No coração do Brasil
Durante três anos, o grupo liderado pelo barão alemão revelou um país desconhecido até pelos brasileiros
Aline Cântia
Um tempo de viagens clássicas. Assim pode ser definido o início do século 19. No Brasil, que mal começava a ocupar o território longe do litoral, um barão alemão que passara um quarto de século em expedições científicas pelo mundo – e trabalhava como cônsul da Rússia no Rio de Janeiro – se transformaria no mais importante explorador daquelas terras vastas e desconhecidas. Ele se chamava Jorge Henrique Langsdorff e seu sobrenome batizou a expedição russa que, de 1821 a 1829, revelaria aspectos totalmente ignorados da fauna, flora, geologia e geografia de nosso país.
Nos primeiros cinco anos, esse naturalista, etnógrafo e diplomata conheceu como poucos o interior das Minas Gerais, o Rio de Janeiro e o litoral de São Paulo. Nesta reportagem, você vai acompanhar a segunda (e mais importante) parte da Expedição Langsdorff: o percurso feito entre 1826 e 1828, de Porto Feliz, no interior paulista, a Santarém, no Pará. Foi, ao mesmo tempo, uma verdadeira aventura pelo coração do Brasil e a mais cuidadosa e bem preparada expedição que jamais cruzou o território nacional. Estudiosos e artistas puderam fazer contato com as populações locais, coletar plantas e bichos e retratar, em desenhos e pinturas, tudo o que se via pelo caminho. Descobertas que, logo nos primeiros anos, ajudariam a fixar, no exterior, a imagem de nosso país em seus primeiros anos de existência independente. Mas que em seguida seriam esquecidas, pois todos os registros acabariam perdidos nos arquivos da Academia de Ciências de Leningrado (hoje São Petersburgo), na Rússia – para ser reencontrados quase um século depois, em 1930.
Na hora da partida, em Porto Feliz, a equipe contava com 39 homens. Além de escravos, remadores e guias, havia astrônomo, botânico, cartógrafo, médico, zoólogo e três artistas: Johann Moritz Rugendas, Adrian Taunay (tio do futuro Visconde de Taunay) e Hércules Florence. Rugendas ficou com o grupo por uns poucos meses. Taunay morreu em janeiro de 1828, quando se afogou no Rio Guaporé, em Vila Bela (onde hoje é Rondônia). Florence, um francês de 22 anos, chegara ao Brasil dois anos antes. Naquele 22 de junho de 1826, todos partiram em duas grandes canoas cavadas em troncos grossos, três batelões e outras três embarcações menores. O destino: subir o rio Tietê até seu encontro com o Paraná, de lá seguir pelo Pardo, o Cuiabá, o Arinos e o Tapajós, para chegar a Santarém (veja no mapa da página 60 o percurso percorrido pela Expedição Langsdorff). “É difícil descrever essa maravilha da natureza, a rapidez com que aquela água se transforma em espuma branca e poeira. Junto às rochas, a terra treme. Nossos artistas, o senhor Taunay e o senhor Florence, fizeram alguns croquis. Mas a cena é muito grande e extensa; seriam necessárias várias semanas de estudo para representar todo o espetáculo num único retrato”, escreveu o comandante em seu diário logo nos primeiros dias da viagem.
Em seus relatos, a emoção muitas vezes se sobrepõe aos objetivos científicos. Além de anotar informações como nomes de lugares, plantas, sementes e bichos, o barão reveria vários de seus pré-conceitos sobre os indígenas – e passaria a questionar e criticar o que via e sentia. A rotina era bastante simples: navegar, tomar notas, descer do barco para coletar materiais, caçar e explorar aquelas terras virgens. Acima de tudo, Langsdorff considerava que o mais importante era estreitar laços de amizade com a população. Foi assim que ele e sua equipe entraram em contato com inúmeras tribos indígenas. Acredita-se que a expedição foi a única a encontrar-se com os apiacás quando eles ainda eram numerosos.
Os últimos quilômetros até Cuiabá eram só descida. Primeiro, o rio Coxim, depois o Taquari e, enfim, uma cachoeira antes da cidade. No diário, Langsdorff relatou a festa que os tripulantes fizeram ao passar pelo local, “com uma salva de espingardas, danças e cantos”. Era meados de dezembro quando a caravana entrou no rio Paraguai. Depois de um susto com os índios guaicurus, que atearam fogo na mata, o grupo foi para a outra margem, onde havia uma comunidade de negros, caburés, mestiços e índios. Logo depois do Natal, os expedicionários chegaram a Dourados. “No dia 26 de dezembro, ouvimos o latido de cães e o cantar dos galos. Que alegria!”, comemorou Langsdorff. Em seguida apareceram canoas cheias de índios guatós, com quem todos conviveram algum tempo, antes de partir novamente. “Sem dúvida alguma é (o brasileiro) muito mais hospitaleiro do que qualquer outro da Europa. O viajante sabe que, em qualquer parte em que houver um morador, há de ser por ele acolhido e tratado.” Graças a esses relatos costuma-se dizer que a expedição revelou um outro Brasil para o mundo.
Doença e morte
Logo após o encontro com os parecis, perto de Cuiabá, um dos integrantes da equipe voltou ao Rio de Janeiro, levando caixotes com bichos e plantas, relatórios e manuscritos, cartas e um maço de desenhos. Langsdorff, então, resolveu dividir o grupo em dois. Um, chefiado por ele, se embrenharia rumo ao norte por caminhos pouco conhecidos. O outro tentaria atingir o Amazonas descendo os rios Guaporé, Madeira e Mamoré. O ponto de encontro seria o Forte de São José, na barra do rio Negro (onde hoje é Manaus). Em janeiro, depois de visitar Casalvasco, na fronteira da Bolívia, Taunay chegou ao rio Guaporé sob forte chuva. Mesmo assim, resolveu atravessá-lo a nado, desaparecendo para sempre nas águas.
