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Domesticação de Animais: Amor a quatro patas

Mais antiga que a civilização, a domesticação dos animais mudou de sentido com o tempo. Hoje, é no convívio com os bichos que o homem revela o que tem de mais humano.

Por Da Redação Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
Atualizado em 31 out 2016, 18h09 - Publicado em 30 jun 1989, 22h00

Fátima Cardoso

Cachorro é como criança: basta chegar perto de alguém para receber afeto e carinho. Gatos, tartaruguinhas e papagaios são igualmente convidativos a um afago. Debaixo do mesmo teto, os animais se misturam à vida dos homens trocando companhia e amizade, numa relação muito além de qualquer sentido utilitário. Cachorros, gatos, peixes e outros animais domésticos não são criados para servir de alimento, como galinhas no fundo do quintal, nem tampouco para ajudar no trabalho, como burros de carga. A paixão por bichos atravessa a história humana e independe da geografia. Num país como os Estados Unidos, existem hoje 475 milhões de animais domésticos – dos quais 48 milhões de cães e 27 milhões de gatos – ou dois para cada habitante. Estima-se que 10 por cento dos brasileiros tenham um cachorro. Na França, a relação é de dezoito animais domésticos por cem habitantes. Números significativos existem igualmente da Suíça ao Japão. É uma convivência sem fronteiras.

Mas o que leva os homens no mundo cada vez mais urbanizado de hoje a apreciar a companhia de bichos? Antes de mais nada, a história dessa união é bem mais antiga – vem do tempo em que as sociedades humanas não passavam de agrupamentos em que a organização familiar e social, assim como a divisão de tarefas, apenas engatinhava. Acredita-se que a domesticação de animais data de uns 12 mil anos, no Período Neolítico, não por acaso a mesma época em que o homem começou a trocar a caça e a coleta nômades por um pedaço de chão, dando origem à agricultura.

Ao aprender a cultivar a terra, o homem do Neolítico aprendeu também a criar animais como reserva alimentar. Disso nasceu a teoria que explicava a associação gente-bicho exclusivamente em termos de domínio dos animais pelo homem. Mais recentemente, porém, entrou em cena o conceito de co-evolução, que aponta na direção de uma espécie de pacto implícito entre bichos e pessoas, com vantagens para ambas as partes. Os lobos, primeiros animais domésticos e ancestrais dos atuais cachorros, ganharam ao conviver com o homem proteção contra predadores, comida sem precisar disputá-la com outros carnívoros e até o abrigo aconchegante do calor das fogueiras. Os assentamentos humanos tornaram-se fonte abundante de sobras de alimentos, que atraíram pássaros, que por sua vez atraíram gatos e assim por diante.

À medida que a convivência evoluía, os animais foram se tornando também objetos de estima, numa recorrência que permeia várias culturas e épocas. Os opulentos habitantes da antiga cidade grega de Síbaris, no sul da Itália (da qual veio o adjetivo sibarita, para designar pessoa rica e indolente), e alguns membros da aristocracia ateniense tinham especial predileção pelos cachorros. Na China, o cão pequinês era venerado pela dinastia Han, há cerca de mil anos. Mesmo na Inglaterra do século XVII, enquanto o povo montava cavalos até que morressem ou torturava bois e porcos ao matá-los, os monarcas da dinastia Stuart eram apaixonados por cães. Ao chegar ao Novo Mundo, os europeus descobriram que tribos americanas mantinham animais de estimação. Era o caso dos navajos e seus gatos.

Se para os animais a proximidade dos humanos foi um achado, os homens também lucraram, tirando sustento da carne dos bichos que criavam e usando sua força para guarda, trabalho e transporte. É certo que essa relação originalmente utilitária de dominação foi sedimentando na mente humana a noção da inferioridade animal. Daí a maltratá-los sem necessidade ou mesmo por prazer foi um passo, como acontecia rotineiramente na Europa até o século XVIII. Apesar de todas as maldades praticadas contra os bichos, da convivência e da observação surgiu o afeto pelos animais – seres que nunca deixaram de surpreender pela inteligência ou por comportamentos que as pessoas podiam supor aparentados aos delas próprias, como a fidelidade (dos cães) e o ânimo brincalhão (dos gatos). Hoje suas atribuições incluem a de devolver ao habitante de uma sociedade governada pela tecnologia o contato com a natureza. O essencial, porém, é o afeto.

