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Conexões brasileiras

Máfias internacionais usam nosso território para distribuir drogas e escravas sexuais pelo mundo, além de suprir o mercado interno de armas contrabandeadas

Por Da Redação Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
Atualizado em 31 out 2016, 18h25 - Publicado em 29 fev 2008, 22h00

Texto Bia Costa

Alguns se vestem com roupas típicas, supercoloridas. Outros seguem a moda dos ídolos do basquete americano. E existem os que se preocupam menos ainda com a discrição, ostentando um caprichado visual gangsta: tênis de grife, óculos escuros, cordões e pulseiras de ouro. Sempre ao celular, em conversas nas quais misturam dialetos africanos com inglês de sotaque carregado, eles são integrantes da máfia nigeriana, que circulam desenvoltos pela região central de São Paulo (SP).

A freqüência com a qual esses criminosos aparecem no noticiário é espantosa. Apenas nos primeiros meses de 2008, 2 operações detiveram 237 nigerianos em flagrante ou por suspeita de colaboração com o narcotráfico. Em 28 de janeiro, a Polícia Federal prendeu 81 pessoas no centro de São Paulo. Com o grupo, os agentes encontraram maconha e cocaína. Um dos acusados chegou a trocar tiros com os integrantes da força-tarefa. Uma semana depois, outros 153 foram levados para verificação de documentação – um deles carregava nos bolsos a bagatela de US$ 7 mil.

A máfia nigeriana estabelecida no Brasil tem estratégias e estrutura muito diferentes de grupos mafiosos tradicionais, como a Cosa Nostra italiana. Divididos em várias quadrilhas independentes, os afro-criminosos tornaram-se especialistas em tráfico de drogas para países da Europa e da África. O método de contrabando que eles mais utilizam ficou conhecido como “formiga”: muitas pessoas – as chamadas “mulas” – transportando pequenas quantidades de cocaína cada uma.

Esse esquema de pulverização leva a polícia a impedir, quase todas as semanas, tentativas de embarque no Aeroporto Internacional de Guarulhos (SP). Os mafiosos são cada vez mais criativos. Em abril de 2007, detetives da Polícia Civil prenderam Rúbens Miguel da Silva, de 27 anos. Vestindo uma batina, o estudante tentava se passar por padre. Ele transportava entorpecentes presos ao corpo e escondidos na sola dos sapatos. Em agosto do mesmo ano, foi a vez de um pai-de-santo ser detido. José Roberto Pereira, 60 anos, levava cápsulas de cocaína na bagagem.

DROGAS

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Giovanni Quaglia, diretor do Escritório das Nações Unidas contra Drogas e Crime (Unodc), na sigla em inglês), afirma que, além dos nigerianos, circulam por aqui integrantes das máfias napolitana e siciliana, focados no transporte de cocaína para a Europa e os EUA; membros das máfias asiáticas, representadas por chineses e coreanos que se dedicam principalmente à extorsão e ao contrabando de mercadorias na fronteira sul do país; e criminosos ligados à máfia russa, que gerenciam sobretudo o tráfico de armamentos e seres humanos. A japonesa Yakuza atuou no país principalmente nos anos 90. Mas a deportação de um de seus principais líderes, Hitoshi Tanabe, em 1997, e o avanço de quadrilhas concorrentes minaram sua influência no submundo do crime organizado brasileiro.

As máfias internacionais vêm ao Brasil por motivos variados, de biopirataria (leia mais no quadro da pág. 63) a contrabando de madeiras nobres. Mas os sonhos de consumo dos criminosos concentram-se mesmo no tripé “sexo, drogas e armas”. Na geopolítica do crime, as fronteiras nacionais dividem-se de acordo com interesses específicos: cocaína na frente oeste, junto aos vizinhos andinos (Colômbia, Peru e Bolívia); armamentos na divisa com os “hermanos” do Mercosul (Argentina, Paraguai e Uruguai); e escravas sexuais “made in Brazil” carregadas mundo afora por centenas de rotas espalhadas pelo país.

