Texto Karin Hueck
Há 44 anos, negros e brancos não podiam dividir o mesmo bebedouro de água nem freqüentar as mesmas salas de aula nos EUA. Mas, em 2008, os americanos elegeram um negro, Barack Obama, para a Presidência. Como esse país pôde mudar tanto em apenas 4 décadas?
“Tchau, querida”, foi o que Emmet Till disse para Carolyn Bryant num supermercado na cidadezinha de Money, no Mississippi. Emmet era um menino negro de 14 anos, Carolyn uma mulher branca. Seis dias mais tarde, o corpo do garoto foi encontrado boiando num rio. Ele havia sido torturado e morto com um tiro na cara. O marido e o irmão de Carolyn foram vistos cometendo o crime, mas inocentados por um júri de homens brancos. Parece história de filme, mas em 1955 o sul dos EUA era assim: negros não deveriam dirigir a palavra a brancos e podiam ser linchados sem punição por causa disso. Ser racista era um direito protegido por lei – e foi assim até 1964. Num país que permitia isso há 44 anos, como Barack Obama pôde ter sido eleito para a Presidência em 2008? Que tipo de mudança radical aconteceu nos EUA em apenas 4 décadas? É essa a fantástica história dos negros americanos que você vai conhecer agora.
1950 – Segregação, racismo e linchamento: assim era o dia-a-dia dos negros.
O primeiro passo para um negro ter chegado à Casa Branca este ano foi dado pelo movimento dos direitos civis lá nos anos 50. Até essa época, as relações entre as raças eram “separadas-mas-iguais”. Negros não eram proibidos de nada, mas levavam sua vida em ambientes distintos. Assim, havia restaurantes especiais, hospitais especiais e escolas especiais para negros – que de especiais não tinham nada. No estado da Carolina do Sul, por exemplo, o governo gastava US$ 179 por ano para cada aluno branco e apenas US$ 43 para cada negro. Na maioria dos estados do sul, um negro só podia se sentar num ônibus se todos os brancos estivessem sentados. O apelido dado a essas leis separatistas era Jim Crow, um personagem estereotipado de um negro que falava alto, brincava demais, trabalhava de menos e não cheirava bem.
Foram os protestos de pessoas comuns que começaram a botar o assunto na roda: como Rosa Parks, uma senhora que se recusou a dar lugar a um branco em um ônibus, e Charles Houston, um advogado que resolveu comprar a briga contra as leis segregacionistas. Houston, aliás, foi o responsável pela primeira vitória dos negros rumo à igualdade. Em 1954, ele conseguiu provar na Suprema Corte americana que escolas separadas faziam mal ao desenvolvimento e à auto-estima das crianças. Para isso, citou um estudo que foi feito com 16 estudantes negros dos estados do sul. A cada uma das crianças foram mostradas duas bonecas: uma branca e uma negra. Dez das crianças disseram que gostavam mais da boneca branca e 11 responderam que a negra era feia. Quando perguntados com qual das duas eles se pareciam, 7 alunos responderam a branca, e os outros não conseguiam admitir que eram parecidos com a boneca rejeitada. “Segregação faz um grupo de pessoas acreditar que é inferior”, disse alguns anos depois o psicólogo que conduziu o estudo, Kenneth Clark.
E não foi só nas cortes que as pessoas acharam meios para lutar contra a separação. A famosa campanha pelos direitos civis, liderada por Martin Luther King Jr . e seu sonho de igualdade, foi na verdade uma série de pequenos atos de protesto espalhados pelo sul do país. Aquela senhora que se recusou a se levantar num ônibus no Alabama levou ao boicote do transporte público da cidade inteira em 1955: durante 13 meses, nenhum negro andou de ônibus por lá. Em Nashville, pequenos grupos de estudantes decidiram que não seriam mais maltratados em restaurantes só para brancos. Durante meses, eles iam às lanchonetes, mas não eram atendidos. Em vez de irem embora, passavam horas sentados no lugar e voltavam no dia seguinte para continuar com os protestos. Eram os chamados sit-ins. Muitas vezes, estudantes brancos jogavam comida ou cuspiam neles, mas os negros não retrucavam. Em abril de 1960, eles finalmente foram atendidos.
1960 – Acerto de contas. Separar brancos e negros virou caso de prisão.
