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Gin, o inimigo público número um

A bebida que virou modinha era o crack da Londres do século 18 – e quase derrubou a monarquia britânica.

Por Marcos Nogueira, editado por Tiago Jokura
Atualizado em 29 jan 2021, 10h56 - Publicado em 24 jan 2018, 16h05

O levante tinha data marcada: 29 de setembro de 1736, dia de São Miguel Arcanjo. Insuflada pelo grito de guerra “no gin, no king” (“sem gin, sem rei”), a turba iria se insurgir contra a Coroa assim que entrasse em vigor a lei que, na prática, proibia o comércio de gin em solo britânico.

O motim, anunciado cinco dias antes, uniu toda a massa de pobres e oprimidos de Londres. Para inflamar ainda mais a multidão, os taverneiros ofereceram gin grátis durante a madrugada que antecedeu à rebelião. O rei Jorge 2º estava na Alemanha. Todos os líderes proibicionistas haviam deixado a cidade. O golpe seria um passeio.

Na manhã de São Miguel, ninguém apareceu. Os jornais da época relatam que um alfaiate morreu intoxicado no pub The Crown, em Wapping, e que as ruas estavam coalhadas de pessoas desfalecidas de tanto beber. A distribuição de gin fora, certamente, uma tática equivocada.

A primeira batalha havia sido vencida por W/O, mas as autoridades inglesas tinham pouco a comemorar. Nos anos que se seguiram, Londres se transformou em cenário de violentos tumultos e desobediência civil explícita. O regime quase caiu por causa da marvada birita.

Esse cenário bruto, feio e encardido não orna nem um pouco com o glamour que o gin representa nos dias atuais, embalado pela moda da coquetelaria. Mas em Londres, na primeira metade do século 18, ninguém tomava dry martini com o dedo mindinho em riste. O gin estava para a cidade assim como o crack está para São Paulo, mas com uma diferença crucial: ele incendiava a revolta, não a adormecia.

Na Londres de 1723. o consumo per capita de gin – estatística que computa crianças e inválidos – era de 568 ml semanais, ou um pint.

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A capital britânica foi uma cidade de bebuns por meio século, no fenômeno que seria batizado de gin craze – a “loucura do gin”. Em 1723, o consumo per capita da bebida – estatística que computa crianças e inválidos – era de 568 mililitros semanais, ou um pint.

O destilado pagou a fatura, mas havia muito mais envolvido nesse quadro de convulsão social. Decisões macroeconômicas, disputas político-religiosas, guerras, especulação financeira e o questionamento à hierarquia na sociedade britânica foram o pano de fundo da crise do gin. É uma história pouco contada, mas que apresenta semelhanças desconcertantes com a guerra às drogas dos séculos 20 e 21.

Coragem holandesa

O mundo não conhecia o alcoolismo antes do gin. Mais precisamente, antes da explosão do consumo de bebidas destiladas. Cerveja e vinho era o que havia. Ambos raramente superam 15% de teor alcoólico: só os mais persistentes bebem até a embriaguez aguda. Havia bêbados e problemas causados por gente alcoolizada, mas nada que pudesse ser tratado como questão de saúde e ordem públicas.

A destilação moderna surgiu com a alquimia do século 14. Ao converter um caldo fedorento em líquido cristalino com propriedades únicas, os magos acreditaram ter descoberto a pedra filosofal. “Julgavam produzir o elixir da vida, e este foi o nome que deram ao líquido pungente que pingava dos alambiques”, escreve o arquiteto e pesquisador  Patrick Dillon no livro Gin, de 2013.

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Uisge, aquavit, eau-de-vie – em quase toda língua o álcool destilado virou “água da vida”. Até o século 16, produção e venda eram restritas aos boticários. Para customizar a droga – e torná-la mais palatável –, esses protofarmacêuticos fabricavam infusões com folhas, flores, cascas e sementes. Angélica, acácia, camomila, lavanda, valeriana, alecrim, pimenta, tudo o que era cheiroso entrava na fórmula. As bagas de zimbro, em especial, fizeram sucesso.

