o funcionamento da mente e o desenvolvimento da personalidade tiveram conseqüências extraordinárias”, disse à Super o físico austríaco e professor da Universidade de Berkeley, na Califórnia, Fritjof Capra. Considerado um dos mais famosos críticos da visão mecanicista da ciência ocidental, ele diz que a psicanálise freudiana terminou se fechando para as experiências religiosas e místicas. “Apesar de Freud ter se interessado pela religião e pela espiritualidade durante toda a sua vida, ele chegou a considerar a religião uma neurose da humanidade”, diz o físico. “Isso fez com que experiências dessa natureza passassem a ser enquadradas até mesmo como sintomas de uma psicose.”

A americana Suzan Andrews, monja de meditação radicada em São Paulo, diz que essa limitação da psicanálise freudiana não existe à toa. “De William James a Freud, a psicologia ocidental tem pouco mais de 200 anos”, diz Suzan. “Já a psicologia oriental estuda esses estados mentais há cerca de 7000 anos.”

Suzan, que passou 30 anos entre a Índia e a China estudando técnicas de meditação, diz que o método freudiano de cura pela fala não é o melhor caminho para tratar do sofrimento da mente. “Em vez de alívio, ficar falando de suas angústias despende ainda mais energia do corpo”, diz Suzan. “A meditação pode trazer resultados melhores que o tratamento verbal.” Mas isso, por acaso, não seria uma fuga dos problemas existenciais que a psicanálise traria à tona?

Ela garante que não. “Não se trata de fugir dos nossos conflitos internos”, diz Suzan. “Trata-se de fortalecer a mente para que você responda a esses conflitos com compaixão, até mesmo porque a origem deles não está necessariamente restrita a passagens da infância.”

A insistência em procurar a origem da infelicidade humana com base apenas nessa vida é, para as correntes espiritualistas, a maior limitação da psicanálise. Isso mesmo: para eles, boa parte do que você é hoje em dia é produto de inúmeras reencarnações.

É nisso que acreditam, por exemplo, as milhares de pessoas que lêem e seguem a filosofia budista do Dalai Lama, líder espiritual do povo tibetano. (Leia a reportagem de capa da

Super “A Vida Segundo o Dalai”, edição de agosto de 2001.) O psiquiatra americano Howard Cutler, que escreveu com o Dalai Lama o best-seller A Arte da Felicidade, resume assim a principal semelhança e a maior diferença entre o budismo e a psicanálise: “A semelhança é que as duas filosofias acreditam que há algo como o inconsciente que registra eventos do passado e moldam nosso comportamento”, diz Cutler. “A diferença é que, segundo o budismo, esses registros podem ter origem em vidas passadas.” Nesse caso, pouco adiantaria ir a um analista para compreender seus problemas atuais trabalhando com lembranças dessa vida. E talvez por isso exista cada vez mais gente buscando a felicidade e o auto-conhecimento na sua própria religiosidade – em detrimento do divã.

O futuro de Freud

É bem provável que a essa altura você já esteja pensando em como vai dizer a seu psicanalista que pretende suspender suas sessões. Mas será que os críticos de Freud conseguirão, realmente, enterrá-lo no passado? “Freud sobreviverá”, garante o historiador Peter Gay. Quanto às críticas de que a psicanálise não tem base científica e sempre arruma um jeito de ter resposta para tudo, ele rebate: “Esse ataque é extremamente simplista. Freud deixou clara sua aversão ao analista com respostas prontas para tudo. Só um irresponsável se comportaria dessa forma.” O problema é: quem pode definir quais parâmetros um terapeuta tem que seguir para ser chamado de psicanalista?

“Por enquanto, ninguém”, diz Márcio Giovanetti, presidente da Associação Brasileira de Psicanálise. Como a profissão não é regulamentada no Brasil, ele diz que qualquer um pode dizer que é psicanalista – mesmo que não tenha lido sequer um parágrafo da obra de Freud. “Esse é um dos motivos pelos quais algumas pessoas terminam descrentes quanto à psicanálise”, diz Giovanetti. “Mas é um absurdo pôr em dúvida a validade dos conceitos de Freud pela atuação de maus profissionais. Até porque isso pode ocorrer em qualquer profissão.”

Quanto à acusação de que Freud criou uma espécie de religião dogmática, os psicanalistas lembram que ele fez inúmeras revisões de suas teorias quando elas não se adequavam ao tratamento clínico. E mais: Freud teria premeditado o papel que as drogas poderiam ter, num texto de 1938, um ano antes de sua morte, quando escreveu que “o futuro poderá nos ensinar a exercer uma influência direta (na mente) por meio de substâncias químicas”.

O psicanalista e professor do departamento de Psiquiatria da Unicamp, Mário Eduardo Pereira, diz que é preciso acabar com essa idéia de que de um lado está a psiquiatria e, do outro, a psicanálise. “Assim como alguns psicanalistas podem ter uma devoção quase religiosa aos modelos de Freud, há um discurso não menos religioso de que os novos medicamentos podem resolver tudo sozinho.”

A historiadora e psicanalista francesa Elisabeth Roudinesco é uma das principais críticas desse discurso da psicofarmacologia. Em seu livro Por que a psicanálise?, ela lembra que nem os criadores desses medicamentos acreditavam que eles seriam uma espécie de pílula mágica para os males existenciais. O psicanalista Renato Mezan, professor da PUC de São Paulo, concorda: “Essa questão de que existe uma oposição entre a neurociência e a psicanálise está mal colocada” diz. “Não há nenhuma incompatibilidade entre as duas, ao contrário: drogas como os antidepressivos podem ajudar a criar melhores condições para que o paciente possa ser analisado.”

