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Onde os ratos não têm vez

Após quase 70 anos de guerra contra ratazanas, uma província canadense luta para manter o status exclusivo de único território do mundo livre da peste

Por Tiago Cordeiro
Atualizado em 26 jun 2017, 13h10 - Publicado em 26 jun 2017, 12h33

Ratos são nossos bons companheiros. Excluindo as regiões polares, praticamente não há aglomeração humana, por menor e remota que seja, imune à presença deles. Especialmente do Rattus norvegicus, a popular ratazana. É a espécie mais comum entre nós, da qual deriva até o ratinho de laboratório. Essa cumplicidade indesejada vem desde que começamos a acumular restos de comida – resultado do início da agricultura, há 10 mil anos. Cerca de 4 mil anos mais tarde, o desenvolvimento das cidades representou para os ratos uma revolução tão grande quanto para nós: em nossos lares, eles encontraram conforto para se reproduzir em buracos nas paredes, no esgoto e em móveis velhos. Desde que viraram bichos urbanos, não precisam se afastar mais de 100 metr0s do lugar onde nasceram para ter uma vida farta. Até em lugares muito isolados, como a ilha de South Georgia, perto da Antártida, eles deram um jeito de chegar. E se multiplicaram tanto que viraram praga: em 2015, o governo local recorreu a 100 toneladas de veneno, lançado por três helicópteros, para exterminar nossos piores amigos – que insistem em voltar de navio.

Mas nenhum lugar do planeta se compara à província de Alberta, no Canadá. Com área de 660 mil km2, equivalente à soma de Minas Gerais, Rio de Janeiro e Espírito Santo, Alberta fechou a fronteira para os ratos. Não existem Rattus norvegicus convivendo com os 3,6 milhões de moradores do território. A façanha só foi possível com a ajuda da geografia e do clima – e uma dose gigantesca de paranoia.

Alberta começou a guerra contra os ratos em 1950 e só se declarou vitoriosa em 2002. Ainda assim, sofre com invasões pontuais, prontamente atacadas com extrema violência: o governo gasta 460 mil dólares canadenses (C$) por ano – cerca de R$ 1,1 milhão – para patrulhar as fronteiras, envenenando, incinerando ou até demolindo potenciais focos de invasão. Além disso, a população segue normas rigorosas para manter a peste banida.

Sobrevivendo no inverno

A geografia de Alberta dificulta o acesso dos ratos. Ao Norte, a divisa é com territórios formados basicamente por gelo. As Montanhas Rochosas, a Oeste, formam outra barreira natural para as ratazanas. No inverno, as temperaturas da província caem abaixo de -50 ºC. O acesso mais fácil dos roedores é pelo Leste, já que ao Sul fica uma vasta pradaria na fronteira com o Estado americano de Montana – cheia de predadores que fazem o trabalho sujo de graça para os vizinhos canadenses. Além disso, o rato comum (Rattus rattus) não sobrevive ao frio da região.

Na década de 1920, porém, casas e silos do território vizinho, Saskatchewan, começaram a ser ocupados por famílias de Rattus norvegicus, que suportam bem os invernos rigorosos, e se multiplicavam rapidamente. Três décadas depois, ratos foram identificados pela primeira vez em Alberta. “Não existem predadores naturais para eles na nossa região. O crescimento foi exponencial e colocava em risco toda a produção agropecuária”, declara Chelsea Himsworth, pesquisadora-chefe do Vancouver Rat Project, um centro multidisciplinar dedicado a estudar os hábitos dos ratos e como o contato deles com humanos impacta a sociedade. Apesar de a exploração de petróleo e a produção industrial estarem na base da economia de Alberta, a agricultura e a criação de gado também eram relevantes para as contas locais. A ameaça a esses setores motivou o então governador John James Bowlen a adotar medidas drásticas. Em 1950, ele lançou um plano de extermínio que precisaria do apoio compulsório de todos os habitantes. “É até hoje a tentativa mais ambiciosa de eliminar totalmente os roedores, considerando centenas de locais que já se propuseram a isso”, afirma Chelsea.