Não demorou até que as destilarias se multiplicassem. Em 1572, Lucas Bols abriu sua destilaria nos arredores de Amsterdã. No século 17, Holanda e França tiveram problemas com o consumo desenfreado de destilados. As ilhas britânicas, porém, permaneciam fiéis à sua cerveja quente e sem gás.

O mapa geopolítico da Europa era uma bagunça no século 17. Casamentos reais selavam e rompiam alianças. Ora como aliados, ora como oponentes, os ingleses lutaram várias guerras com os holandeses à época. Chamou a atenção dos britânicos como a outra tropa ficava valente após uma talagada em um líquido que descia queimando. O genever, versão holandesa do gin, foi apelidado pelos ingleses de dutch courage – “coragem holandesa”.

E eis que, em 1688, a Holanda anexou as ilhas britânicas. Guilherme 3º, o novo rei, era protestante e logo declarou guerra à França católica. Era o fim do comércio de conhaque, destilado favorito dos ingleses até então. Num aceno à “bancada do agronegócio”, o rei de holandeses e ingleses criou condições especiais para os produtores de grãos venderem o excedente das safras. A destilação estava liberada e isenta de impostos. Todo trigo e toda cevada que não prestava nem para pão nem para cerveja era convertida em gin. Esse foi o pontapé inicial da loucura.

Swinging London

Londres se firmava como maior cidade do Ocidente na virada do século 18. A crise do gin foi uma das dores do crescimento.

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As instituições não estavam preparadas para a explosão urbana. Não havia polícia e a cidade ainda era delimitada pelo muro erguido pelos romanos na Antiguidade. Extramuros, muito do que hoje compõe a área metropolitana pertencia a condados como Kent, Surrey e Essex. O noroeste da nova metrópole estava sob jurisdição do condado de Middlesex. Lá se concentravam os trabalhadores pobres. Foi lá que a mania do gin pegou forte.

No intramuros, Londres já era a capital financeira do mundo. A cidade atraía dinheiro, que atraía gente – oportunidade e risco em iguais proporções. Jogatina, golpes e especulação eram parte da rotina. Para aliviar a tensão, homens recorriam a prostitutas e ao gin; mulheres, só ao gin.

Fazer gin não é bicho de sete cabeças se houver um alambique. Basta redestilar álcool com botânicos aromáticos – o zimbro (juniper em inglês, jenever em holandês) é obrigatório. Com a facilidade oferecida pelo governo, qualquer birosca virava gin shop. “Gin, em 1726, era vendido por tintureiros, carpinteiros, jardineiros, barbeiros e sapateiros”, escreve Patrick Dillon. No bairro de St. Giles, ao lado de Covent Garden, uma em cada cinco casas vendia a bebida. Era comum beber em serviço. “Em Bethnal Green, 40 tecelões forneciam gin aos empregados”, conta Dillon. Óbvio que não ia dar certo.

Como em qualquer porre, a fase de euforia foi seguida de depressão e dor. Todo o entusiasmo do pessoal das finanças evaporou em 1720, com a eclosão da bolha especulativa da Companhia dos Mares do Sul – empresa dedicada ao tráfico de escravos. No outono de 1721, um surto de peste bubônica em Marselha deixou os londrinos em pânico: em 1665, mais de 70 mil morreram assim na cidade – 25% da população.

De quem era a culpa pelo baixo astral? Do gin, claro. E ainda havia o crime. A imprensa local, já adepta do sensacionalismo, ligava a bebida a qualquer caso de homicídio, suicídio, agressão e adultério.

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Um caso impactou a opinião pública: Judith Defour, operária em uma tecelagem de Bethnal Green, matou a filha Mary, de 2 anos, e a jogou em um córrego. Segundo a imprensa marrom, ela vendeu as roupas do bebê para comprar uma dose de gin. Isso rolou em 1734, com a guerra ao gin já em curso.

