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As origens perdidas de Game of Thrones

Conheça os mitos fantásticos e sanguinolentos da Europa medieval que inspiraram a maior das sagas modernas.

por Reinaldo José Lopes Atualizado em 19 ago 2022, 15h16 - Publicado em 12 abr 2019 14h29

Gigantesco, complexo, multifacetado – apenas adjetivos assim conseguem descrever o mundo de Game of Thrones, a série inspirada nos sete livros de George R.R. Martin, As Crônicas de Gelo e Fogo.

Mas Martin não tirou todas essas hipérboles do nada. O escritor usou como inspiração histórias que são contadas no continente europeu há pelo menos mil anos.

Por trás de tantos enredos inacreditáveis, é possível reconhecer as mitologias nórdica e celta, além das primeiras obras da literatura fantástica. Dragões, cavaleiros, troca-peles, os Outros: já estava tudo lá. Vamos conhecer essas sagas milenares a partir de agora.


O inverno está chegando

Em Game of Thrones, os nobres da Casa Stark vivem avisando faz milênios: o inverno está chegando. Acontece que o bordão dos senhores do norte de Westeros poderia muito bem servir como lema da mitologia nórdica, que também prevê a chegada de uma estação fria de consequências cataclísmicas em um futuro distante.

Pelo menos, é isso o que dizem os principais textos míticos escritos em islandês antigo, como a Edda em Prosa, compilada pelo erudito Snorri Sturluson, no fim do século 12, começo do 13. Segundo Snorri, as divindades de Asgard (o mundo onde vivem os deuses vikings), como Thor e seu pai Odin, tinham tomado conhecimento de profecias assustadoras sobre o Ragnarök, a Perdição dos Deuses, que destruiria não apenas o palácio divino deles, mas também todos os Nove Mundos que formam o cosmos.

Como os inimigos jurados de Asgard eram os gigantes do gelo e os monstros gerados pelo deus trapaceiro Loki (que também tem sangue de gigante), a ordem cósmica seria rompida inicialmente por uma onda de frio severo, o chamado Fimbulvetr (“inverno extremo”, em islandês). Com uma duração equivalente a seis invernos normais – que já não são nenhuma moleza na Escandinávia, como a gente sabe –, o Fimbulvetr ajudará a desencadear guerras que não respeitarão nem os elos sagrados entre parentes. Com o mundo enfraquecido por esses desastres, os gigantes do gelo e Loki atacarão os deuses de Asgard com força máxima e acabarão com toda a Criação, segundo a profecia.

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Repare agora como Martin alterou alguns dos elementos do mito para dar dramaticidade à sua história. Em primeiro lugar, Westeros vive sob a ameaça permanente do ciclo meio doido de longos verões e longos invernos – não é incomum que muita gente acabe morrendo de fome e frio durante os períodos invernais “comuns”.

Além desse risco mais prosaico, porém, os habitantes dos Sete Reinos, em especial nos domínios dos Stark, conhecem bem o mito da Longa Noite. Nesse inverno sobrenatural, que sobreveio entre 6 e 8 mil anos antes do início da cronologia da série, os temidos Outros teriam atacado os domínios dos seres humanos e só foram derrotados aos 45 minutos do segundo tempo, digamos, graças a uma aliança entre os Primeiros Homens (a mais antiga raça humana a habitar o continente de Westeros) e os misteriosos filhos da floresta. Tudo indica que, nas temporadas finais da série, vamos assistir a um repeteco da Longa Noite.

Ou seja, em Westeros, a Longa Noite já aconteceu e vai se repetir. Nos mitos escandinavos, o Fimbulvetr e o Ragnarök também têm uma natureza cíclica. Nos momentos finais do desastre, uns poucos deuses sobreviventes da luta contra Loki, como os filhos de Thor, conseguem se safar, junto com um derradeiro casal humano, e são esses sortudos que repovoam o cosmos. O ciclo de destruição e criação, portanto, é bastante similar na mitologia antiga e na moderna. (Sem falar nos gigantes: você notou que em Game of Thrones eles também reapareceram assim que o tempo começou a esfriar?).