Com a cobertura da imprensa, os protestos foram motivo de mais protestos, até chegarem aos ouvidos do candidato à Presidência pelo partido democrata daquele ano: John F. Kennedy. Até então, ele não estava muito sensibilizado pela questão. Em seu livro Eyes on the Prize (“De Olho no Prêmio”), o escritor americano Juan Williams cita as palavras de Kennedy sobre o assunto: “Eu quase não conheci negros na minha vida. Eu nunca pensei muito nesse assunto, na verdade. Preciso aprender sobre isso”. Conhecer os direitos civis foi um bom jeito de angariar votos. Ainda antes das eleições, Kennedy se aproximou de Martin Luther King Jr. O democrata começou uma campanha para registrar eleitores negros do sul e prometeu que resolveria a segregação assim que chegasse à Casa Branca, com “apenas uma canetada”. Em 1960, Kennedy recebeu 68% dos votos dos negros.
A canetada milagrosa acabou sendo apenas uma promessa de campanha e nunca aconteceu, mas o presidente começou a se engajar numa questão polêmica: a das cotas. “Cem anos se passaram desde que o presidente Lincoln libertou os escravos, mas seus herdeiros não são realmente livres. Eles não se livraram da opressão econômica e social. Chegou a hora de esta nação cumprir a promessa de Lincoln”, discursou Kennedy em 1963. (Aliás, Kennedy era um excelente orador, tinha idéias inovadoras e era jovem – e não é à toa que Obama é constantemente comparado a ele.) O fato é que os negros viviam num círculo vicioso: tinham apenas o equivalente a dois terços do tempo de estudo dos brancos. Por conseqüência, não conseguiam bons empregos e viviam com um salário muito menor: em 1960, uma família branca recebia US$ 5 800 ao ano, enquanto que uma família negra ganhava US$ 3 200. Havia empresas como a Lockheed Aircraft Corporation, uma fábrica de aviões com 10 500 funcionários, dos quais apenas 450 eram negros. O presidente queria instituir uma política que compensasse os séculos de marginalização dos negros e criou leis que os privilegiavam. E mais importante: Kennedy lutou para levar ao Congresso uma lei que proibia a segregação e o racismo. “Chegou a hora de escalarmos o abismo escuro e desolador da segregação para chegarmos à trilha ensolarada da justiça racial”, dizia Martin Luther King em 1963. Mal sabia ele que os passos seguintes nessa trilha seriam dados à força.
1970 – Chega de ser o coitadinho. Say it Loud, I’m Black and I’m Proud.
Kennedy foi assassinado em novembro de 1963. Em 1968, chegaria a hora de Luther King. Embora todas as leis separatistas tivessem sido abolidas e as cotas agora agissem a favor dos negros, a igualdade estava longe de ser real. Na verdade, um pouco antes da década de 1970, uma boa parcela de negros continuava bem insatisfeita. Foi assim que surgiram os grupos mais radicais. O mais famoso deles, os Panteras Negras, foi fundado para vigiar os abusos cometidos por policiais contra negros. Só que seu conceito de vigilância era acompanhar as patrulhas com carros próprios – e carregando armas. Eles costumavam citar o líder negro Malcolm X, quando diziam que a igualdade entre raças seria alcançada por “qualquer meio necessário”. Essa mistura era tão explosiva que o próprio fundador dos Panteras, Huey Newton, acabou preso por matar um policial. O ódio racial não era mais contra negros, mas contra brancos. Não é à toa que no começo deste ano os assessores de Barack Obama tremeram quando o ex-pastor do candidato, Jeremiah Wright, foi flagrado dando declarações racistas, do tipo que a aids seria uma invenção do governo dos EUA para eliminar os negros.
Mas, se o radicalismo racial é visto com maus olhos até hoje, a maneira como os negros começaram a se comportar nas décadas seguintes foi essencial para que eles abandonassem o papel de vítimas e virassem protagonistas. No rádio, Aretha Franklin estourava com a música Respect, e James Brown cantava Say it Loud, I’m Black and I’m Proud (“Fale Alto, Eu Sou Negro e Tenho Orgulho”). No jeito de se vestir e de se portar, o black is beautiful se espalhava pelas ruas. Em 1972, um negro se candidatou à Presidência – quer dizer, uma negra. Shirley Chisholm conseguiu ganhar 28 delegados de estado para sua campanha. Os tempos estavam mudando. “Qualquer reforma prática começa com uma conscientização, na qual os oprimidos passam a reconhecer seu valor”, escreveu James Marsh, filósofo da Fordham University de Nova York.
1980 – Das páginas policiais para o horário nobre. Dos EUA para o mundo inteiro.
Essa conscientização levou a limites nunca antes imaginados. O movimento hip-hop começou como um processo de identificação de negros enfurnados nas periferias das grandes cidades, mas acabou conquistando os brancos. Quando o Public Enemy lançou o primeiro disco com músicas faladas em 1982, não imaginaria que 15 anos mais tarde um branco magrelo, como Eminem, tomaria o mundo dentro do gênero black music. Para Leon Wynter, escritor que viveu no Bronx (bairro predominantemente negro de Nova York) nos últimos 40 anos, um momento decisivo da integração racial foi quando, graças ao hip-hop, já não se conseguia mais identificar se um adolescente era branco ou negro pelas roupas. Todos se vestiam do mesmo jeito: como um rapper. Aliás, Obama foi o candidato favorito dos rappers e artistas de um modo geral – o cantor Common até citou o político numa de suas músicas: “My raps ignite the people like Obama” (“Meu rap incendeia as pessoas como Obama”).