(Marcio Moreno/Reprodução)

Nos primeiros três anos, o governo de Alberta apostou na formação de profissionais preparados para lidar com os bichos. E também divulgou campanhas educativas para a população, que, em geral, nunca tinha visto ratos domésticos na vida e não sabia identificá-los nem como lidar com eles. As campanhas estimulavam o uso de venenos agressivos, como arsênico, carbonato de bário e fosfito de zinco. Eles podiam ser comprados em mercados comuns ou adquiridos de graça em postos de atendimento do governo espalhados por toda a região. Para garantir que os venenos fossem usados da maneira correta e com segurança, seminários de instrução foram realizados nas cidades e povoados albertenses. E deu certo: não foram registrados incidentes envolvendo abuso dos produtos ou ingestão acidental por humanos.

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Mas todo o esforço ruiu: os roedores, que em 1951 estavam espalhados por 180 km de fronteira a Leste, no ano seguinte já eram vistos por 270 km. As infestações, que avançavam no máximo 10 km Alberta adentro, em 1952 já estavam 60 km além dos limites territoriais. Os ratos roeram todo o investimento feito contra eles.

Guerra ao roedor

Para correr atrás do prejuízo, de 1953 a 1960, as ações de controle foram trocadas por ataques maciços. O governo colocou funcionários para aplicar quantidades maiores de produtos químicos em locais estratégicos. Logo no primeiro ano de guerra aberta, 63,6 mil kg de trióxido de arsênico em pó foram aplicados em 8 mil construções e 2,7 mil fazendas, dispostas ao longo de 300 km de fronteiras. O produto era espalhado no chão de todos os cômodos, do lado de dentro e de fora das paredes, exagero que envenenou açudes, arrasou plantações e matou gado.

Demorou meses para as pessoas saberem que o ataque do governo aos ratoscausava os prejuízos. Foi só a partir de 1954 que os moradores receberam cartas informando sobre as ações extremas que estavam em curso. Em meados dos anos 1950, a rede de funcionários públicos especializados em caçar ratos se espalhou pela fronteira e a peste parecia prestes a ser contida.

A essa altura do programa, a população já não precisava ajudar no extermínio, mas era obrigada a informar o governo sobre qualquer suspeita de roedores: de 1956 em diante, o morador que não colaborasse na caçada podia ser advertido pela Justiça e até multado. Além de comprar os venenos indicados pelo governo, era essencial instalar ratoeiras nas casas. Funcionários públicos fiscalizavam locais de grande concentração de comida, como silos, armazéns e depósitos de mercados, e puniam quem não estivesse prevenido.

A vitória ficou mais perto: os índices de avistamento despencaram de 640 registros anuais no início dos anos 1950 para 200 ocorrências em 1959 – no início da década de 1960, as notificações se limitaram a meros 40 km de fronteiras.

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Conforme a política raticida vingava, a paranoia crescia. Em 1973, Calgary, maior cidade da província, teve quatro quarteirões fechados por três dias. Ninguém podia entrar, a não ser os moradores, e a circulação de carros e pedestres foi proibida. Tudo porque dois prédios vizinhos relataram simultaneamente o avistamento de ratazanas circulando nos fossos dos elevadores. De acordo com um segurança, o bicho parecia carregar um filhote na boca – sinal de que já havia reproduzido e iria colocar mais ratinhos no mundo. Para o tamanho da neurose de Alberta, o risco era real: um filhote vira adulto com 75 dias de vida e pode, se não estiver sozinho, é claro, gerar até 48 filhotes na sua curta existência de 24 meses.

Entre as décadas de 1970 e 1980, o avistamento de ratazanas se manteve estável, com 200 notificações anuais. Nos anos 1990, caíram para menos de cem. Mas o objetivo ainda não estava alcançado: registros pontuais da existência de roedores sinalizavam que, de alguma forma, eles ainda invadiam a província.

