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O Titanic nazista

Ele nasceu como transatlântico de luxo, e esteve várias vezes no Brasil. Virou navio militar, estrelou uma superprodução, foi transformado em cadeia – e acabou num dos piores episódios da Segunda Guerra.

Por Eduardo Campos Lima e Bruno Garattoni
Atualizado em 23 fev 2024, 06h57 - Publicado em 16 nov 2023, 15h18

HHitler se matou há 72 horas, e a guerra está na reta final – no dia seguinte, a Alemanha anunciaria sua rendição. Mas, naquele 3 de maio de 1945, a Força Aérea Britânica (RAF) ainda tinha uma missão a cumprir.

Os Aliados haviam descoberto, interceptando comunicações alemãs, que oficiais do governo nazista e da Schutzstaffel (a SS, organização que administrava os campos de concentração) preparavam uma fuga, de navio, para a Noruega.

Então a RAF enviou um esquadrão de caças Hawker Typhoon para interceptar e afundar o Cap Arcona: um transatlântico de passageiros que fora convertido para uso militar, e supostamente transportava fugitivos nazistas.

Era verdade. Mas não era toda a verdade. Começava ali um dos episódios mais trágicos de toda a Segunda Guerra, sobre o qual historiadores se debruçam até hoje – e um piloto da própria RAF definiu, anos depois, como “crime de guerra”.

Quando o Arcona nasceu, em 1927, era impossível imaginar um final assim. Ele foi construído pelo estaleiro alemão Blohm & Voss, por encomenda da operadora marítima Hamburg Sud (ambas as empresas existem até hoje), para transportar passageiros entre a Alemanha e a América do Sul.

 

Imagem com fotografia real do Cap Arcona e textos chamando para ampliar o infográfico, com mais informações sobre o navio.
(Arte/Superinteressante)

 

O navio fazia o trajeto entre Hamburgo e Buenos Aires, com uma parada no Porto de Santos. Era uma embarcação enorme, com mais de 200 metros de comprimento e muito luxo, desde a decoração suntuosa até as várias opções de lazer, incluindo uma quadra de tênis. Vários políticos e empresários importantes viajaram na primeira classe da linha, que operou até 1939. 

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Ilustração de um saguão interno do navio, ao lado de outra ilustração, da quadra de tênis que ficava no exterior da embarcação.
O navio tinha quatro níveis de acomodação. Os passageiros das cabines mais luxuosas, que abrigaram políticos e empresários alemães, tinham acesso até a uma quadra de tênis. (Gustavo Magalhães/Superinteressante)

Mas essa opulência daria lugar, com o avanço da Segunda Guerra, ao estoicismo militar. Em 1940, a Kriegsmarine (marinha nazista) requisitou o Cap Arcona e o transformou em navio para transporte de tropas.

Ele teve o interior esvaziado, com a mobília de luxo trocada por acomodações simples, e foi pintado de cinza – nada mais distante do fausto do Titanic, que inspirara a construção do Arcona.

Dois anos depois, a história dele se cruzaria novamente com a do gigante britânico. Os nazistas decidiram fazer sua própria versão cinematográfica do acidente naval mais famoso da história.

“Eles eram fanáticos por propaganda, e [o ministro nazista] Joseph Goebbels supervisionou vários filmes. Mas eram obras meio desajeitadas, porque pareciam claramente propagandísticas”, descreve o historiador Robert Watson, professor da Universidade Lynn, nos EUA, e autor do livro The Nazi Titanic, sobre a história do Cap Arcona.

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Hitler achava que era preciso investir em filmes melhores e mais complexos, que realmente servissem para manipular a opinião pública.

Num momento em que o avanço das tropas alemãs fracassava no front oriental, no Norte da África e na Grã-Bretanha, o fuhrer incumbiu Goebbels de fortalecer o estúdio de cinema Babelsberg: um dos maiores do mundo na época, apelidado de “Hollywood do Rio Reno”.

Foi ali que Leni Riefenstahl dirigiu O Triunfo da Vontade (1935), uma produção de alto orçamento que Hitler adorou. Agora, ele queria obras que pudessem concorrer com Casablanca, de 1942, que fez enorme sucesso internacional – e trazia uma clara mensagem antinazista. Foi aí que surgiu a ideia: fazer um filme alemão recontando o naufrágio do Titanic, ocorrido em 1912.

