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As peças jogam e morrem

Com a Guerra Fria, as disputas no esporte foram acirradas pelos esforços de um bloco para superar o outro

Por Da Redação Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
Atualizado em 31 out 2016, 18h24 - Publicado em 19 fev 2011, 22h00

Texto Orlando Miranda

Na grande avenida, entre os hotéis e o palácio de Esporte, todos os sinais estão verdes. Quem transita pelas ruas laterais, de carro ou a pé, espera pacientemente que mudem de cor. Alguns policiais dão explicações aos curiosos. Mulheres, marinheiros aposentados ou em férias dirigem-se para beira-mar, para o Passeio das Esculturas, aproveitando o dia de verão polar. Nesse dia, 11 de julho de 1972, faz 15 graus em Reykjavik, uma pequena cidade de 100 mil habitantes no sudoeste da ilha do gelo, Iceland, ou Islândia.

Os hotéis estão cheios de turistas que não visitam as belezas do país. Alguns parecem ocupados apenas em vigiar os outros: são agentes da CIA e da KGB, americanos e soviéticos, na árdua tarefa de descobrir o que os adversários estão fazendo. E há os mais falantes, frequentadores dos bares e da noite, de dia ocupados com câmeras, holofotes, máquinas fotográficas e bloco de notas: repórteres, jornalistas, centenas deles. Uma verdadeira muvuca e os turistas restantes só falam do que está para acontecer.

Afinal, uma frota de limusines passa e os sinais se abrem. Podia-se pensar tratar-se de altos dignitários em visita oficial ao país, mas os policiais já explicaram aos transeuntes: é apenas um jogador de xadrez a caminho do Laugardalshoell Sports Exhibition Palace. Exigir sinal aberto em todo o percurso foi apenas uma das dezenas de exigências feitas por Bobby Fischer para enfrentar Boris Spassky pelo título mundial de xadrez. Também discutiu o valor de sua bolsa até o último minuto e exigiu que sua cadeira predileta fosse trazida de Chicago. Os soviéticos desmontaram a cadeira procurando computadores que pudessem auxiliá-lo no jogo.

Fischer chega atrasado ao recinto do jogo. Evita os repórteres e o burburinho dos espectadores. Seu relógio de jogo aponta 7 minutos e o primeiro movimento de Spassky com as brancas já foi feito, o peão do rei deslocado de sua casa original. Fischer cumprimenta rapidamente Lothar Schmid, alemão árbitro do jogo, também a seu adversário sentado à frente do tabuleiro, movimenta uma peça – um cavalo – e trava o relógio. Começava o que a imprensa chamaria de match do século.

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O mundial disputava-se em melhor de 24 partidas, vencendo quem primeiro obtivesse 12,5 pontos (um ponto por vitória, meio ponto por empate). Em cada partida, cada jogador podia utilizar duas horas para fazer 40 lances, findas as quais, o jogo seria suspenso restando secreto o último movimento.

A partida recomeçaria no dia seguinte. Portanto, o match todo duraria uns 40 dias em que o russo Boris Spassky e o americano Robert Fischer deveriam ficar frente a frente. Difícil imaginar dois personagens mais diferentes, mas a disputa que os envolvia marcaria sua vida para sempre. E, de certo modo, destruiria os dois. Spassky desconfiava, e Fischer não fazia ideia, mas ambos eram apenas peões num jogo muito maior.

Boris Vasilievich Spassky, 35 anos, aprendeu a jogar muito cedo, e foi campeão mundial júnior (1958). Calmo, de temperamento tranquilo, era considerado um jogador equilibrado, que se adaptava com facilidade ao estilo de jogo do adversário. Dizia-se que não possuía o brilho tático de Mikhail Tal, o senso estratégico de Mikhail Botvinick, nem a ferocidade e a paciência defensiva do maquiavélico Tigran Petrosian. Mas, jogando na Geórgia, ganhara de Tal o direito a desafiar o campeão. Perdeu por um ponto (12,5 a 11,5) na primeira tentativa, mas, na segunda, 1969, desbancara Petrosian (12,5 a 10,5).

No primeiro jogo da série, posição empatada no lance 39. Mas Fischer não resistiu a capturar um peão desprotegido. Colocou o próprio bispo em uma armadilha. O jogo foi suspenso e, na retomada, prosseguiu ainda por 18 lances, onde entremeou jogadas com reclamações contra o público e as câmeras de televisão. Afinal, em posição perdida, abandonou.