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Sangue, sexo e tripas

Theon Greyjoy

Comparada com outras sagas fantásticas clássicas, como O Senhor dos Aneis ou as Crônicas de Nárnia, GoT é uma história bem mais… adulta. Sexo, sangue, violência extrema, sacanagem: tudo isso bate cartão o tempo todo na obra de Martin.

Nos livros, por exemplo, o autor não tem o menor pudor de gastar alguns parágrafos descrevendo uma sessão de sexo oral em Theon Greyjoy (antes de ele ser castrado, é claro) ou o fedor que emana das tripas semiexpostas do rei moribundo Robert Baratheon. Nesse ponto, Martin não é exatamente um cara inovador, mas um purista: ele, na verdade, está resgatando o tom realista das mitologias originais.

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J.R.R. Tolkien, o pai dos hobbits, e os outros pioneiros da fantasia, ainda muito influenciados pela mentalidade pudica do fim do século 19, é que tinham cortado as passagens viscerais e indecentes dos mitos. O quão viscerais e indecentes eram essas histórias? Veja aqui alguns exemplos:

O deus trapaceiro Loki, do panteão nórdico, a certa altura se transforma numa égua para ser emprenhado por um garanhão.

Os anões Fjalar e Galar matam o mais sábio dos deuses escandinavos, chamado Kvasir, e usam seu sangue para fabricar hidromel.

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O herói irlandês Cú Chulainn resolve punir um adversário esmagando-o com tanta força que suas fezes são espalhadas por todo lado. “Pelo resto de seus dias, seus intestinos nunca mais funcionaram direito”, diz o mito.

A princesa irlandesa Deichtine fica grávida do deus Lug, o pai da moça resolve casá-la com um de seus nobres e ela, com vergonha de transar grávida com o marido, provoca um aborto.

E até o nobre rei Arthur tenta matar o próprio filho, fruto de uma relação incestuosa com sua irmã.


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Corvos na floresta

Corvo de 3 olhos

Jamie Lannister

Você conhece Bran Stark, o caçula dos herdeiros do Norte, que foi empurrado de uma janela por Jaime Lannister na primeira temporada, ficou paraplégico e aprendeu a viajar no tempo e espaço tomando posse de corpos (humanos e animais) na sexta temporada. Seu nome completo é Brandon Stark, mas não é por acaso que todo mundo o chama de Bran.

Isso porque, em galês medieval, brân significa “corvo” – e sua recém-adquirida habilidade surgiu justamente graças ao elo mágico que tem com um misterioso corvo de três olhos. (Quem leu os livros sabe: a tal ave é ligada ao povo dos filhos da floresta, e originalmente foi um lorde humano dos reis Targaryen).

Não por coincidência, o garoto Stark tem um xará famoso na mitologia do País de Gales. A história do rei Bran Bendigeidfran (“Bran, o Abençoado”) é narrada na coletânea medieval conhecida como Mabinogion.

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Em um dos textos, Bran é apresentado como o monarca de toda a ilha da Bretanha – o que corresponde hoje à Inglaterra, ao País de Gales e à Escócia. Numa guerra contra os irlandeses, o rei fica imobilizado graças a uma lança envenenada que acerta seu pé. O governante então pede a seus companheiros que cortem sua cabeça e a levem de volta para Londres – e, durante décadas, a cabeça do rei Bran continua capaz de falar e raciocinar, prevendo inclusive o futuro e orientando seus amigos. É quase impossível não se lembrar de Bran Stark, que não consegue mais movimentar seu corpo, mas, ao mesmo tempo, adquire uma sabedoria cada vez mais profunda.

Hugin e Munin

A escolha do corvo como um animal telepata também não é à toa. Nas mitologias antigas da Europa,  Hugin (“Pensamento”) e Munin (“Memória”) são dois corvos que pertencem a Odin, o mandachuva dos deuses nórdicos. A função deles é voar pelos Nove Mundos e trazer até Odin notícias sobre tudo o que acontece no cosmos.


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Trocando de Pele

Bran pode ser mestre na hora de prever o futuro ou visitar o passado, mas todos os seus irmãos (incluindo o suposto bastardo Jon Snow, que na verdade não é nada disso, como descobrimos na sexta temporada de Game of Thrones) conseguem atuar como troca-peles.