A volta dos que não foram

Em 2002, Alberta finalmente se declarou livre dos roedores: houve zero notificações no ano. Começava a fase de manutenção do status alcançado. O governo local teme que os roedores tragam para a região doenças que não existem por lá. Faz sentido: ratos provocam pelo menos 55 enfermidades. Isso acontece por culpa das pulgas e de outros parasitas que carregam no corpo e transportam para nós quando comem nossa comida, fazem cocô em nossas casas ou xixi na água que usamos.

Atualmente, as autoridades de Alberta estimam que a região ainda seja ocupada quase todos os anos – em 2012, e depois novamente em 2014, invasões de centenas de ratos deixaram a equipe de caça em alerta máximo. O status de “área livre de ratazanas” oscila: a região se declara assim por meses seguidos, até aparecer um novo foco.

Por isso, a guerra nunca acaba. Seis funcionários do Departamento de Agricultura, sob comando de Phil Merrill, são dedicados especialmente à zona de controle, uma área na fronteira Leste com 600 km de comprimento e 29 km de largura. Eles viajam por esse restrito perímetro em busca de sinais de ratazanas e, quando os encontram, usam fumaça, veneno e fogo. Escavadeiras entram em ação para demolir construções que abrigam ninhos – os donos desses imóveis são indenizados pelo governo depois. Celeiros e casas abandonados são derrubados sem piedade.

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Sempre que necessário, outros 164 trabalhadores de controle de pestes são disponibilizados para ajudar. Os moradores continuam sendo educados para atacar roedores sempre que possível. Manter lixo em sacos, em vez de enterrar ou queimar os resíduos, é passível de multa pesada, e a imprensa dá destaque a qualquer aparecimento de ratos. Existe até uma linha telefônica exclusiva para quem desconfiar que avistou o animal: 310-RATS (7287).

Os benefícios compensam tanto trabalho? Aparentemente, sim. “A cada dólar canadense gasto para manter os ratos fora do território, evita-se um prejuízo de C$ 3,50 à lavoura e à saúde pública”, informa a assessoria de comunicação de Alberta. Ou seja, ser implacável com os roedores representa uma economia anual de R$ 2,8 milhões à província, que, oficialmente, comemora: “Tecnicamente, não somos alvo de nenhuma atividade de infestação de ratazanas. Elas não habitam em Alberta.”

12 mil é o valor máximo da multa prevista por posse ilegal de ratos em Alberta – a pena alternativa é de até 60 dias na prisão. Apenas zoológicos, universidades e instituições de pesquisa podem manter ratos em cativeiro.

 

Invasões bárbaras

O avanço das ratazanas pela América do Norte – até serem barradas por Alberta

1.
1770 – A chegada

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Ratazanas desembarcam na região em navios vindos da Europa. Diferentemente do que o nome científico (Rattus norvegicus, ou “rato norueguês”) sugere, a espécie teve origem na China e na Mongólia, e não na Noruega.

2.
1920 – Conquista do Oeste

Roedores aparecem em Saskatchewan, a leste de Alberta. À época, o avanço da espécie, rumo ao Noroeste, era de 24 km por ano. Inspirados pela província vizinha, Saskatchewan adotou um programa de controle de ratos em 1972.

3.
1950 – Alerta vermelho

Primeiro registro da presença de ratos em Alberta e início do programa de controle. A população é intimada a combater os invasores e, para isso, recebe aulas de como reconhecer os animais e de como administrar venenos pesados.

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4.
2002 – Zona de conflito

Foi o ano em que não houve avistamento de ratazanas e Alberta se declarou livre delas. Hoje em dia, seis funcionários do Departamento de Agricultura inspecionam a zona de controle permanente, aniquilando ratos na região fronteiriça mais vulnerável da província.

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