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Robert James Fischer, 29 anos, criado no Brooklyn, era o enfant terrible do xadrez mundial. Venceu por 8 vezes o campeonato americano, a primeira delas aos 14 anos. Extremamente agressivo e com fantástica capacidade de cálculo, tinha por adversário a si próprio e uma instabilidade emocional violenta. Não raro abandonava torneios com acusações e queixas, ou sem dar explicação alguma.

Como os quadrados do tabuleiro, o mundo na época era preto ou branco, certo ou errado, capitalista ou comunista. A disputa ideológica entre as superpotências marcava cada fato, desde a corrida espacial até os eventos esportivos. Os dirigentes de ambas as federações – Edmund B. Edmondson e Alexander Kotov – eram instrumentos de fervor patriótico e passaram os dois anos que precederam a disputa trocando farpas, vetos e insultos.

A União Soviética sempre tivera o campeão mundial desde que as regras do torneio haviam sido instituídas, em 1946. E Edmondson, apoiado pelo Departamento de Estado, tivera muito trabalho para levar Fischer até Reykjavik.

Fischer faltou à partida. Spassky 2-0 e alarme entre os americanos. O próprio Henry Kissinger, secretário de Estado, ligou para ele. E falou-lhe da necessidade de bater os russos “pela América”. Dia 16 de julho, motivado, Fischer apresentou-se para recomeçar o match. Venceria o 3º e o 5º jogo, empatando a série, 2,5 a 2,5.

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A própria escolha do local tivera lances histriônicos. Financeiramente, a melhor proposta era de Belgrado, ex-Iugoslávia. Os soviéticos recusaram e quando afinal cederam foi a vez de os americanos impugnarem o local. A 2ª melhor proposta era a de Buenos Aires. Mas, ali Fischer jogara a semifinal e o público argentino manifestara-se claramente a favor de seu adversário, Tigran Petrosian. A 3ª proposta era a da federação islandesa, e foi com grande alívio dos organizadores que todos, afinal, concordaram.

Na retomada do match, as condições pessoais haviam mudado. Um entusiasmado Fischer encontra pela frente um Spassky opaco, desmotivado, jogando burocraticamente, como se estivesse farto de tudo aquilo. Na 6ª partida, Fischer, pela primeira vez na vida, abriu com o peão da dama. Era um lance psicológico , destinado a demonstrar que venceria mesmo no campo do adversário. Spassky entrou na variante Tartakower, na qual jamais perdera um único jogo. E o jogo seguiu sem novidades até o 13º lance.

Chegava-se a uma posição idêntica à de um jogo famoso e infinitamente estudado (Furman vs. Geller – 1970). Nesse ponto, Geller cometera um erro que lhe custara a partida, e estudara a posição encontrando uma alternativa melhor que havia aplicado com sucesso. Todo o mundo do xadrez discutira o assunto e os manuais já alteravam a abertura. Pois o experiente Spassky repetiu o erro de Geller.

Mas Spassky teve ainda o seu canto do cisne. No jogo 13 (que muitos analistas vieram a considerar o melhor do match), jogando a variante Gotemburgo da defesa Siciliana, introduziu a “variante do peão envenenado” e liquidou a partida em 31 movimentos. O match seguiu alternando empates, vitórias de Fischer e reclamações soviéticas sobre condutas antidesportivas do americano.

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Os jogadores deveriam reunir-se pela última vez em 24 de agosto para dar sequência ao jogo 21 (ainda na Siciliana), adiado com lance secreto de Spassky. Dessa vez, foi o russo que não apareceu. Telefonou ao juiz e abandonou. Fischer protestou, quis que Spassky viesse assinar a planilha. Mas o árbitro considerou válido o abandono: 12,5 a 8,5. Terminava o match do século. Jornalistas aliviados corriam para transmitir os últimos despachos, afinal precisavam seguir para Munique, onde a Olimpíada começaria apenas dois dias depois. Os EUA festejaram a vitória do homem capitalista. E Reykjavik esvaziou-se lentamente.

Spassky não voltaria a disputar o título. Tentou mais uma vez, mas foi derrotado no torneio dos candidatos pela nova estrela em ascensão: Anatoly Karpov. Deixou a União Soviética. Casou-se na França, pediu e obteve cidadania francesa. Com a carreira em declínio, logo perdeu posições e deixou de constar dos 100 primeiros do ranking. Passou a trabalhar como comentarista, e jogou alguns torneios de menor importância.

