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A santa da discórdia

A imagem de Nossa Senhora da Esperança, que fez a Arquidiocese do Rio de Janeiro brigar com as escolas de samba no Carnaval, também provoca controvérsia na História. Seria ela, mesmo, a santa que descobriu o Brasil?

Por Da Redação Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
Atualizado em 31 out 2016, 18h22 - Publicado em 31 mar 2000, 22h00

Lucia Calasso, de Belmonte, Portugal

Carnaval e fé nunca se deram bem. Na véspera da última festa profana, a Arquidiocese do Rio de Janeiro pediu à polícia a apreensão de um painel com a imagem de Nossa Senhora da Esperança – a Santa protetora de Pedro Álvares Cabral – que participaria do desfile da Escola de Samba Unidos da Tijuca no sambódromo. A escola recorreu à Justiça e ganhou, mas acabou renunciando à alegoria para não ofender a Igreja. Resultado: nunca o ícone foi tão falado. O mito saiu da História e invadiu a avenida. Só que os historiadores não chegaram a um acordo até hoje sobre o que é fato ou lenda na crença da santa do Descobrimento. Ela continua a gerar controvérsia 500 anos depois.

Só a população da esquecida Belmonte, 250 quilômetros a nordeste de Lisboa, tem poucas dúvidas. A imensa maioria dos 7 411 moradores da cidade onde Cabral nasceu acredita que, em 1500, o navegador trouxe ao Brasil, no camarote do seu navio, a mesma estátua de pedra que está, hoje, no altar da Igreja da Sagrada Família, no centro da cidade. Alimentada por fé e superstições, a imagem da santa virou o foco de um culto. Muitos acreditam que ela possui poderes milagrosos. Duas vezes, em 1960 e 1969, a população cercou a igreja para impedir que ela viajasse para o Rio de Janeiro. Os belmontenses morrem de medo de perdê-la para o Brasil.

Para eles, a santa é forte. Sua graça teria protegido Cabral nos 43 dias de viagem até a Bahia. Só que no dia 26 de abril de 1500, quando os portugueses ergueram uma cruz e um altar na Praia da Coroa Vermelha, para rezar a primeira missa no Brasil, a estátua não estava presente. Nem a carta do escriba Pero Vaz de Caminha, nem a de Mestre João nem a do piloto anônimo – os três testemunhos diretos que existem da descoberta – falam da presença da imagem na missa.

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Sem comprovação

Na verdade, não existe documento que mencione a viagem da santa ao Brasil ou que prove que a estátua era de Cabral. Há prova, sim, de que ela era de devoção da família. Em 1960, foram descobertos afrescos do século XVI na capela de Santiago, construída pelos antepassados de Cabral em Belmonte, onde se vêem três santos: Nossa Senhora da Esperança, São Tiago e São Pedro. Segundo o historiador português Manuel Marques, eles foram pintados por ordem dos pais de Cabral, Fernão Cabral e Isabel de Gouveia, em agradecimento pela volta do filho a Portugal. Marques conta que era costume pintar capelas com o santo de mesmo nome da pessoa homenageada:

“São Pedro representaria Pedro Álvares, Nossa Senhora da Esperança é a santa que o protegeu durante a viagem e Tiago, o padroeiro da capela”.

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Em 1958, o historiador e ex-diretor do Museu de Arte Sacra da Universidade Federal da Bahia padre Clemente Mariano da Silva Nigra examinou o estilo e os materiais da estátua de pedra e datou sua fabricação no século XV, antes de 1500. Mas o historiador português Alexandre Alves afirma que a imagem foi esculpida por João de Ruão, um artista francês que montou oficina em Portugal em 1528. Na data, Cabral já havia falecido. “Ruão tinha estilo inconfundível”, disse à SUPER. “Estou convicto de que fez a estátua. A história não passa de uma lenda que tomou conta dos espíritos.” Outra pioneira nos estudos sobre a santa, a historiadora Maria Regina Simões de Paula, da Universidade de São Paulo, discorda. Para ela, “Silva Nigra atestou com minúcia que a imagem foi esculpida na época dos descobrimentos”.

Uma análise química do Instituto José Figueiredo, em Lisboa, resolveria a questão. Mas talvez poucos a desejem. O mito, segundo Manuel Marques, dispensa detalhes: “Os historiadores fazem História. Mas o que conta para o povo é a tradição”.