Ou seja, fundem a sua consciência à de um animal, controlando o bicho ou experimentando as mesmas sensações que ele em tempo real. Nos livros, os troca-peles que conseguem se unir a lobos são chamados de wargs. Ambos os termos têm origem nos clássicos da fantasia do século passado e também na mitologia nórdica.

Beorn

Comecemos com “troca-peles” – uma expressão usada por J.R.R. Tolkien em sua aventura infanto-juvenil O Hobbit. No livro, o troca-peles por excelência é o feroz guerreiro humano Beorn, que é capaz de se transformar num gigantesco urso negro para confrontar seus inimigos (não por acaso, beorn é uma palavra do inglês antigo que significa “urso” e também um termo poético para designar um grande guerreiro).

Tanto nesse livro quanto em O Senhor dos Anéis, Tolkien batizou uma raça de lobos enormes, inteligentes e malévolos de “wargs”.Nas antigas histórias escandinavas, há várias menções aos berserkir (“camisas de urso”), guerreiros cuja fúria praticamente os transforma em bichos. Já vargr, em islandês antigo, um termo que originalmente significava “lobo”, passou a designar seres humanos fora da lei. Martin preservou o elo humano-animal, mas evitou que seus personagens literalmente virassem bichos.


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Dragões pós-modernos

Os dragões de Game of Thrones são uma grande maçaroca mitológica – e Martin os descreve de uma maneira que nenhum escritor da Antiguidade ou da Idade Média faria.

Antes de mais nada, ao analisar essas influências, é importante traçar uma distinção entre os dragões do Extremo Oriente, de um lado, e os da Europa e do Oriente Médio, de outro.

Dragão oriental

Em países como a China, o Japão e o Vietnã, dragões são “mocinhos” – ou, para ser mais exato, simbolizam forças benevolentes do cosmos, como a chuva, os rios e a fertilidade. Costumam também estar associados à figura do imperador chinês. Além disso, têm formato completamente diferente do de Drogon, Rhaegal e Viserion – são parecidos com serpentes: alongados e raramente alados.

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Já os dragões europeus e do Oriente Médio são sempre vilões: representam forças naturais hostis, o caos primordial do Universo ou, após a chegada do cristianismo, o próprio Demônio.

Embora as representações ocidentais mais antigas dos monstros também lembrem bastante serpentes gigantescas (o que, aliás, deve ter sido o significado original do termo grego drákōn), o dragão europeu acabou assumindo a forma de quadrúpede alado que todos conhecemos e amamos.

Patas nas asas

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Na série de TV, os bichos adquiriram um aspecto ainda mais “morceguesco”, com as patas da frente terminadas em asas – o que seria até mais cientificamente correto, uma vez que espécies de vertebrados com seis membros não existem. Portanto, daria para pensar nos dragões de Game of Thrones como uma fusão dos dragões ocidentais e orientais? Talvez – principalmente, se levarmos em consideração a aliança que os dragões têm com a dinastia dos Targaryen, além da aparência física dos monstros.

Mas uma coisa que não existe nas mitologias antigas – tanto do Leste quanto do Oeste – são seres humanos cavalgando dragões: ou eles são inimigos impiedosos que têm de ser exterminados a qualquer custo, ou criaturas veneráveis e dignas de adoração. Foi George R.R. Martin que aperfeiçoou essa espécie de cavalos turbinados, meio bons, meio maus.


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Guerreiros sagrados

Por enquanto, falamos de inspirações mitológicas pagãs (ou seja, politeístas, nas quais havia a crença em diversos deuses). Mas há também um elemento importantíssimo do universo de Martin: a cavalaria, que surgiu no mundo real e tem origens no monoteísmo cristão.

Na Europa medieval, os sujeitos que eram “sagrados cavaleiros”, como se dizia, juravam ser leais a seus senhores, defender os ensinamentos da Igreja Católica, proteger os indefesos (em especial as damas, os órfãos e os pobres) e ser misericordiosos com seus inimigos. É basicamente o mesmo que se espera dos cavaleiros de Westeros.