Londres contra o gin

Entre 1729 e 1751, o Parlamento britânico promulgou leis para combater o consumo de gin. Os Gin Acts resultaram em revolta, em desacato e na iminência da queda do regime inglês. Mas o comércio da bebida continuou, clandestinamente.

O ato de 1729 impunha uma taxa extorsiva para a obtenção de licença (até então desnecessária) para vender gin: 50 libras. Essa era a renda anual de um comerciante comum. A segunda lei, de 1736, endurecia as penas para infratores. O povo encarou a medida como uma Lei Seca e ignorou. A pressão diminuiu aos poucos até o último gin act, de 1751, fixar uma tributação mais equilibrada. O ano de 1757 marcou o fim da gin craze, embora isso tenha pouco a ver com atos parlamentares: o consumo caiu drasticamente devido a uma sucessão de safras ruins de cereais (que levou à escassez de gin).

A mudança de posição das autoridades foi sentida pela população como uma guinada brusca do “liberou geral” para a virtual proibição da bebida. Não foi bem assim: o Parlamento passou décadas a ignorar o clamor de setores conservadores da sociedade. Mudou de ideia depois que o reverendo Thomas Wilson, um jovem e ambicioso clérigo recém-chegado a Londres, iniciou uma sagaz campanha antigin. Numa ponta, mandou imprimir panfletos escandalosos sobre a catástrofe sanitária e social que a bebida impunha aos citadinos; na outra, articulou um lobby com argumentos para convencer os políticos de que a proibição seria vantajosa no que importava – o cofre.

Os panfletos de Wilson traziam fatos de comover qualquer um. Apelava, por exemplo, ao aumento exponencial da morte de crianças de até 3 anos nos tempos da loucura do gin. A argumentação foi contestada: outro documento atribuía a estatística ao uso de chapéus infantis estreitos, que apertavam o crânio dos bebês. Não adiantou. Até hoje há livros que reproduzem a versão do reverendo.

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Quando as autoridades decidiram combater o gin, encontraram uma rede estruturada de produção, distribuição, comércio e consumo. Quase todos os londrinos das classes mais baixas participavam desse sistema inviolável. Naturalmente, formou-se um mercado paralelo que o povo abraçou com criatividade.

Como a lei inicial dizia respeito só ao gin – destilado com zimbro –, os comerciantes tiraram o zimbro. A nova bebida foi batizada de parliamentary brandy (“aguardente parlamentar”), em menção aos congressistas. Era intragável, mas o loucos de gin compravam assim mesmo.

Um velhaco de nome Dudley Bradstreet inventou um tipo de drive-thru de gin: o puss and mew. Ele instalou, na fachada de casa, a gravura em madeira de um gato com uma torneira na pata dianteira. O comprador sussurrava a senha: “pussssss…”. Do outro lado da parede, o vendedor mandava um “mew” (“miau” na grafia britânica) e abastecia o vasilhame do cliente. O esquema, que dificultava autuações em flagrante, se espalhou pela cidade. Vem dele o nome de um tipo de gin que ainda existe: o old tom (“gato velho”).

Tal qual a cachaça no Brasil, o gin ilegal ganhou apelidos, como cetim branco, ruína azul, raios e trovões, pobreza, conforto e mata-tristeza. Em alusão ao primeiro-ministro Robert Walpole, o destilado também era chamado de bob makeshift (“beto gambiarra”). O humor aliviava a tensão da cidade – o povo reclamava que a campanha mirava somente os despossuídos – enquanto os congressistas bebiam conhaque contrabandeado.

Luta de classes

Qualquer um era capaz de fazer gin, desde que tivesse acesso ao álcool que deveria ser redestilado. A produção desse álcool, a partir de cereais, era outra história. Demandava espaço, escala e equipamento caro. Ocorria em meia dúzia de destilarias, propriedades de meia dúzia de barões cujos interesses os políticos protegiam. Eles eram isentos de taxação, enquanto o varejo sofria arrocho feroz.