As fronteiras com os países produtores de coca são pontos nevrálgicos para as rotas do tráfico. Um estudo recentemente divulgado pelo Grupo Retis (do Departamento de Geografia da Universidade Federal do Rio de Janeiro, UFRJ), coordenado pela professora Lia Osório Machado, demonstra a extensão dos negócios nas áreas de maior entrada da droga: apenas duas praças bancárias em Rondônia, Porto Velho e Cacoal, têm um movimento médio de aproximadamente R$ 4 bilhões anuais – ou seja, praticamente metade de todo o PIB do estado.

As dimensões superlativas da floresta Amazônica também facilitam as operações dos mafiosos. Em 2005, fotos de satélite do Centro Técnico Operacional (CTO), que integra o Sistema de Proteção da Amazônia (Sipam), ajudaram a identificar 710 campos de pouso clandestinos somente nos estados do Amazonas e de Roraima, dois dos mais vulneráveis à ação de traficantes e contrabandistas. Só para ter uma idéia do tamanho do problema: de 1997 a 2004, a Polícia Federal conseguiu destruir apenas 38 pontos de decolagem e aterrissagem.

ARMAS

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O vertiginoso crescimento do tráfico de drogas acaba ajudando a movimentar outro negócio extremamente lucrativo para o crime organizado internacional: o comércio ilegal de armamentos. O relató­rio final da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) das Armas, aprovado em dezembro de 2006, desenha um verdadeiro quadro de terror. Testemunhos presentes no documento elaborado pela CPI descrevem nos municípios de Ciudad Del Este e Pedro Juan Caballero, ambos no Paraguai, uma rede de pelo menos 17 lojas de armamentos mantidas por contrabandistas, alguns deles de nacionalidade brasileira.

Preso no Rio Grande do Sul em 2005, sob suspeita de envolvimento com o tráfico internacional, o brasileiro Marcelo Fetter declarou em juízo que qualquer um pode fazer sua comprinha de armas nas fronteiras do Brasil com a Argentina, o Paraguai ou o Uruguai. O comércio parece não ter limites: uma das testemunhas, cuja identidade foi mantida em sigilo pela CPI, afirma ter comprado nada menos que 1 800 fuzis da Força Aérea paraguaia.

Não há crediário, mas os negociantes aceitam até carro como moeda de troca. Para entrar no Brasil, evitando o policiamento na borda do Mato Grosso do Sul ou em Foz do Iguaçu (PR), as quadrilhas usam, há mais ou menos 4 anos, uma rota alternativa: as armas saem do Paraguai, passam por terrotório argentino e finalmente entram no país por Uruguaiana (RS).

MULHERES

O tráfico de seres humanos, terceiro vértice dos negócios mais lucrativos do crime organizado, vem crescendo e já ganhou 16 operações da Polícia Federal nos últimos 3 anos, período em que foram presas 142 pessoas. Os alvos são principalmente mulheres , que acabam sendo transformadas em escravas sexuais em países europeus como Espanha, Suíça, Portugal e Itália. Mas também são levadas para o Suriname, a Guiana Francesa e a Venezuela, onde geralmente trabalham em áreas de garimpo.

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Goianas, mineiras, paulistas, cariocas… Não importa a procedência: ser brasileira já é apelo suficiente para virar commodity. Há alguns anos, a Espanha – um dos principais destinos das escravas sexuais – vem investigando esse tipo de crime. Em 2001, o jornalista Wagner Seixas, do jornal O Estado de Minas, teve acesso a documentos da polícia espanhola em que ficava clara a conexão da máfia russa nesse tipo de crime.

A apuração, na época, indicava um polaco chamado Zorak que, a mando dos russos, viajou inúmeras vezes ao Brasil para buscar brasileiras residentes em São Paulo e no Rio de Janeiro. Uma das vítimas, a paulista “Sheila”, foi levada por Zorak à Espanha e testemunhou a violência do grupo mafioso. Já a carioca M.T.A., então com 24 anos, rumou para Portugal com outras 10 garotas e ficou sob controle da máfia por pelo menos 6 meses. “Comecei a namorar um deles e logo estava nas mãos da quadrilha.”