Como seria absurdo enfiar o catolicismo num universo tão diferente quanto o de Game of Thrones, Martin o substituiu por outra religião institucionalizada e com tanto ímpeto conquistador quanto o catolicismo medieval: a chamada Fé dos Sete. Assim como os cruzados da Europa, que invadiram a Terra Santa dispostos a expulsar os “infiéis” muçulmanos de lá, os primeiros cavaleiros a colocar os pés em Westeros foram os seguidores da Fé dos Sete, que queimaram as florestas sagradas dos Primeiros Homens, que acreditavam nos chamados Deuses Antigos.

Ao assumirem oficialmente o título de “Sor”, os cavaleiros de Westeros são ungidos com sete óleos, cada um correspondente às sete divindades: Pai, Mãe, Guerreiro, Donzela, Ferreiro, Velha e Estranho. O curioso é que a teologia da Fé dos Sete não enxerga essas figuras como deuses separados, mas como aspectos do mesmo princípio divino – uma ideia que lembra o que dizem certas vertentes do hinduísmo ou a doutrina cristã da Santíssima Trindade (Pai, Filho e Espírito Santo). Na mitologia de Martin, há até ordens de cavaleiros com funções diretamente religiosas, como os Filhos do Guerreiro e os Pobres Irmãos, equivalentes aos Templários medievais.


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Stark/York x Lannister/Lancaster

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(Gabriel Goés/Superinteressante)

Pois é, a semelhança de nomes não é mera coincidência. O conflito entre os York e os Lancaster, dois ramos da família real inglesa que surgiram a partir do século 14, dilacerou a Inglaterra entre 1455 e 1487 e ficou conhecido como a Guerra das Rosas (por causa do emblema das duas dinastias, a rosa branca dos York e a rosa vermelha dos Lancaster).

O próprio Martin já declarou diversas vezes que essa briga é uma das principais inspirações para as disputas de poder em Game of Thrones, ao lado de outras contendas medievais, como a Guerra dos Cem Anos, entre a Inglaterra e a França. As semelhanças vão além dos nomes das famílias e da ambientação geral – a carreira de alguns protagonistas da Guerra das Rosas serviu de base para certos detalhes do conflito de Westeros.

Ricardo III

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Vejamos, por exemplo, o caso de Richard, 3º Duque de York (1411-1460), um dos nobres mais influentes da Inglaterra durante o governo de seu parente mentalmente instável, Henrique 6º.

O duque seria o “Ned Stark” da vida real: foi nomeado Lorde Protetor do reino quando Henrique sofreu um colapso nervoso e bateu de frente com a esposa manipuladora e violenta do monarca, Margaret de Anjou (a versão francesa de Cersei, digamos). Richard chegou a ser reconhecido como herdeiro do trono, mas foi derrotado em combate por forças reunidas pela rainha, e sua cabeça, fincada numa estaca assim como a de Ned, foi exibida nos portões da cidade de York.

Pouco tempo depois, porém, um dos filhos do duque (nosso Robb Stark inglês) derrotou de forma arrasadora os exércitos dos Lancaster e tomou para si a coroa, reinando com o título de Eduardo 4º.

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Eduardo 4º

O novo rei, porém, chocou seus súditos ao se casar com a jovem e bela viúva Elizabeth Woodville, de uma família nobre relativamente desimportante (mais ou menos como Robb faz nos livros. Na série de TV é ainda pior, já que ele se casa com uma estrangeira). Desgostosos com a influência da nova rainha, boa parte dos nobres ingleses se rebelou, o que levou à instabilidade política e a novas guerras depois da morte de Eduardo 4º (pelo menos esse escapou de ser assassinado e ter uma cabeça de lobo costurada no pescoço).

Entre tantas referências históricas, literárias e folclóricas, dá para dizer que Game of Thrones acabou criando uma mitologia própria – um apanhado de lendas versão premium, digamos assim. Mesmo quem torcia o nariz para contos de princesas e monstros teve de se render às aventuras de Westeros. Quem saiu ganhando fomos todos nós.

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