As ações repressoras se concentravam nos subúrbios de Middlesex, antiga zona rural que se tornara um amontoado de cortiços habitados, majoritariamente, por imigrantes irlandeses. O gin desviava operários e criados para longe de suas obrigações. De forma inédita, o vício atingia igualmente homens e mulheres – um escândalo na sociedade inglesa de então.

Inédita também foi a resistência que a repressão encontrou. O caldo entornou quando, para furar a rede de proteção mútua dos infratores, a magistratura de Middlesex apelou para a delação premiada.

Na ausência de força policial, os magistrados acumulavam funções de inspetor, delegado, oficial de justiça e juiz. No auge da gin craze, eles sabiam que era insensato aventurar-se pelas espeluncas que vendiam bebida ilegal. Assim, contratavam informantes – pobres-diabos que usavam a propina para comprar o próprio gin.

Isso levou a um clima de desconfiança geral e a uma onda de linchamentos. O extinto jornal London Evening Post (homônimo do atual) relatou o caso de um casal de informantes encurralado à margem do rio Tâmisa em agosto de 1737. O homem fugiu, mas a mulher foi pega, espancada e arrastada pela sarjeta. Os linchadores atiravam lixo na mulher e lhe davam banhos gelados sob uma bomba de água potável. Ela acabou sendo salva por um gentleman – indivíduo da elite.

O maior tumulto ocorreu em frente à casa do magistrado Thomas de Veil, para onde fora levado um gângster que ameaçou de morte uma informante da Justiça. Mais de mil pessoas exigiam a soltura do homem. A multidão só dispersou após três horas, sob ação violenta do Exército.

O governo não tinha mais controle da situação, mas tampouco poderia ceder e revogar de imediato os atos antigin. A solução foi empurrar com a barriga, fazer vistas grossas e relaxar aos poucos a lei.

Depois do último ato do gin – que, entre outras coisas, encorajava a população a beber cerveja –, a produção da bebida foi sendo assumida por industriais que pagavam impostos. E que repassavam o custo ao consumidor. Não dava mais para comprar gin com dinheiro de pinga.

Se a loucura do gin fatalmente terminou, não foi mérito do aparato de repressão. Em mais de meio século, os cenários regional e global se transformaram imensamente. Desde a ascensão de Guilherme 3º até o último ato do gin, a Grã-Bretanha teve quatro monarcas e participou de oito guerras.

O período da gin craze antecedeu o auge da Revolução Industrial, em que o Reino Unido se firmou como maior poder imperial desde Roma. Londres era a maior cidade do mundo – e, a despeito de suas muitas mazelas, a mais civilizada.

O fracasso da cidade na guerra contra o gin poderia servir de exemplo para lidarmos com problemas sociais como o crack – basta bebermos mais dessa louca história.

 


Gin-ciclopédia

Por definição, o gin é uma bebida feita a partir da redestilação de um álcool neutro – geralmente de cereais – na presença de vegetais aromáticos. O sabor predominante é sempre o do zimbro, mas cada produtor pode adaptar a fórmula a gosto. Essa liberdade de criação deu origem a uma série de estilos. Conheça os principais:

London DRY
É o tipo mais clássico, seco, com cerca de 40% de álcool e uma paleta restrita de aromas. Além do zimbro, costuma levar coentro, cascas de limão e de laranja, cardamomo, cássia, camomila e angélica.

Plymouth
Só pode ser produzido na cidade inglesa de Plymouth, que tem só uma fábrica. É mais adocicado e terroso.

Old Tom
É o que há de mais semelhante ao gin vendido em Londres na época da gin craze. Bastante doce, caiu em desuso – com
a onda da coquetelaria, voltou a ser produzido.


*Marcos Nogueira, o autor desta reportagem é responsável pelo blog Cozinha Bruta, e autor do livro homônimo, publicado pela SUPER.

 

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