Paraíso de bandidos fujões

O Brasil tem história como esconderijo de criminosos internacionais. E continua entre os destinos mais procurados por eles. Os motivos? Impunidade, corrupção e até diversidade étnica.

De Ronald Biggs ao megatraficante Juan Carlos Abadia, criminosos de todos os calibres parecem ter uma fixação no Brasil quando pensam em se esconder da Justiça. Mas, como demonstra a prisão do próprio Abadia, em agosto de 2007, o paraíso nem é tão seguro assim. Entre as mais famosas capturas ocorridas no país, figura a do mafiosos Tommaso Buscetta, preso em 1981 no Rio de Janeiro. De acordo com a Interpol, o Brasil é o país da América Latina mais visado por criminosos foragidos. E o Rio continua lindo nos sonhos da bandidagem. A capital fluminense atraiu 35% dos estrangeiros presos no território nacional em 2007. Existem várias justificativas para essa preferência. Além da facilidade para entrar e sair do país, “a diversidade étnica permite a pessoas de qualquer biótipo passarem despercebidas”, ressalta a Agência Brasileira de Inteligência (Abin). O diretor do Escritório das Nações Unidas contra Drogas e Crime (Unodc), Giovanni Quaglia, acrescenta que “grandes criminosos têm trânsito livre em altas esferas de poder” e são favorecidos por corrupção e impunidade.

A teia do crime organizado no Brasil

Veja os principais corredores dos tráficos de drogas, armas e pessoas

Belém (PA)

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A Amazônia esconde uma verdadeira indústria do crime: centenas de pistas clandestinas para aviões com cocaína, biopirataria, tráfico de mulheres e, na fronteira com o Suriname, contrabando de armas.

Foz do Iguaçu (PR)

A tríplice fronteira tem de tudo: contrabando, drogas e muito poder de fogo. O relatório da CPI das armas mostra que do RS ao PR funciona um mercado, no qual se pode comprar até 1 800 fuzis de uma vez.

Recife (PE)

Pelas capitais nordestinas há rotas de despacho de drogas da Bolívia, Colômbia, Venezuela e Suriname. Também funcionam esquemas de aliciamento de prostitutas para Portugal e Espanha.

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Rio de Janeiro (RJ)

Grande parte das armas vindas do Paraguai vai parar nos morros cariocas. A capital serve como entrada e saída de drogas pelo aeroporto do Galeão e pelo porto. O Rio é o esconderijo preferido de mafiosos.

São Paulo (SP)

O dinheiro está aqui. E a infra-estrutura para a entrada e saída de produtos ilícitos também. Drogas e contrabando fazem parte do dia-a-dia do aeroporto de Guarulhos e do porto de Santos.

Bichos que valem ouro

Contrabando de espécies raras e biopirataria entram na lista de negócios mais rentáveis do crime organizado internacional. clientes são empresas legais, como laboratórios e indústrias farmacêuticas.

O que aranhas-armadeiras, plantas amazônicas e cocaína têm em comum? Assim como as drogas, espécies da fauna e da flora brasileiras vêm caindo nas graças de traficantes, que enxergam nos espécimes nativos um mercado emergente. Os fregueses desse tipo de contrabando, em sua maioria, são empresas da economia legal. Com espécimes animais e vegetais provenientes da biodiversidade brasileira, laboratórios e indústrias farmacêuticas desenvolvem novos medicamentos, cosméticos, alimentos. Faturam milhões, enquanto o Brasil, fornecedor da matéria-prima, fica eternamente a ver navios. O tráfico de animais pode ser uma atividade muito rentável. Um grama do veneno da aranha-armadeira, por exemplo, vale até US$ 40 mil no mercado internacional, segundo o Ibama. O preço se justifica pela complexidade da substância, que dá origem a compostos com aplicações farmacológicas. Estima-se que a biopirataria movimente algo em torno de US$ 1 bilhão ao ano só no Brasil.