Percalços desse tipo eram comuns na época. Dos 39 integrantes que partiram de São Paulo, só 12 chegaram ao Pará. Doenças e desavenças fizeram com que vários ficassem pelo caminho – e outros tantos morressem. O próprio barão foi acometido de febre amarela e malária. Perdeu a memória em maio de 1828, às margens do rio Juruena. No dia 26 de março do ano seguinte, os sobreviventes da Expedição Langsdorff chegaram ao Rio de Janeiro no navio Dom Pedro I. Traziam o chefe, já em estado de loucura. Jorge Henrique de Langsdorff voltou para a Europa em 1830. Depois de mais 22 longos anos de agonia, morreu.
O percurso, que em sua versão original consumiu quase três anos, seria refeito por uma equipe de documentaristas, durante um mês em 1999. Nesse grupo estava Adriana Florence, tataraneta de Hércules – que também é artista plástica e teve a chance de desenhar alguns dos mesmos lugares em que seu antepassado francês havia estado. A paisagem acima mostra essa viagem no tempo. As outras imagens que ilustram estas páginas retratam esses dois momentos do Brasil. Terminada a viagem de barco, Adriana foi à Rússia ver os manuscritos de seu tataravô. “O que senti ao abrir o diário é inexplicável”, escreveu ela no livro No Caminho da Expedição Langsdorff. “As folhas envelhecidas pelo tempo e o frescor de cada palavra, cada descrição minuciosa do que viveu. Reconheço os lugares enquanto leio sua narrativa precisa. Posso estar lá novamente. Vou me lembrando de cada passagem. Naquele momento somos um só.”
Um país redescoberto
Pelos rios do interior, uma viagem inesquecível
1. PORTO FELIZ
A expedição partiu de Porto Feliz, em junho de 1826, pelo rio Tietê. No caminho até Mato Grosso, cachoeiras e fazendas. Os índios apareciam nas tribos ou no meio da mata
2. CAMAPUÃ
Essa foi uma das fazendas que serviram de pouso. Todos tiveram contato com a pobreza, o trabalho escravo, as doenças e o descaso das autoridades com a população. Langsdorff doou várias sementes para hortas individuais e cuidou dos doentes
3. CUIABÁ
A chegada a Cuiabá, em janeiro de 1827, foi uma das grandes alegrias. A cidade ganhou muito espaço nos diários e nos desenhos dos artistas. Ao final da estadia, o grupo foi dividido em dois, para se reencontrar na barra do rio Negro
4. SANTARÉM
Aqui terminou a expedição, depois de mais de 13 mil quilômetros por cinco estados. Langsdorff, com malária, já não tinha mais como continuar o trabalho. Ficaram os relatos e desenhos de quase três anos de viagem
Índios e mais índios
As tribos encontradas pela expedição
Os xavantes, que Langsdorff cruzou quando descia o rio Tietê até Cuiabá, vivem hoje na serra do Roncador e em vales de rios no leste de Mato Grosso. Os caiapós habitam aldeias dispersas ao longo dos rios Iriri, Bacajá, Fresco e outros afluentes do Xingu, na mesma região em que a equipe de Langsdorff os encontrou. Considerados extintos por 40 anos, os guatós foram reencontrados no Pantanal Mato-Grossense, perto do município de Corumbá (MS). Os parecis viviam no planalto de Mato Grosso e eram freqüentemente escravizados pelos bandeirantes, no século 19. Um desses povos, os halítis, vive no oeste de Mato Grosso. Na língua nativa, “pátio da aldeia”. Os índios dessa etnia, que ocupavam uma grande região de cerrado do Brasil Central, se limitam hoje a Mato Grosso. Conhecidos como guerreiros, os apiacás só perderam a língua e o modo de vida tradicional após dois séculos de contato com os não-índios. Hoje vivem em Mato Grosso e no Pará. Povo de tradição guerreira, os mundurucus dominavam culturalmente o vale do Tapajós. Hoje, luta para garantir a integridade de seu território.
Paixão pelo Brasil…
…Uniu Langsdorff e Florence
Grigory Ivanovitch von Langsdorff nasceu em abril de 1774 na Alemanha. Médico e naturalista, foi botânico da primeira expedição russa ao redor do planeta. Ao passar pelo Brasil, em 1804, encantou-se pelo país. Mudou de nome para Jorge Henrique em abril de 1813, ao assumir como cônsul-geral da Rússia no Rio de Janeiro. Hércules Florence nasceu em 1804 na França. Conhecedor das artes e da ciência e encantado pelos desafios das viagens, veio ao Brasil em 1824. Também se apaixonou à primeira vista. O grande encontro entre os dois se deu porque Langsdorff publicou um anúncio para contratar um desenhista disposto a participar de sua viagem fluvial pelo interior do país. Florence leu o anúncio, se candidatou e ficou com a vaga. A bordo, viraram grandes amigos. Ao final da expedição, porém, tiveram de se separar. Langsdorff, doente, voltou à Alemanha. Aposentado, foi viver em Freiburg, no sul daquele país, onde morreu em 1852. Florence, por sua vez, ficou no Brasil. Escolheu Campinas para viver o resto de sua vida. Em 1830, publicou, como resultado de suas observações durante a viagem, um estudo sobre o som produzido pelos animais, que chamou de Zoophonia. Nessa época também realizou experiências com fotografia, técnica da qual é reconhecido como um dos pioneiros. Morreu em 27 de março de 1879.