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Este sentimento é a parte mais relevante da convivência entre homens e animais. “O animal responde incondicionalmente ao amor dos homens”, analisa a psicóloga Maria Helena Scherb, dona de um cachorro e dois gatos. O psiquiatra americano Aaron Katcher, autor de vários livros sobre homens e bichos, vai mais longe. Para ele, os animais influem diretamente sobre a saúde física e psicológica dos donos. Nas situações em que se está deprimido ou solitário, um animal serve para fazer companhia. Além disso, é algo vivo para se cuidar e para se sentir necessário, visto que o bicho depende da pessoa. Em situações de ansiedade ou de medo, o animal funciona como fonte de apaziguamento: ao tocá-lo e afagá-lo, pode-se adquirir algum sentimento de segurança.

“O ser humano tem uma necessidade de contato físico que é preenchida pelo animal”, nota a veterinária Hannelore Fuchs, que se doutorou em Psicologia na Universidade de São Paulo em 1987 com uma tese sobre homens e animais domésticos. Como se sabe, a vida atribulada das grandes cidades nem sempre deixa tempo (ou cabeça) para que as pessoas dêem ou recebam carinho na hora que desejam. Assim, se o bicho homem mais próximo está ocupado, a alternativa para muitos é afagar o de quatro patas.

Para uma criança, por exemplo, um cachorro pode servir como aula de vida: o bicho cresce diante de seus olhos, engravida, tem filhotes, fica doente, morre. Por um lado menos prático e mais sentimental, o cachorro funciona como substituto dos pais eventualmente ausentes num momento em que a criança precisa de afeto, ou mesmo quando ela briga com eles. Qualquer garoto que tenha um cão chora as mágoas para ele quando fica chateado. Nem é preciso ser criança para bater longos papos com os bichos e neles encontrar conforto.

A apresentadora de televisão Xuxa diz que entende e gosta mais de crianças e animais do que de adultos. Em sua casa vivem dezoito cachorros, dez micos, quarenta periquitos, três papagaios, um tucano, dois faisões, duas codornas, um carneiro, além de – ufa! – patos e pombas. “As crianças e os animais gostam do meu jeito de ser mesmo que esteja mal vestida e sem maquiagem, ao contrário dos adultos”, observa Xuxa.

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Ela conta que quando tem problemas e quer desabafar conversa com os bichos, principalmente com o fila Xuxo: “Eles só ouvem, não recriminam não respondem, e o Xuxo ainda chora junto comigo e tenta me alegrar”. Bicho não é só consolo de jovem. Os velhos padecem de um isolamento gradativo devido à idade e ao culto da juventude que permeia a cultura ocidental hoje em dia. Com a pele enrugada e as mãos encarquilhadas, muitas vezes fica mais difícil para uma pessoa idosa tocar e ser tocada: nem todo mundo gosta do contato com uma pele que já não é macia. Sem a discriminação praticada pelos humanos, o cachorro e o gato aceitam e retribuem o carinho de um idoso com prazer.

Por isso, se não encontra mais companhia junto a seus parentes próximos, uma pessoa de idade pode suprir suas necessidades afetivas graças a um animal. A presença de um bicho pode ser tão significativa para os que estão à margem da vida normal da sociedade, como velhos e deficientes físicos ou mentais graves, que já existem em muitos lugares para eles terapias auxiliadas por animais. A simples companhia pode ser suficiente para melhorar o humor de quem convive com animais. O jogador de futebol Bebeto, consagrado no Flamengo do Rio, corre para junto de seus cães, papagaios e araras cada vez que tem uma folga.

“Gosto dos animais porque eles me distraem e me divertem muito”, conta ele. Para quem pensa em conhecer novas pessoas uma boa receita é arrumar um cãozinho e passear com ele pelas ruas. Isso não é só conselho de manuais de pseudopsicologia, daqueles que ensinam a fazer amigos. O zoólogo inglês Peter Messent observou numa pesquisa em ruas e parques que quase todas as pessoas que passeavam com cachorros eram cumprimentadas ou conversavam com estranhos. Já os que caminhavam sozinhos ou com crianças fizeram pouquíssimos contatos.

Ainda que haja uma distância talvez incomensurável entre criar uma criança e um bichinho, as duas atitudes, para os pesquisadores americanos Alan Beck e Aaron Katcher, têm pontos em comum. Gente ou animal, ambos têm de ser alimentados, protegidos, cuidados em sua saúde e receber carinho sempre que o pai, ou o dono, deseja dar. A diferença aparece quando crescem. Os filhos viram adultos e saem de casa, mas os animais continuam dependentes a vida toda e por isso mesmo podem ser amados egoisticamente como filhos que jamais crescem, eternas crianças, em oposição aos filhos verdadeiros que um dia batem asas para formar suas próprias famílias.