O historiador Peter Gay diz que, no futuro, um caminho promissor para o estudo da mente terá até que contar com a parceria de neurologistas e psicanalistas. “Já existem pessoas nesse momento que estão tentando formular uma nova teoria da mente que possa congregar o trabalho dos neurologistas com o dos psicanalistas”, diz Gay.

“O problema é que falta um grande inovador como Freud para unir a produção dessas diferentes áreas.” O psiquiatra Henrique Del Nero, da USP, diz que se a psicanálise não fizer isso ela se tornará apenas “uma forma sofisticada e cara de buscar autoconhecimento.” Mas, afinal, as idéias de Freud morreram ou não?

Talvez tenha sido o americano John Horgan, ex-editor da revista Scientific American e bastante conhecido pelo seu ceticismo, quem tenha dado a resposta mais perspicaz a essa pergunta. Em seu livro A Mente Desconhecida, ele diz que não, Freud ainda não está morto. Mas, em vez de atribuir essa sobrevivência à validade intrínseca das teorias do fundador da psicanálise, ele aponta uma razão mais singela para a persistência das idéias de Freud: “Se os modelos da psicanálise são deficientes, a neurologia também estaria longe, muito longe de desvendar o maior mistério da ciência: a mente humana. E, para aumentar o nível de felicidade de alguém que sofre, vale o que funcionar, seja a ciência ou não. É isso, aparentemente, que as pessoas estão dizendo aos estudiosos.

 

Freud explica ou não explica?

 

Inconsciente

Apesar de não ter sido o primeiro a usar esse conceito, Freud inovou ao tratá-lo como uma espécie de depósito dos nossos desejos reprimidos ligados à sexualidade ou à agressão que ficam atuando sobre a mente consciente. Ao ouvir o paciente falar livremente no divã, o psicanalista o ajuda a compreender como a pressão do inconsciente está produzindo seus distúrbios para que ele possa se libertar deles.

Outras correntes, como a psicologia cognitiva, também trabalham com o conceito do inconsciente. A diferença é que, nesse caso, o inconsciente em princípio não poderia ser acessado pela consciência. Ele seria uma espécie de processador paralelo inerente à mente humana – e não um repositório de desejos reprimidos.

 

Sonhos

Com a publicação do seu livro A Interpretação dos Sonhos (1900), Freud diz que o sonho é a linguagem simbólica pela qual se manifesta o inconsciente, com todos os seus conflitos não resolvidos e desejos reprimidos.

A neurociência vê o sonho como um mecanismo auto-regulador do nosso cérebro. Ele faria a digestão dos acontecimentos do dia organizando quais informações devem ser guardadas nos arquivos da memória de longa duração e apagando as que não foram usadas.

 

Infância e sexualidade

Freud acredita que a mente adulta vai sendo moldada na infância, de acordo com as experiências de prazer e desprazer que ela vivencia em cada fase do desenvolvimento da libido – libido, para Freud, é a energia corporal expressa pelos instintos sexuais. Ela já estaria presente no bebê, por exemplo, ao se relacionar com seus pais. Se o bebê for menino, ele deseja ter a mãe para si e enxerga o pai como um rival que reprime seu desejo (complexo de Édipo). Já a menina desejaria o pai – mas também reprime essa vontade por temer perder o amor de sua mãe por isso. Mesmo permanecendo ocultos no inconsciente, esses desejos poderiam gerar distúrbios na mente do adulto.

Ainda que reconheçam o pioneirismo de Freud em descobrir que a criança também sente prazer sexual (não expressa ainda pelos órgãos genitais), seus opositores dizem que ele exagera na atenção que dá às relações da criança com seus pais como determinantes para definir o equilíbrio da vida mental do adulto. Para esses críticos, essa abordagem seria válida apenas no conceito da família da sociedade vienense em que Freud viveu.

 

Id, superego e ego

Para Freud, a personalidade está dividida em três partes. A primeira delas, o id, seria a mais profunda da psique humana. Lá estariam depositados os impulsos instintivos dominados pelo desejo de prazer. Ou seja: é o lado animal do homem, quase todo insconsciente. Já o superego seria uma espécie de polícia interna. É aquela voz que parece ser o senhor da razão, julgando nossos atos e, na maioria das vezes, censurando-nos. No meio do conflito entre os desejos do id e a censura do superego, estaria o ego. O ego é a parte da personalidade que está em contato direto com a realidade externa. Criado a partir do id, tem a função de garantir a saúde, a segurança e a sanidade da pessoa.

Alguns críticos dizem que esse modelo de Freud não tem nenhuma contrapartida com a neurociência – mas a neurociência tampouco parece ter algum modelo completo do funcionamento da mente. Enquanto psicólogos sociais consideram essa divisão reducionista, os espiritualistas dizem que a mente não está dividida apenas em três partes. Haveria outras forças, transcendentais, atuando sobre ela.

 

Para saber mais

 

NA LIVRARIA

Por que a Psicanálise?, Elisabeth Roudinesco, Jorge Zahar Editor, 1994

 

Freud – Uma Vida para o Nosso Tempo, Peter Gay, Companhia das Letras, 1990

 

A Mente Desconhecida, John Horgan, Companhia das Letras, 2002

 

Freud, Sigmund Freud, Abril Cultural, 1978

 

Folha Explica Freud, Luiz Tenório Oliveira Lima, Publifolha, 2001

 

O Ponto de Mutação, Fritjof Capra, Cultrix, 2000

 

A Arte da Felicidade, Dalai Lama e Howard Cutler, Martins Fontes, 2002

 

The Freud Encyclopedia, Edward Erwin, Routledge, 2002

 

Tempo de Muda, Renato Mezan, Companhia das Letras, 1998

 

Dicionário de Psicanálise, Elisabeth Roudinesco, Jorge Zahar Editor, 1998

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