Para onde quer que o americano olhasse, lá estava um negro debaixo dos holofotes. Ou dentro da telinha. Quando o seriado The Cosby Show entrou no ar em 1984, ninguém entendeu ao certo por que ele fazia tanto sucesso. A grande inovação do programa nada mais era do que mostrar o dia-a-dia de uma família negra de classe alta. O impressionante é que os EUA nunca tinham visto de perto a história de um pai de família negro que fosse presente, carinhoso, um profissional respeitado e ainda criasse os filhos de maneira funcional. Ou seja, normal. (Não foi por acaso que Obama carregou a mulher e as filhas para lá e para cá durante a campanha. Ele estava querendo mostrar que tem uma família perfeitamente feliz e comum.) De repente, ser negro virou cool. O rei do pop era negro. O rei das quadras de basquete também. “À medida que negros foram alcançando postos mais altos no mercado e na cultura, as novas gerações de brancos abandonaram as ideologias raciais do passado e se afastaram dos tempos de segregação legal e violência racial”, diz Earl Ofari Hutchinson, autor do livro The Ethnic Presidency: How Race Decides the Race to the White House (“A Presidência Étnica: Como a Raça Decide a Corrida para a Casa Branca”).
2008 – Nada mais é impossível no país que elegeu Barack Obama para a Presidência.
Afastar-se da questão racial, aliás, foi o mote de Obama nessas eleições. O candidato fugiu do assunto como vampiro de alho. “Eu acho que a América ainda está presa no passado. A política negra americana ainda é influenciada pelo movimento do black power dos anos 60”, disse Obama no ano passado. De fato, o novo presidente não é da geração rebelde. O democrata tinha apenas 2 anos quando os sit-ins estavam acontecendo, 4 quando os Panteras Negras foram fundados e 7 quando Martin Luther King foi assassinado. E mais do que isso: Obama não queria cometer o mesmo erro de políticos antecessores, como o democrata Jesse Jackson, que na década de 1980 concorreu à Presidência ressaltando sua ligação com a causa negra – e acabou sem os votos dos brancos. “Obama é mais neutro e sua campanha foi toda direcionada a não confrontar nem ameaçar os brancos – nem qualquer grupo étnico”, diz Hutchinson. A estratégia acabou dando certo: 43% dos brancos votaram em Obama este ano, mais do que haviam votado nos últimos dois candidatos democratas das eleições passadas: John Kerry e Al Gore – e igual à votação de Bill Clinton.
Mas a questão racial estava lá, rondando-o o tempo inteiro. Obama foi apresentado como o primeiro negro com chances reais de chegar à Casa Branca – e olha que ele foi apenas o 5º senador negro eleito na história dos EUA. Depois veio Joe Biden, seu vice, que, antes mesmo da campanha começar, escorregou e disse que Obama era “o primeiro negro mainstream que é articulado, inteligente, limpo e um cara bonitão”. Em seguida, surgiram os próprios negros afirmando que o democrata não é negro o suficiente, pois não é descendente de escravos, mas de um imigrante queniano e uma branca do Kansas. Aí apareceu um estudo da Universidade Stanford concluindo que, se Obama não fosse negro, teria coletado 6% de votos a mais… Enfim, ele bem que tentou, mas não conseguiu escapar de sua cor.
“A maioria dos americanos aprova um presidente negro. Mas, mesmo depois de eleito, uma grande parte dos eleitores ainda vai resistir à presença de Obama”, diz Hutchinson. É difícil dizer que a vitória de Obama significa que os EUA se livraram do racismo – provavelmente não. A verdade é que nos últimos tempos a si-tuação dos negros por lá melhorou muito. O número de negros que se formam em universidades cresceu 340% em 30 anos e os casamentos inter-raciais aumentaram 520%. Talvez o melhor seja acreditar em Obama quando ele diz: “Eu nunca vou me esquecer de que em nenhum outro país do mundo a minha história seria possível”. (E nós vamos esquecer que Nelson Mandela foi eleito presidente na África do Sul em 1994 depois de anos de apartheid. Mas isso é outra história…)
Para saber mais
The Pursuit of Fairness
Terry H. Anderson, Oxford University Press, 2005.
Eyes on the Prize
Juan Williams, Penguin, 2002.