Chefes da jogatina

A Cosa Nostra está por trás de uma máfia genuinamente brasileira: a dos caça-níqueis

A noite nascia tranqüila, mas o ar parecia mais pesado que de costume. Waldemir havia acabado de fazer ginástica, acompanhado de seu filho de 15 anos. No estacionamento da academia, subiu na moto, com o garoto na garupa. Então, aconteceu. De repente, duas luzes ofuscantes dispararam em sua direção. Em segundos, os recém-chegados saltaram das motocicletas e puxaram os gatilhos dos fuzis à vontade. Seis tiros à queima-roupa atingiram seu alvo principal. Os capangas esperaram o momento exato: já acomodados no banco, pai e filho não tiveram tempo de correr ou sequer acionar a ignição.

A cena descrita, que poderia ter saído do filme O Poderoso Chefão, ocorreu na cidade do Rio de Janeiro (RJ). O bicheiro Waldemir Garcia, o Maninho, morreu a caminho do hospital. Seu filho sobreviveu, afinal, não era o alvo. A execução de um dos principais contraventores cariocas, em dezembro de 2004, marca um dos desfechos dramáticos da guerra pelo controle dos pontos. De acordo com investigações da Polícia Federal, a própria cúpula do jogo do bicho, batizada de Clube Barão de Drummond (em homenagem ao criador da loteria clandestina), decidiu pela execução. O “tribunal” teria sacramentado o destino de Maninho para resolver uma das batalhas por territórios.

A disputa sangrenta começou após a morte do capo di tutti capi (chefe de todos os chefes) no Rio, Castor de Andrade, em março de 1997. Uma das primeiras vítimas foi o próprio filho do bicheiro, Paulo de Andrade, executado em outubro de 1998. A ganância impulsionou uma matança à moda Corleone e chegou a colocar em crise o próprio poder da cúpula do jogo, criada no início dos anos 80, justamente para evitar embates pelos pontos. Até a situação voltar ao normal, o massacre no submundo resultou em dezenas de execuções.

Os episódios mostram o poder e a periculosidade dos chefões do jogo, que aprenderam a se organizar justamente no contato com mafiosos do sul da Itália. Na década de 1950, um capo italiano foragido da polícia resolveu se esconder nas praias do Rio. Antonino Salamone foi um dos diretores da Cosa Nostra durante as décadas de 1960 e 1970. Em 1963, depois do Massacre de Ciaculli, quando sua organização matou 7 policiais italianos em um atentado à bomba, Salamone veio se refugiar no Brasil. No Rio de Janeiro, aliou-se a Castor de Andrade, então com 37 anos. Da aliança entre os dois, surgiria a máfia brasileira.

A metamorfose de bicheiros em supergângs­ters, no entanto, deslanchou mesmo com a chegada dos caça-níqueis. Dos Corleonesi, um dos mais temidos clãs do crime organizado siciliano, conseguiram as primeiras máquinas que vieram para o Brasil. E, nos últimos anos, viram seus lucros irem às alturas com os aparelhos de jogatina eletrônica instalados em cada padaria de quase todas as grandes cidades brasileiras.

A contravenção seguia impulsionada por um bem-azeitado aparelho de corrupção. Até aparecerem os mocinhos dessa história. No dia 13 de abril de 2007, a Polícia Federal desmontou um grupo organizado de bicheiros, delegados, juízes e desembargadores. Batizada de Hurricane, a operação levou 25 para a cadeia. O esquema envolvia o pagamento mensal de até R$ 30 mil para juízes e desembargadores, a fim de garantir que as casas de bingo – com seus caça-níqueis – continuassem a funcionar.

Desde 2001, os bingos são considerados uma atividade não regulamentada. Para funcionar, precisam ter liminares concedidas por juízes. Com a operação da PF, ficou claro que o grupo era muito mais sofisticado que uma quadrilha comum. Além do apoio de magistrados e políticos, os bingueiros participavam da vida social da elite carioca, dando festas em coberturas de Copacabana, patrocinando escolas de samba e posando ao lado de celebridades.

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