Natureza – 22 meses no gelo
Os 27 homens sob o comando de Ernest Shackleton queriam ser os primeiros a atravessar a Antártida a pé. Não alcançaram seu objetivo, mas o comandante conseguiu fazer com que enfrentassem dois invernos no gelo sem nenhuma baixa
O irlandês Ernest Shackleton tinha tudo para morrer no anonimato, como muitos homens de sua época que se lançaram ao desafio de romper com os limites conhecidos da Terra. Seu pai era um médico inglês respeitado, mas Ernest rejeitou seus passos e resolveu entrar para a marinha mercante britânica. A bordo de cargueiros, conheceu boa parte do mundo. Mas, para um jovem aventureiro sedento por fama, navegar por rotas comerciais não bastava. Shackleton queria seu nome na história das grandes expedições.
Sua primeira tentativa aconteceu em 1901, quando foi escolhido para participar da expedição Discovery, de Roberto Falcon Scott. O objetivo era fincar a bandeira britânica no Polo Sul, até então nunca pisado pelo homem. Diante das condições extremas, o plano fracassou e, bastante debilitado, ele voltou à Inglaterra para trabalhar como jornalista e secretário da Real Sociedade Escocesa de Geografia.
Depois de experiências mais ou menos bem-sucedidas, Shackleton levantou fundos para fazer a própria expedição ao Polo Sul – a Nimrod, em 1907. Embora seu grupo tenha chegado mais ao sul do mundo do que qualquer outro, a latitude 90° S permanecia intocada. O golpe final parecia ter vindo quando Roald Amundsen finalmente venceu o jogo. O norueguês alcançou o extremo Sul em 1911.
Amundsen pode ter sido o vencedor do maior desafio da época. Mas faltava ainda explorar por terra o continente gelado. E essa foi a empreitada escolhida por Shackleton: sair de Londres com um barco, levá-lo até a ilha de Geórgia do Sul, a leste do extremo sul da Patagônia, e depois seguir pelo mar de Weddell até a Antártida, onde parte de sua equipe desembarcaria e seguiria a pé até o mar de Ross, no outro extremo do território.
O navio Endurance partiu de Londres no dia primeiro de agosto de 1914, mas sua saída foi eclipsada por uma notícia mais importante – a Alemanha declarara guerra à Rússia e um conflito de proporções mundiais parecia inevitável. Ou seja, nos próximos anos não haveria chance de realizar outra expedição tão ousada quanto aquela. Em outubro, a embarcação chegou à ilha de Geórgia do Sul, sua base, de onde seguiria para o mar de Weddell – onde, nas palavras de Shackleton, “todas as condições são desfavoráveis para a navegação”. Se isso era ruim, o momento era pior. Os nativos alertaram o comandante de que nunca tinham visto uma temporada com tantas banquisas (bancos de gelos formados pelo congelamento da água do mar). A tripulação ficou um mês na ilha, esperando que o tempo manifestasse alguma melhora. Mas isso não aconteceu.
A prisão branca
Apesar do mau prognóstico, Shackleton zarpou no dia 5 de dezembro de 1914 da estação baleeira de Grytviken, na Geórgia do Sul, rumo ao Círculo Polar Antártico, cruzado em 30 de dezembro. As águas estavam repletas de blocos de gelo e icebergs, formando um incrível labirinto branco e extremamente brilhante, mesmo com o sol encoberto por nuvens. Apesar do mar agitado, o navio seguia – até que, a menos de 200 quilômetros da terra firme, encalhou numa banquisa e se pôs à deriva.
Os tripulantes tentaram quebrar o gelo no braço, com pés de cabra e picaretas, para criar um canal e voltar ao mar aberto. A embarcação também parecia contribuir, aos olhos do fotógrafo James Francis Hurley, que anotou em seu diário: “Nós admiramos nosso navio pequeno e forte, que parece ter um prazer em si mesmo no combate ao nosso inimigo comum, quebrando os blocos em grande estilo”.
Mas todos os meios falharam. Em 16 de janeiro, Shackleton concluiu que não havia mais como ir embora ou continuar a travessia, pelo menos em curto prazo. O líder tomou então as providências necessárias para que esperassem até o gelo ceder.
Os alojamentos foram rearranjados para ocupar as partes mais quentes do navio. Também se criou o Ritz, salão com uma grande mesa onde aconteciam apresentações musicais e shows de comédia. Quando a festa acabava, ninguém, marujos ou diplomados, escapava da faxina – eis uma das estratégias do líder para manter o grupo unido.
Para os 69 cachorros canadenses trazidos a bordo foram construídos iglus do lado de fora, e a tripulação investia boa parte do tempo cuidando e brincando com eles – o que os ajudou a conservar parte de sua sanidade enquanto esperavam o gelo derreter. Sem comunicação com o mundo exterior, não havia outra alternativa.