Um gigante muito pouco conhecido

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Pedro Álvares Cabral descendia de uma família nobre, dedicada aos reis portugueses. Por isso, depois de se destacar em lutas contra os mouros, foi escolhido por dom Manuel I, o Venturoso (1469-1521), para comandar a expedição que descobriu o Brasil.

Desde 1245, os Cabral viviam em Belmonte. O trisavô de Cabral, Álvaro Gil, participou da Batalha de Aljubarrota, em 1385, contra os castelhanos, que deu independência a Portugal. O bisavô, Luís Álvares Cabral, primeiro governador de Belmonte, também era um exemplo de bravura. Lutou em Aljubarrota e participou da tomada da cidade africana de Ceuta, em 1415.

Fernando Álvares, o avô de Cabral, era chefe da guarda do infante dom Henrique de Coimbra (1394-1460), o fundador da Escola de Sagres. Morreu por ele ao colocar-se entre o príncipe e a espada de um mouro. Em agradecimento, a família recebeu mais terras em Belmonte e o filho de Fernando, Fernão Cabral, foi criado na corte do rei Afonso V (1432-1481).

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Esse Fernão, pai do descobridor do Brasil, tinha o apelido de Gigante, media 1,90 metro. Também lutou contra os espanhóis e foi recompensado com mais terras e dinheiro. Seus filhos, João Fernandes e o nosso Pedro Álvares (nascido em 1467), também foram criados na corte. O descobridor do Brasil teria herdado do pai o 1,90 metro.

Apesar dos serviços prestados, em 1501, de volta das Índias, Pedro Álvares foi preterido pelo rei, que deu o comando da armada enviada ao Oriente, no ano seguinte, a Vasco da Gama, o descobridor da rota marítima que fazia a volta na África. Magoado, Cabral mudou-se para Santarém, terra da mulher, Isabel de Castro, onde morreu em 1520. Teve cinco filhos, mas pouco se sabe sobre sua biografia. Um incêndio em 1807, durante a ocupação de Santarém pelas tropas francesas de Napoleão, destruiu quase toda a documentação sobre o navegador.

Sobrinhos ilustres

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Hoje, Cabral tem, em Portugal, pelo menos dois sobrinhos-netos notáveis. O historiador Bernardo Vasconcelos dirige a Torre do Tombo, em Lisboa, o maior arquivo histórico português, e desde menino representa a família em homenagens. Seu primo, Nuno da Câmara Pereira, também da décima sexta geração de descendentes do herói, é um famoso cantor de fados. “Tenho orgulho de ter o descobridor como ancestral”, disse Nuno à SUPER. Além de apaixonado pelo Brasil, o artista conhece tudo o que se sabe sobre Pedro Álvares. “Na família, ninguém cultiva a glória dele como eu”, afirma. Tanto que, para homenagear o antepassado, Nuno estará na Bahia neste 26 de abril. Vai participar da missa do descobrimento que será rezada em Porto Seguro. Quinhentos anos depois.

Algo mais

A escultura que está na Igreja da Sagrada Família, em Belmonte, mede 1 metro de altura, é feita de pedra-de-ançã, um tipo de pedra-sabão, e pesa 90 quilos. Nossa Senhora segura no colo um Menino Jesus, que estende a mão a uma pomba branca pousada no braço de sua mãe. A pintura não é mais a original e um buraco foi cavado na base da estátua para facilitar o transporte em procissões.

Qual a verdadeira cara de Cabral?

Ninguém sabe qual era a fisionomia de Pedro Álvares. Veja as hipóteses mais conhecidas.

Em 1520, o rei dom Manuel I construiu o Mosteiro dos Jerônimos, em Lisboa, e gravou o rosto de heróis descobridores portugueses na fachada. Segundo o historiador brasileiro Francisco Varnhagen, a figura representa Cabral

O quadro Adoração dos Reis Magos, do pintor Vasco Fernandes, foi feito entre 1501 e 1506. Cabral seria o personagem ajoelhado. Pode ser o único retrato verdadeiro de Pedro Álvares

Esta imagem de Cabral apareceu pela primeira vez no livro Retratos e Elogios de Varões e Donas, editado em Lisboa em 1807. Impressa na antiga nota de 1 000 cruzeiros, virou a face oficial de Pedro Álvares

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