“O Titanic dos nazistas combinava ação, drama e romance. Hitler e Goebbels direcionaram muitos recursos para o filme, que era a obra de propaganda mais cara já produzida”, diz Watson.

Milhares de soldados foram mobilizados para fazer figuração, e artistas de renome foram contratados. O cineasta Herbert Selpin, autor de 21 filmes, foi o escolhido para a direção. “Mas a estrela do filme era mesmo o Cap Arcona”, diz Watson.

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A trama gira ao redor de um oficial alemão, puramente fictício, chamado Petersen. É ele quem percebe que o Titanic estava acelerando demais, algo perigoso em uma zona cheia de icebergs.

Petersen pede várias vezes a Bruce Ismay, o presidente da companhia, que o navio desacelere, mas suas tentativas são infrutíferas. É que havia um motivo escuso. Ismay desejava que o Titanic batesse o recorde de velocidade no Atlântico Norte: isso faria as ações de sua empresa naval, que estavam em queda, subirem.

Mas não ficava só nisso. Ismay e os outros diretores pretendiam vender suas ações e recomprá-las, a um preço mais baixo, logo antes de o recorde ser anunciado – para aí vender novamente na alta. Era uma mistura de imprudência com insider trading (uso de informações privilegiadas, um crime financeiro).

Após a colisão, Petersen ganha protagonismo com sua bravura e sua dedicação no resgate dos outros passageiros. Os alemães, que viajavam na terceira classe, são representados como heróis, enquanto a elite britânica é mostrada como covarde.

Conforme o navio afunda, os ingleses mais ricos tentam comprar lugar nos poucos barcos salva-vidas disponíveis. Não conseguem, e morrem junto com as demais vítimas.

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Petersen sobrevive, e testemunha contra o patrão Ismay na Justiça. Mas toda a culpa acaba recaindo unicamente sobre o capitão do navio – que havia morrido no naufrágio. Na última cena, uma mensagem reforça o tom de denúncia do filme: “As mortes de 1.500 pessoas continuam impunes, uma acusação eterna à ganância da Inglaterra”.

A produção do Titanic alemão teve seus contratempos. Selpin, o diretor, foi denunciado para o alto escalão nazista após ter criticado os figurantes militares, que passaram boa parte do tempo bêbados e atrapalharam as filmagens.

Chamado a prestar esclarecimentos a Goebbels, acabou preso – e seu corpo foi encontrado enforcado na cela no dia seguinte. As filmagens foram completadas por outro cineasta, Werner Klinger, que não é mencionado nos créditos.

O filme  estreou em 1943, em algumas cidades ocupadas pelos nazistas, como Praga e Paris. Mas Goebbels não quis que ele fosse exibido ao povo alemão.

Em um momento em que as baixas nazistas cresciam, e aumentava o risco de derrota para os Aliados, talvez ele tenha achado que não pegaria bem um filme de tragédia, com mortes em massa.

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Após o término das filmagens, o Cap Arcona foi devolvido aos militares. Em 1945, quando as tropas aliadas avançavam e a derrota nazista era iminente, o navio passou a ser usado para evacuar militares e civis alemães, de áreas sob ataque do Exército Vermelho, para zonas mais seguras na Alemanha e na Dinamarca.

Ilustração de uma câmera filmadora, junto a rolos de filmes antigos e o Cap Arcona ao fundo.
Hitler queria filmes à altura das produções americanas. Então surgiu a ideia de rodar a história do Titanic – usando o Cap Arcona. (Gustavo Magalhães/Superinteressante)

A certa altura, os nazistas decidiram transformar alguns navios em campos de concentração flutuantes. Segundo o historiador Robert Watson, a ideia foi de Heinrich Himmler, o líder da SS. O Cap Arcona foi ancorado a três quilômetros da costa, perto da cidade de Neustadt in Holstein, no extremo norte da Alemanha.

“No fim de abril de 1945, prisioneiros e sobreviventes do Holocausto começaram a ser levados para a embarcação, na qual foram amontoados sob o convés”, diz Watson.

Até hoje não se sabe ao certo por que os nazistas fizeram isso. Uma das hipóteses é que os industriais de Hamburgo quisessem entregar sua cidade sem resistência aos britânicos, na esperança de manter o patrimônio – e, para tanto, fosse preciso eliminar qualquer vestígio dos campos de concentração.