As coisas seguiram mais ou menos bem durante 10 meses. Shackleton ordenou a distribuição das roupas de inverno e das provisões que haviam sido trazidas para a travessia a pé. Mas, em outubro daquele 1915, o hotel antártico não resistiu à pressão da banquisa e seu casco começou a se quebrar. Foram 3 dias de combate em vão, porque uma nova onda de pressão atingiu a estrutura do navio – a “quilha”, algo como a espinha dorsal do casco, e o leme. Por fim, o Endurance começou a afundar. Os shows de comédia no Ritz e os aposentos mais quentes viraram passado, e a possibilidade de sobreviver parecia cada vez mais remota.
Shackleton foi o último a deixar o navio, com o apoio de 3 hurras dos tripulantes, que o ajudaram a transportar as provisões e os 3 botes salva-vidas para cima dos trenós. A 500 metros do local onde houve o naufrágio, eles montaram seu acampamento. Para se proteger do frio, dormiam dentro de sacos de dormir forrados com peles de animais, em barracas. Com um pouco de madeira que havia restado da embarcação, puderam improvisar uma minicozinha.
Paciência
Depois do Natal e antes da virada para 1916, o grupo se mudou para outro acampamento, que batizaram de Paciência. Com pouco calor e a comida rareando, a situação ficou mais tensa. Até janeiro, 27 cachorros tinham sido mortos e transformados em guisado para aplacar a fome. Os náufragos ainda esperaram cerca de 4 meses até que a banquisa começasse a ficar fina o suficiente para representar uma ameaça.
Em fins de março, o gelo finalmente se rompeu. Tinham que partir. Devoraram o último cachorro e se desfizeram de seus pertences. Para dar o exemplo, Ernest jogou fora seu relógio de ouro e a Bíblia que carregava e disse: “O navio e as provisões se foram, então agora nós vamos para casa”.
Quando colocaram os botes na água para remar até a ilha Elefante, o vento era tamanho que roupas pareciam não reter o calor. Então veio a chuva de granizo e a neve. O mar arrastava os barcos e os chocava contra blocos de gelo. Por fim, ao encontrar terra firme, não foi possível desembarcar, porque aquela parte da ilha tinha muitas falésias e geleiras. Só no 4o dia os homens tocaram a terra.
O comandante resolveu pegar um dos botes e tentar chegar à Geórgia do Sul. Escolheu 5 dos melhores e mais resistentes tripulantes, incluindo Frank Worsley, responsável por traçar a rota de 800 milhas mesmo sem ter referências precisas de sua própria localização, usando apenas um sextante, um almanaque náutico e o horizonte. E o improvável aconteceu. Em 14 dias chegaram a uma parte desabitada da ilha da Geórgia. Esgotados, caminharam ainda 3 dias pelas montanhas antes de encontrar quem pudesse ajudá-los.
Shackleton não se permitiu descansar. Juntou-se aos gerentes da estação para planejar o resgate. Mas o gelo em volta da ilha Elefante era tanto que precisaram de 4 meses e meio para vencê-lo.
Entre os que ficaram, o ânimo e a esperança eram os mais baixos possíveis. Mentalmente avariados, preparavam mais uma refeição de foca e pinguim numa cabana improvisada quando viram um navio Yelcho e acenderam uma fogueira para chamar a atenção. Shackleton conseguiu romper a última barreira de gelo que faltava para alcançar terra firme e não se conteve ao perceber, em meio ao nevoeiro, que todos os homens ainda estavam vivos. Era 30 de agosto quando foram resgatados.
Os homens de Shackleton
A bordo do Endurance foram 28 homens, entre amigos e conhecidos do comandante, além de marinheiros e oficiais recrutados por meio de um anúncio de jornal. Entre os 28, estava o fotógrafo James Francis Hurley, que fez as imagens que ilustram esta edição. É ele o responsável pela posteridade tão bem documentada da expedição. Havia ainda o carpinteiro Henry McNish, dono de uma gata, Sra. Chippy, que mais tarde se revelou um gato. George Marston, que já participara da viagem no Nimrod, era formado na Escola de Artes de Londres e tinha a melhor voz da turma. Thomas Orde-Lees foi contratado por ser o único com habilidades no esqui. E o engenheiro Louis Rickinson decidiu entrar para a expedição apesar de odiar o frio – chegou a sofrer um ataque cardíaco no último acampamento em que o grupo se alojou antes de ser salvo.
“Preferia matar a tiros muitos homens que conheço a sacrificar o pior daqueles cães.”
Frank Wild, sobre a necessidade de comer os cachorros da tripulação para sobreviver.
Endurance em números
300 toneladas de barco
3 toneladas de comida
28 tripulantes
69 cachorros canadenses
3 botes salva-vidas
-35°C a mínima temperatura registrada
Para saber mais
A incrível Viagem de Shackleton. Alfred Lansing, Sextante, 2009.
Endurance. Caroline Alexander, Cia. das Letras, 1999.