Fischer reaproximou-se da mãe, militante política sob vigilância do FBI, e passou a dar declarações místicas e antissemitas, e não defendeu seu título, que em 1975 passaria a Karpov. Afinal, acusado de crime político, desertou dos EUA. Buscou refúgio no Oriente, mas foi preso no Japão em 16 de julho de 2004 e passou 8 meses detido lutando contra a extradição. A diplomacia entrou em campo: o mundo do xadrez veio em seu socorro e a Islândia concedeu-lhe cidadania. Morreu onde vencera, em Reykjavik, em 17 de janeiro de 2008.

Derrota sem medalhas
Os americanos não engoliram a derrota no basquete no último segundo de jogo. Nem compareceram à cerimônia de premiação para buscar as medalhas de prata, que até hoje estão na sede do COI, em Genebra.

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Milagre no esporte
Um dia antes do jogo, o New York Times escreveu: “A menos que o gelo derreta ou alguém realize um milagre, os russos devem ganhar facilmente o ouro olímpico…” O esporte mostra, às vezes, que milagres acontecem.

Política no tabuleiro
“Jogarei em qualquer lugar do mundo livre”, declarou Fischer. “Enquanto estou à frente do tabuleiro sou um jogador, não um político”, respondeu Spassky. A Guerra Fria levava as disputas além do campo esportivo.

Disputas Patrióticas

Os EUA ganharam ouro no basquete em todas as Olimpíadas desde 1936 e eram favoritos para o título em Munique, 1972. Na final, os soviéticos do técnico Vladimir Kondrashin apresentaram uma equipe forte na marcação, mantendo o marcador baixo e o jogo equilibrado até o final. E o último minuto não poderia ser mais conturbado. Apenas um ponto colocava os americanos à frente. Depois de discussão envolvendo técnicos, dirigentes, árbitros e mesários, a bola é dos soviéticos. Fundo bola. Cronômetro acionado e arremesso longo do capitão Aleksandr Belov e a bola cai. 51 a 50 e os soviéticos ficam com o ouro. Oito anos depois, americanos e soviéticos se encontraram no quadrangular final da disputa pelo título do hóquei na Olimpíada de Inverno de Lake Placid (Nova York). A posição soviética era similar à americana no basquete: só havia perdido a medalha de ouro uma vez na história. Duas semanas antes, em um jogo amistoso, os soviéticos haviam derrotado os americanos pelo expressivo placar de 10 a 3. Com o ginásio repleto de bandeiras americanas, o jogo foi tenso desde o início. A União Soviética saiu na frente, mas levou a virada faltando 11 minutos. A partir daí o que se viu foi um nervoso bombardeio russo contra a meta dos EUA (o goleiro Craig fez 36 defesas, o russo Myshkin apenas 6). Mas a bola não entrou e os americanos venceram por 4 a 3 o jogo que ficou conhecido como O Milagre no Gelo.

Jogos incompletos

Os EUA lideraram um bloco de 69 países no boicote aos Jogos Olímpicos de Moscou, em 1980 (além dos EUA, Canadá, Japão e Alemanha Ocidental não foram aos Jogos), em protesto contra a invasão dos soviéticos no Afeganistão em 1979. França e Inglaterra deixaram a decisão por conta dos atletas e a Itália foi o país do oeste europeu com a maior presença. 5 179 atletas participaram e a URSS conquistou 192 medalhas, 80 delas de ouro. Uma delas no salto triplo, que deixou o brasileiro João do Pulo com o bronze.

A réplica soviética veio 4 anos mais tarde, quando 15 países socialistas alegaram politização dos Jogos e falta de segurança para as delegações e boicotaram os Jogos de Los Angeles. Os EUA conseguiram 173 medalhas, 83 delas de ouro. Curiosamente, a Romênia (único país socialista que não aderiu ao boicote), ficou em 2º lugar no quadro de medalhas (20 de ouro em um total de 53). Entre os 6 829 atletas, Joaquim Cruz trouxe a única medalha de ouro do Brasil nos Jogos, na prova dos 800 metros. Dirigentes chegaram a cogitar a extinção dos Jogos Olímpicos. Mas Seul, em 1988, conseguiu superar os conflitos políticos e 8 391 atletas puderam levar as disputas somente para dentro do esporte.

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