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Como (e por que) americanos violaram cadáveres japoneses na campanha do Pacífico

Em 1984, corpos de soldados do Japão que combateram nas Ilhas Marianas foram repatriados. O problema é que 60% deles não tinham cabeça.

Por Fábio Marton
Atualizado em 9 out 2020, 13h14 - Publicado em 20 nov 2019, 15h08
E

ra 1984 quando o governo dos EUA tomou a atitude de fazer uma reparação histórica. Os cadáveres de soldados japoneses da campanha das Ilhas Marianas foram repatriados. A solene ocasião foi perturbada por um infortúnio: 60% dos corpos não tinham cabeça. E onde estavam as cabeças? Quem sabe segurando livros por quatro décadas na prateleira de um veterano americano? Quem sabe num museu? Quem sabe esquecidas num sótão?

Em descarada violação à Convenção de Genebra de 1929, como se fossem senhores da guerra medievais, soldados dos EUA faziam troféus das caveiras dos inimigos. Não só cabeças, como dentes, orelhas, fêmures… o que parecesse interessante como decoração. Não bastava retalhar um corpo, porque aí você acabava com carne podre. Havia todo um método, transmitido de soldado para soldado: era preciso ferver para soltar pele e músculos e deixar apenas ossos, branquinhos.

ESCÂNDALO

Em casa, não pegava bem. Em 1º de fevereiro de 1943, a revista Life publicou uma fotografia tirada por Ralph Morse em Guadalcanal, mostrando uma cabeça japonesa adornando a torreta de um tanque, com os marines celebrando em volta. Em 22 de maio de 1944, a mesma Life estampou a foto de uma garota interiorana, do Arkansas, com um crânio japonês. A moça, Natalie Nickerson, de 20 anos, redigia uma carta na qual agradecia a seu namorado no front pelo presente. Novamente, um escândalo. Choveram cartas. A Life respondeu em seu editorial: “A guerra é desagradável, cruel e desumana. E é mais perigoso esquecer disso do que ficar chocado com lembretes”.

As imagens foram republicadas no Japão. Os americanos foram retratados como perturbados, primitivos, racistas e desumanos. E isso teve consequências: a população japonesa foi convencida de que o país sofreria saques e estupros massivos se os EUA invadissem. E isso, não uma fidelidade fanática ao imperador, foi apontado como a grande motivação para o sacrifício por diversos kamikazes sobreviventes (isto é, aqueles que nunca decolaram ou decolaram e voltaram após falhar em encontrar o inimigo).

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O comando estava ciente. Formalmente, reagiu. Em setembro de 1942, o comandante-chefe da Frota do Pacífico havia ordenado uma ação disciplinar. Em janeiro de 1944, o Estado-Maior Conjunto dos EUA emitira uma surreal norma proibindo a tomada de partes do corpo dos inimigos.

Mas as punições, quando havia, eram protocolares. Porque a barbaridade parecia motivar os soldados, e a prioridade era ganhar a guerra, não evitar chocar sensibilidades civis.

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E, mesmo se quisessem parar, era difícil fazer isso quando o presidente estava do outro lado. Publicamente, em 13 de junho de 1944, o presidente Franklin Delano Roosevelt recebeu do congressista democrata Francis E. Walter um abridor de cartas feito de osso de japonês. “Esse é meu tipo de presente”, respondeu sorridente. Walter continuou a graça se “desculpando” por ser um objeto tão “pequeno”, ao que respondeu, sorridente, Roosevelt: “Haverá mais presentes”. Mais uma vez, o público se escandalizou e, em semanas, o presidente acabou decidindo enterrar o abridor de cartas.

RACISMO

Um detalhe que não é detalhe: nada disso foi feito com os soldados da Alemanha nazista. O que acontecia? Basta olhar a propaganda de guerra americana. Os alemães são retratados ora como pessoas sinistras, ora como bufões. Mas eram humanos. Já os japoneses se tornavam criaturas com dentes de cavalo, rato ou morcego, isso quando não eram substituídos pelos bichos mesmo. Sua pele frequentemente era de um tom completamente diferente do normal, amarelo profundo ou cinza, ou qualquer outra cor escolhida pelo ilustrador. Em resumo, os alemães eram humanos (se ruins), os japoneses, outra coisa.

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“Os soldados que perpetraram essa ofensa parecem ter feito uma distinção clara entre duas categorias de inimigos: o que eles percebem como pertencentes a sua própria raça e os que percebem como de outra, com uma diferença fundamental entre elas sendo como os corpos serão tratados após a morte”, afirma o antropólogo Simon Harrison, autor de Dark Trophies: Hunting and the Enemy Body in Modern War (“Troféus Sombrios: A Caçada e o Corpo do Inimigo na Guerra Moderna”, sem versão em português). “Esta é uma forma de combate em que certas categorias de inimigos são fortemente desumanizadas e despersonalizadas, representadas como animais a serem caçados, não apenas para serem mortos como, em certo sentido, consumidos.”

Note-se: os japoneses não eram nada melhores. Se suas atrocidades contra civis rivalizam com as da Alemanha nazista, em termos militares, ao menos no que concerne britânicos e americanos, eram muito piores. Os nazistas seguiam, por incrível que pareça, a Convenção de Genebra com Aliados ocidentais, pois seu país era signatário, como EUA e Reino Unido. Soldados da União Soviética, que não havia assinado, eles mandavam para campos de extermínio. Entre os vários horrores que os japoneses infligiram a seus prisioneiros, como assassinatos para testar espadas e torturas aleatórias, estão episódios de canibalismo.

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