Então os prisioneiros foram enviados para o Cap Arcona, e outras duas embarcações ancoradas perto dele. “Era uma mistura de diferentes nacionalidades e grupos, incluindo prisioneiros políticos, gente detida em campos de concentração e condenados a trabalhos forçados”, explica o historiador alemão Stefan Nies, que está montando um centro de documentação sobre o Cap Arcona (com previsão de inauguração em 2027, na cidade de Neustadt).

Ele afirma que a confusão do final da guerra e a falta de registros tornam muito difícil saber exatamente quem estava nos navios – mas havia pessoas de 30 nacionalidades, e a maioria não era de origem judaica.

Os Aliados sabiam o que estava acontecendo. “Um conde sueco chamado Folke Bernadotte, dirigente da Cruz Vermelha e sobrinho do rei da Suécia, encontrou os navios com prisioneiros e conseguiu resgatar parte deles. Ele avisou os britânicos sobre os navios-prisão, e enviou as coordenadas”, conta Watson.

Por que, então, os britânicos afundaram o Cap Arcona?

“Embora a inteligência britânica tivesse alguma noção de que poderia haver prisioneiros a bordo, a situação nos últimos dias da guerra era caótica. Vários fatores provavelmente pesaram na decisão, como a crença de que os navios [também] carregavam tropas nazistas”, afirma a historiadora Julia Werner, que trabalha com Nies no projeto sobre o Cap Arcona.

Para Watson, ocorreu um erro burocrático. As coordenadas enviadas pelo conde sueco teriam chegado ao comando da RAF de forma truncada, e sido interpretadas como referentes a alvos militares.

“Naquele dia, os aviões sobrevoaram a baía de Lübeck e Neustadt e avistaram aquele enorme navio. Ele estava baixo com relação à água: significava que estava cheio de gente ou de combustível. Os pilotos não sabiam a razão, então dispararam”, diz Watson.

Era um dia nublado e chuvoso, com péssima visibilidade. Além disso, os jovens pilotos britânicos tinham medo de que o Cap Arcona e os outros navios possuíssem canhões antiaéreos. Tudo conspirou para o desastre.

“Foi um dos piores exemplos de fogo amigo da história, uma das horas mais sangrentas do Holocausto e da Segunda Guerra, um dos piores desastres marítimos, e a última grande tragédia da guerra”, resume Watson.

Estima-se que houvesse cerca de 5.000 prisioneiros no Cap Arcona. Cerca de 350 deles conseguiram nadar e chegar até a costa, sendo resgatados pelos Aliados – que os descreveram como “esquálidos”. “Os prisioneiros haviam sido mantidos em condições deploráveis, com superlotação, falta de higiene, pouca água e comida”, diz Nies.

O bombardeio fez com que o fogo se espalhasse rapidamente pelo Cap Arcona. Havia poucas rotas de fuga. Para os que conseguiam chegar ao convés, a opção era pular no frio mar Báltico.

Ilustração do Cap Arcona sendo bombardeado pela Força Aérea britânica.
Os britânicos sabiam que os nazistas estavam transformando navios em prisões – e tinham informações sobre o Cap Arcona. Mesmo assim, ele foi bombardeado. (Gustavo Magalhães/Superinteressante)

“Não havia botes e coletes salva-vidas suficientes. O que havia foi tomado pela tripulação”, conta Nies. Os oficiais nazistas presentes no Arcona conseguiram, em grande parte, sobreviver. Lanchas alemãs resgataram cerca de 400 guardas da SS. Os demais prisioneiros, em torno de 4.650, morreram.

Logo após a guerra, o Titanic nazista foi exibido nos cinemas da URSS e dos países do bloco soviético. Sua mensagem contra o capitalismo britânico vinha bem a calhar. Mas a origem do filme, a Alemanha nazista, foi omitida do público.

Em 1949, uma versão editada do filme foi exibida nos cinemas da Alemanha Ocidental: cortaram as cenas anti- britânicas.

Naquele mesmo ano, o casco e os destroços do Cap Arcona chegaram à costa, puxados pelas ondas. O navio foi desmontado e transformado em sucata.  Sua história acabou ali. Mas a das vítimas não. A água continuou trazendo os corpos dos mortos por muito tempo: os últimos esqueletos surgiram em 1971, quase três décadas após o naufrágio.

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