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Essa característica, que influi na decisão de certas pessoas de ter animais domésticos, influiu também em sua evolução, desde que começaram a partilhar o mesmo espaço há uma dezena de milênios. Os primeiros lobos que se aproximaram dos homens tinham aparência selvagem, que foi evoluindo para traços mais suaves até chegar ao cachorro de hoje. Isto se deu porque os lobos favorecidos pelos homens eram naturalmente os menos agressivos, os que mantinham traços juvenis e amadureciam sexualmente mais cedo, transmitindo tais características aos descendentes. Excetuando os cães de guarda, os animais domésticos mais apreciados são geralmente fofos e mansos – como crianças.

O animal está na vida do homem como companheiro – e também dentro dele. Pelo menos assim o psicanalista suíço Carl Gustav Jung (1875-1961) via os animais enquanto símbolo – eles representariam o lado mais instintivo do homem, a porção fera de cada um. Esse animal símbolo estaria gravado no que Jung chamava o inconsciente coletivo, uma espécie de memória geral da espécie humana presente em nossa mente. “Se uma pessoa souber lidar satisfatoriamente com seu animal interno, possivelmente vai se dar bem com os animais reais”, afirma o psicólogo Ricardo Belfort Mattos. Quando ocorre o contrário, é provável que uma pessoa não goste de animais e até os maltrate. Sim, o homem agride os animais – mas também organiza sociedades protetoras de animais.

No caso de uma criança que torce o rabo do gatinho ou chuta o cachorrinho, porém, o motivo tende a ser outro. “A criança normalmente não é cruel, é curiosa”, diz Hannelore Fuchs. Cabe ao adulto educá-la para que não inflija a outro ser vivo a mesma dor que não quer sentir. Num momento de raiva, no entanto, crianças ou adultos podem descarregar a frustração em cima do bicho, que normalmente não revida, a não ser que tenha tamanho suficiente para dar o troco em mordidas ou unhadas. “Esse é o lado negativo da relação das pessoas com os animais”, diz a psicóloga Maria Helena Scherb.

Desde que não descambem para o espancamento, essas desavenças são, porém, comuns em qualquer paixão. Não só os cães, mas os passarinhos, gatos, macaquinhos e todos os animais domesticados podem se tornar grandes amigos do homem. Eles estão aí para dividir amizade, companheirismo, afeto, resgatando uma intimidade esquecida do homem com a natureza e consigo próprio. Como notou Hannelore Fuchs em seu trabalho acadêmico: “O animal possibilita ao ser humano mostrar suas qualidades humanas, quando cuida, se sacrifica, ama e chora a perda de um animal”.

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Para saber mais:

Quando o homem aprendeu a montar

(SUPER número 7, ano 5)

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Bichos terapêuticos

Ao perceber que alguns de seus pacientes – crianças com sérios problemas de relacionamento pessoal – interagiam melhor com seu cão do que com ele próprio, o psiquiatra americano Boris Levinson criou há vinte anos o termo pet therapy, ou terapia com animais de estimação. Levinson desenvolveu a teoria de que o animal era um importante instrumento terapêutico, dada sua capacidade de dar afeto. Desde então, várias pesquisas têm comprovado o benefício trazido pelos animais no tratamento de deficientes mentais, e idosos e até presidiários. Um estudo do casal de psiquiatras americanos Sam e Elizabeth Corson, por exemplo, mostrou que, de cinqüenta pacientes não comunicativos levados a conviver com cães, nada menos de 47 tiveram alguma melhora. “O contato com os animais transformou inválidos psicologicamente dependentes em indivíduos responsáveis e autoconfiantes”, relataram os médicos.

Nos Estados Unidos, as clínicas especializadas em tratamento com animais atendem a mais de 20 mil pessoas. Um dos programas bem-sucedidos se baseia na interação de deficientes físicos e mentais com cavalos. “Os movimentos do cavalo mexem com o corpo, melhorando a coordenação e o equilíbrio, com grandes benefícios emocionais”, explica a veterinária Hannelore Fuchs, que pretende trazer para o Brasil as técnicas da terapia ajudada por animais. A única experiência relatada até hoje no país é a da veterana psicóloga carioca Nise da Silveira, com uma paciente esquizofrênica. O esquizofrênico é um indivíduo que vive fora da realidade, fechado em seu próprio mundo. Pois a paciente afeiçoou-se a um cachorro que vagava pelo hospital a ponto de pedir aos enfermeiros que cuidassem do bicho – ou seja, graças ao animal, ela retomou o contato com o mundo.

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